Não é fácil alterar a cultura do setor elétrico brasileiro. Passado pouco
mais de um ano da comemorada edição da Portaria nº 328/ 2005 do Ministério
de Minas e Energia (MME), que determina que apenas empreendimentos com
licença prévia podem ser habilitados a concorrer a leilões, constata-se que
a falta de diálogo com a área ambiental continua a vigorar. Prova disso é o
Leilão de Energia Nova da Agência Nacional de Energia Elétrica que será
realizado ontem (10/10). Mais uma vez, órgãos do governo
federal ligados à área energética optaram por incluir hidrelétricas com alto
impacto ambiental e que, por esta razão, são questionadas na justiça.
Os dois maiores empreendimentos hidrelétricos no leilão são a usina de Mauá,
no rio Tibagi, Paraná, e a usina de Dardanelos, no Aripuanã, Mato Grosso.
Ambos obtiveram as licenças prévias com os órgãos estaduais de meio
ambiente, mas estão na mira do Ministério Público Federal (MPF) porque os
Estudos de Impacto Ambiental (EIA) omitiram informações importantes durante
o processo de licenciamento.
A hidrelétrica de Mauá (mapa), com capacidade de 361 MW, está prevista para
ser instalada no rio Tibagi próximo à cidade paranaense de Telemâco Borba e
terá um reservatório de 83,9 km2. Em 2005, uma liminar da Justiça Federal
retirou o empreendimento do leilão de energia realizado em dezembro. Neste
ano o destino da usina parece que não será diferente.
Na última quinta-feira, dia 05 de outubro, a 1ª Vara da Justiça Federal em
Londrina reeditou a liminar que proíbe a entrada de Mauá no leilão. A
decisão também anulou a licença concedida pelo Instituto Ambiental do Paraná
(IAP), delegando ao Ibama a responsabilidade pela avaliação do EIA do
empreendimento. A Empresa de Pesquisa Energética (EPE), órgão do MME que
habilita os empreendimentos para o leilão, informou através de sua
assessoria de imprensa que não comentaria os problemas na justiça. Mas em
notícia publicada pelo site Canal Energia, o presidente da EPE, Maurício
Tomalsquim, afirma que ainda “tem esperança” de que Mauá entre no leilão
desta terça-feira.
A principal razão para concessão da liminar é uma decisão anterior que
determina que antes de qualquer empreendimento no rio Tibagi, os órgãos
ambientais deverão fazer um estudo completo dos impactos da instalação de
hidrelétricas na bacia. Mas os planos de aproveitamento energético do Tibagi
foram elaborados pelo setor elétrico sem qualquer consulta ao comitê da
bacia, o que é uma obrigação legal prevista na Lei da Política Nacional de
Recursos Hídricos (9.433/1997).
Por isso, junto ao pedido de liminar, o comitê do Tibagi aprovou uma moção
para ser entregue à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), exigindo
que o conselho passe a ser ouvido antes de qualquer decisão. “É só
acompanhar o licenciamento desde o começo para perceber que os
empreenderores vem repetindo os mesmos abusos”, afirma Tom Grando, membro da
Liga Ambiental, organização que coordenou os protestos contra Mauá. Segundo
ele, o reservatório da usina vai piorar a qualidade da água que abastece
cerca de 1 milhão de pessoas na região de Londrina, mais uma razão que
obriga a consulta ao comitê de bacia.
Ameaça
Contudo, a grande dúvida do leilão que ocorre nesta terça-feira é a
concessão da usina de Dardanelos, (mapa) em Mato Grosso. No ano passado, a
hidrelétrica projetada para ter uma potência de 261 MW não obteve licença
prévia para entrar no leilão. Neste ano, a licença foi concedida pela
Secretaria de Meio Ambiente do Mato Grosso, com a chancela da Assembléia
Legislativa Estadual, o que garante a entrada do empreendimento no leilão.
Mas na última sexta-feira, dia 06 de outubro, a promotoria de Meio Ambiente
do Estado do Mato Grosso, junto ao Ministério Público Federal, protocolou um
pedido de liminar para retirar Dardanelos do leilão.
Os argumentos que constam no pedido de ação cautelar são semelhantes aos que
foram apresentados em 2005 quando se conseguiu uma liminar contra a
concessão do empreendimento. De acordo com o documento, o EIA de Dardanelos
não detalha como serão feitas as instalações das linhas de transmissão, uma
vez que a usina foi desenhada para integrar o Sistema Interligado Nacional.
Além disso, o documento omitiu o fato de que a cidade de Aripuanã faz parte
de um roteiro de ecoturismo, criado pelo próprio governo federal exatamente
por possuir as belíssimas quedas da água de Dardanelos e Andorinhas.
