A existência de uma imensa faixa de terras devolutas ou públicas sobre as quais o Estado sempre teve um domínio apenas teórico transformou a Terra do Meio (PA), nos últimos 20 anos, em um grande palco do comércio imobiliário ilegal nas mãos de atravessadores especializados. O esquema que associa desmatamento ilegal e grilagem de terras penetrou na região com muita força quando os antigos seringalistas, e mesmo vários ribeirinhos que migraram em busca de melhores condições de vida, começaram a vender o direito do uso de suas terras, no final dos anos 1980. Várias dessas áreas passaram a ser desmatadas por madeireiras ilegais como uma forma de comprovar sua posse, critério usado pelos órgãos fundiários para a legalização da terra por vários anos.
A partir daí, um leque variado de todo o tipo de ilícitos imobiliários passou a ser usado para transformar simples documentos de posse, contratos de arrendamento ou de concessão de uso de áreas de alguns poucos hectares em títulos de propriedade, válidos na aparência, de latifúndios gigantescos, alguns do tamanho de países da Europa. Registros sem títulos de domínio ou sem comprovação de registros anteriores; duplicação de matrículas com novas matrículas ou com matrícula da mesma terra em comarcas diferentes; registros efetuados com base em sentenças de partilhas de bens, sem prova de domínio ou sem matrícula anterior estão entre os vários expedientes usados pelos grileiros na Terra do Meio.
Como se não bastasse a confusão e os conflitos criados pelas fraudes, o governo nunca desenvolveu na região qualquer política pública de ordenamento territorial. Muitas vezes, a falta de organização dos arquivos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e do Instituto de Terras do Pará (Iterpa) não permite nem mesmo definir com certeza o status de certas áreas. Em muitas delas, os processos de titulação estão inacabados ou as informações sobre eles se perderam. O verdadeiro caos fundiário da Terra do Meio inclui desde áreas sobrepostas, com dupla titulação, passando por terras com procedimentos de titulação duvidosos, com domínio ou limites indefinidos ou desconhecidos, até aquelas em litígio – sendo que muitas delas combinam mais de um desses situações.
Nova perspectiva
A criação recente de algumas Unidades de Conservação (UCs), no entanto, abriu uma nova perspectiva para o enfrentamento da questão. Os decretos de criação das UCs obrigam o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) a fazer o mapeamento detalhado das posses existentes no interior das áreas, desapropriar as terras que tenham títulos válidos e indenizar as benfeitorias construídas de boa fé.
“O grande desafio na Terra do Meio é conseguir articular as ações dos diferentes órgãos fundiários”, avalia Boris Alexandre César, coordenador de Regularização Fundiária da Diretoria de Ecossistemas do Ibama. Ele argumenta que o processo de regularização das UCs ainda é lento tanto pela falta de pessoal capacitado no Ibama como pela complexidade do problema, incluindo a necessidade de negociar a retirada de moradores com ocupação tradicional nas áreas de proteção integral.
O mapeamento das posses da Estação Ecológica (Esec) da Terra do Meio e do Parque Nacional (Parna) da Serra do Pardo, sob responsabilidade da Direc, mal foi iniciado, mais de um ano e meio depois de sua decretação (confira). Nas Reservas Extrativistas (Resex) do Riozinho do Anfrísio e do Iriri, o processo de regularização deve durar ainda pelo menos dois anos. Os ribeirinhos que moram nestas áreas de uso sustentável podem continuar em suas terras por um contrato de concessão de uso.
“A regularização fundiária da Terra do Meio é um dos principais obstáculos à implementação efetiva de suas unidades de conservação”, analisa Cristina Velásquez, assessora do Programa Xingu do Instituto Sociambiental (ISA). Ela conta que ainda há lacunas e imprecisões na regulamentação das UCs, sobretudo Reses e Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS).
Cristina avalia que a legislação ainda não tem instrumentos capazes de lidar com situações complexas como as que se apresentam na região. “Avançar neste aspecto também é imprescindível.” As UCs locais de proteção integral, por exemplo, abrigam populações tradicionais que precisarão ser removidas, o que implica uma negociação delicada.
Os conflitos fundiários são os principais responsáveis por ameaças e violências cometidos por grileiros contra ribeirinhos na região, incluindo a expulsão de suas terras e assassinatos. Nas duas últimas décadas, foram cometidos cerca de 500 assassinatos relacionados a conflitos de terra no Pará. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), apenas em São Félix do Xingu, no sudeste da Terra do Meio, 31 trabalhadores rurais foram assassinados e nenhuma investigação foi finalizada.
Decisões
Recentes decisões da Justiça no Pará também reforçaram o caminho aberto para a legalização das terras na região. No dia 30 de junho, o juiz federal de Altamira Herculano Martins Nacif concedeu uma liminar, pedida em Ação Civil Pública pelo MPF, determinando a indisponibilidade da área de mais de 1,12 milhão de hectares às margens do rio Xingu que a Amazônia Projetos Ecológicos Ltda., subsidiária do conglomerado empresarial CR Almeida, reivindica como sua.
Nacif determinou ainda a saída dos funcionários da firma do local e proibiu o pagamento de indenização por desapropriação da terra pelo Ibama. No mérito, a ação pede cancelamento de matrícula, registro e averbações existentes sobre a fazenda. As terras sobrepõem-se à Resex do Iriri, à Esec e ao Parna, além de cobrir integralmente a área prevista para a Resex do Médio Xingu. O Iterpa também move ações judiciais contra a Amazônia Projetos Ecológicos e, assim como o MPF, alega que os documentos da terra são fraudados.
