A tragédia chegou ao Rio Grande, há muito, mas fingimos que não foi aqui: a mortandade de
peixes no Rio dos Sinos não pode ser vista como fato isolado, que afete um curso dágua ou
nos
preocupe ao poluir as fontes de captação para consumo na área metropolitana. A mortandade é
apenas um sintoma de algo maior, em que a administração pública e a empresa privada são
igualmente responsáveis, numa engrenagem que supera o desleixo e se torna criminosa ao
afetar
diretamente a vida.
Sim, a vida de todos nós, não só a dos peixes. Ao receber os resíduos industriais e
domésticos, não é só o rio que apodrece. Todos nós apodrecemos antes disso, ao não
entendermos
que o atual estilo de vida urbana e de "desenvolvimento" industrial leva à destruição da
vida.
Atiramos aos rios o lixo mais pestilento e contaminador, chamando a isso de "progresso" ou
modernidade.
Prefeitos, governadores, ministros ou até presidentes, orgulham-se de construir (a preços
altíssimos, regados a propinas) milhares de quilômetros de redes cloacais que, sem
tratamento,
vão aos rios, onde já se despejam os resíduos de curtumes, fábricas de papel, refinarias e
outras indústrias, ou onde chegam as enxurradas dos agrotóxicos, completando o ciclo
destrutivo. Logo, o Estado investe bilhões em sofisticadas estações de tratamento para
transformar a nauseabunda lixeira aquática em límpida água potável, com a qual lavamos
carros
ou calçadas.
Construímos um ridículo suicídio coletivo e o apresentamos como síntese do "futuro".
***
No domingo passado, 48 horas antes da eclosão da tragédia do Sinos, os dois candidatos ao
governo gaúcho expuseram suas idéias neste jornal mas nada mencionaram sobre a preservação
ambiental. O tema não mereceu sequer uma palavra, muito menos um ponto de programa de
governo.
Por que Olívio e Yeda foram mudos? Porque peixe não vota e os dois candidatos se dirigiam
somente aos eleitores, com frases a esmo em busca da vitória, como se empilham sacos num
armazém?
A preservação ambiental foi o grande descobrimento do século 20 e incorporou à ciência e à
vida conceitos e visões fundamentais como ecologia, ecossistemas e biodiversidade. Todos
dizem-se interessados em defender o meio ambiente e a vida, mas na área pública e grandes
empresas há mais discurso do que atividade concreta. Às vezes, o descalabro e o
aventureirismo
chegam àquelas situações que José Lutzenberger chamava de "obscenas".
Há um Ministério de Meio Ambiente, com diferentes órgãos, e cada Estado tem sua secretaria
ambiental. Além disso, os 5 mil municípios do país têm secretarias de meio ambiente,
algumas
acopladas às de saúde. Só no Rio Grande do Sul, pelo menos 120 prefeituras estão aptas a
licenciarem empreendimentos que podem afetar o meio ambiente. Essa parafernália de
burocratas
e carimbos pouco serve, porém, e, na maioria das vezes, o estudo de impacto ambiental se
resume a expedir a guia para pagamento da licença ambiental.
Ou seja, paga-se e degrada-se.
***
Em 1654, quando o padre Antônio Vieira pronunciou no Maranhão o Sermão aos Peixes, a fauna
de
rios e mares era exuberante e nem sequer existia o termo "poluição ambiental". Vieira
pregava
para a Corte e o alto clero, mas se dirigiu aos peixes. "Já que os homens não aproveitam,
prego aos peixes. As águas estão tão perto que bem me ouvirão. Os demais podem deixar o
sermão, pois não é para eles", disse o jesuíta na mais bela peça em prosa da língua
portuguesa.
"Ao menos têm os peixes duas boas qualidades: ouvem e não falam", completou, criticando os
poderosos de então, que se empenhavam em estender a escravidão negra. Em contraposição ao
ser
humano, lembrou que os peixes "são os únicos animais que não se domam nem se domesticam.
Até
os leões e tigres, com artes e benefícios se amansam".
O que diria Vieira, hoje, quando tudo se amansa com artes e benefícios?
Flávio Tavares é jornalista e escritor
(
Zero
Hora, 15/10/2006)