O professor do Departamento de Engenharia Elétrica da Universidade Federal
do Mato Grosso (UFMT) Dorival Gonçalvez Júnior acredita que só uma razão
política pode explicar a concessão da licença a Dardanelos, pois além de
ambientalmente danosa, a usina é economicamente inviável. O Eco já noticiou
que o plano de construir uma linha de transmissão até Dardanelos seria
extremamente útil às pequenas centrais hidrelétricas que o governador Blairo
Maggi pretende construir na região.
O que mais tem chamado a atenção de Gonçalvez Júnior são os números de
energia garantida que têm sido divulgados pelos possíveis construtores de
Dardanelos, a Eletronorte e a empreitera Norberto Odebrecht. Nos estudos
técnicos disponibilizados fala-se que mesmo nos períodos de pior vazão do
rio, a energia garantida seria de 154 MW. Mas nas audiências públicas, os
royalties a serem pagos à prefeitura foram calculados pelos próprios
empreendores sobre uma energia garantida de aproximadamente 99MW. Isso
mostraria que entre a potência instalada (261 MW) e a energia garantida há
uma grande diferença, o que é de se esperar de um rio que tenha uma enorme
variação entre as cheias e as secas , explica o professor da UFMT. “Para que
termos uma usina no sistema interligado que só gera energia no periodo de
cheias, se neste período os reservatórios estão cheios no Sudeste?”,
intriga-se.
A falta de debate dos órgão federais que planejam os leilões de energia,
notadamente a Aneel e a EPE, é também evidente nas usinas que ficaram de
fora do leilão. Até a data limite da habilitação para as concorrências, a
Aneel dava como certas as participações das hidrelétricas do Baixo Iguaçu e
Salto Grande, ambas no Paraná. Mas não houve tempo hábil para recorrer aos
pedidos de licenças, que já tinham sido negados há cerca de um mês pelo
órgão estadual, o IAP.
No caso do Baixo Iguaçu, os administradores do Parque Nacional do Iguaçu
respiraram aliviados. A briga contra a hidrelétrica chegou a receber apoio
da Unesco que contestou a instalação de um empreendimento com um lago de 31
km2 nos limites da mais visitada unidade de conservação do Brasil. “O rio
Iguaçu já tem seu regime totalmente modificado por três hidrelétricas, por
que ter mais uma no único trecho natural que resta?”, questiona o chefe do
Parque Nacional, Jorge Pegoraro.
Erros e acertos
Desta forma, dos seis novos empreendimentos hidrelétricos previstos para o
leilão de energia nova, é possível que apenas dois, Cambuci (mapa) e Barra
do Pomba, de fato consigam ser avaliados. Essas duas usinas estão sendo
oferecidas na calha do Paraíba do Sul, no estado do Rio de Janeiro, e foram
aprovadas sem maiores problemas pelo comitê de bacia do rio. De acordo com a
secretária-executiva do comitê do Paraíba do Sul, Maria Aparecida Vargas, as
usinas fazem parte do plano de utilização da bacia elaborado pelo conselho.
Assim mesmo, a instalação definitiva dos empreendimentos só será possível
com o cumprimento de exigências ambientais listadas na licença prévia. “Nós
aprovamos o plano de bacia, isso não quer dizer que as usinas vão ser
construídas de qualquer jeito”, frisa Maria Aparecida.
A usina de Cambuci terá 50 MW de potência instalada e a área do reservatório
será de 7,29 km2. Em sua licença prévia a principal preocupação diz respeito
ao impacto sobre a fauna local. Pede-se mais estudos sobre os danos que
podem ser causados no potencial pesqueiro no trecho que vai da Ilha dos
Pombos até a foz do Paraíba no Oceano Atlântico. Há também exigências quanto
a um plano de manejo de espécies que utilizam a área como local de
reprodução e nidificação.
Barra do Pomba também terá um reservatório pequeno, 6,57 km2, e sua potência
instalada será de 80MW. Ali o maior impacto identificado pelo EIA é a
supressão de vegetação em bom estado. O estudo técnico afirma que “diversas
ilhas de pequena dimensão resguardam uma flora em bom estado de conservação
(...). Com a implantação do empreendimento, será necessária a supressão
dessa vegetação, o que corresponde a cerca de 39,7 ha”.
Se apenas Cambuci e Barra do Pomba forem a leilão, serão obtidos 130 MW ao
invés dos 1155 MW previstos pela EPE. Será o segundo ano em que o setor
elétrico verá seus planos frustrados por ações na Justiça, movidas por
questões ambientais. Um sinal de que o futuro energético do país continua a
ser planejado sem levar em conta de forma adequada o meio ambiente. Uma
perda de tempo e energia desnecessária.
(Por Gustavo Faleiros,
OEco, 10/10/2006)