Em sua decisão, o juiz explica que grilagem na Terra do Meio "evoluiu para um sofisticado esquema que conta com a participação de funcionários públicos, órgãos governamentais, laranjas e outras pessoas mal intencionadas, que levam a cabo verdadeiros devaneios técnicos que tendem a servir de respaldo para esquentar os documentos fraudulentos". Nacif comenta que a situação denunciada pelo MPF "aparentemente representa não um caso isolado, mas uma prática corriqueira perpetrada por empresas de envergadura, por vezes, internacional, sendo sempre utilizadas como fachada para práticas delituosas, buscando-se com isso a impunidade".
O procurador federal em Altamira e autor da ação, Marco Antônio Delfino, lembra que área foi formada a partir da união de cinco seringais arrendados pelo Poder Público a particulares no auge da economia da borracha. Mais tarde, eles foram transformados em posses, registrados e georreferenciados ilegalmente com a ajuda de funcionários do cartório de Altamira, que ficou sob intervenção da justiça estadual durante anos até ser fechado definitivamente, em abril, por causa dos casos notórios de fraude.
Fraude generalizada
Mas a decisão da Justiça Federal não é a única que ameaça o esquema local de grilagem. No dia 23 de junho, a desembargadora Osmarina Onadir Sampaio Nery, corregedora de justiça das comarcas do interior do Pará, determinou o bloqueio das matrículas de todos os imóveis rurais do Estado com mais de 2,5 mil hectares.
As pessoas que se dizem donas das terras deverão apresentar a sua documentação ao Iterpa para provar sua validade. A medida foi tomada para enfrentar situação de fraude imobiliária generalizada no Estado. Osmarina lembra que a Constituição Federal, através dos anos, sempre definiu limites para os tamanhos das áreas que poderiam ser transferidas a particulares na Amazônia e eles foram sistematicamente desrespeitados.
A deliberação põe em risco os planos da CR Almeida para outro latifúndio gigantesco na Terra do Meio, com nada menos que 4,7 milhões de hectares sobrepostos às Resex do Riozinho do Anfrísio e do Iriri, à toda extensão da Floresta Nacional de Altamira, a dois assentamentos do Incra, à área prevista para a Floresta Estadual do Iriri e às TIs Xypaia, Curuaya e Baú.
A “Ceciliolândia”, como já foi apelidada, equivale a duas vezes o território da Bélgica. O Iterpa e o MPF têm ações judiciais, inclusive para apurar responsabilidade criminal, contra a Indústria, Comércio, Exportação e Navegação do Xingu Ltda. (Incenxil), empresa também pertencente à CR Almeida que se diz dona da fazenda. O MPF considera-a “a maior área grilada do Brasil”. O mérito das duas ações pode ser julgado nas próximas semanas.
Propriedades não têm fundamento jurídico
“Essas propriedades não têm fundamento jurídico algum, são flagrantemente irregulares”, acredita Marco Antônio Delfino. “Acho que a grilagem no Pará tende a sofrer um refluxo. A tendência é de diminuir, pelo menos esses casos escabrosos”, avalia o procurador. Ele acredita que as decisões judiciais abrem o caminho para a decretação da Resex do Médio Xingu no local e para regularização fundiária em toda a Terra do Meio. O procurador explica ainda que as ações do MPF pretendem impedir que a CR Almeida continue intimidando a população local.
Nos últimos anos, os representantes da empresa passaram a contratar como empregados vários ribeirinhos, a distribuir cestas básicas e remédios, além de transportar pessoas doentes ou falecidas para a cidade. Chegaram a prometer construir escolas e postos de saúde. Tudo para conquistar a confiança da comunidade para o que seria um projeto alternativo de desenvolvimento sustentável.
Uma norma editada pelo Incra e pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), em dezembro de 2004, já tinha dado um passo importante para tentar conter a grilagem em toda a Amazônia Legal. A Portaria nº 10 de dezembro de 2005 suspendeu a emissão do protocolo de requerimento do Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR) em posses localizadas na região. Ela passou a exigir o georreferenciamento de cada área. A expedição do protocolo passou a ser negada quando constatada a superposição do imóvel rural com terras da União. O CCIR é necessário para obtenção de crédito rural, para a realização de registros imobiliários, transações bancárias e comerciais.
Para André Lima, coordenador, do Programa de Política e Direito Socioambiental do ISA, outro problema bastante preocupante diz respeito às populações locais tradicionais não abrigadas por UCs. “A criação de UCs empurra a grilagem de terras para áreas adjacentes não protegidas legalmente, habitadas por populações desprovidas de qualquer título ou garantia fundiária. Para complicar, nenhum órgão governamental tem um levantamento consistente sobre essas populações que habitam as florestas na Amazônia, mas que não estão no mapa”, diz.
Lima concorda que é indispensável a implantação de uma política que envolva os governos federal e estadual, Ministério Público, órgãos governamentais fundiários, ambientais e indigenistas, movimentos sociais e organizações não-governamentais para um levantamento rápido sobre essas populações. “Precisamos de medidas urgentes para a garantia de sustentabilidade nos territórios dessas comunidades”.
(Por Oswaldo Braga de Souza,
ISA, 11/10/2006)