A reaproximação da Coréia do Norte com o mundo havia começado com Clinton em 1995, que aproveitou a crise econômica do país para domesticar o regime. Tudo caminhava bem até Bush vencer as eleições e cunhar o termo eixo do mal.
A República da Coréia do Norte é um país pobre, com pouco mais de 22 milhões de habitantes e um PIB de US$ 30 bilhões. Seus gastos – a parte revelada destes gastos – com a defesa consomem quase US$ 5 bilhões anualmente, além de outros gastos não declarados. Além disso, o país não possui reservas de petróleo ou de alimentos, tendo sido devastado entre 1995 e 1997 por secas e invernos siberianos. Calcula-se que cerca de 3 milhões de pessoas morreram de fome à longa de tais desastres. O racionamento de alimentos e bens é constante.
Ao amanhecer de 9 de outubro de 2006, entre o aniversário do Grande Líder Kim Jong II e o Dia do Trabalho, o Exército do Povo fez explodir (num teste subterrâneo a 385 km de Pyongyang) uma bomba atômica de 15 kilotons, causando um tremor de 4,2 na escala Richter. A Coréia fazia sua entrada no clube atômico.
Uma estratégia de alto risco
Desde 1994 no poder, quando substituiu o pai, Kim Jong II mostrou-se mais flexível e negociador com os Estados Unidos do que seu antecessor. Desde 1996, acossado pelo empobrecimento do país e as sucessivas catástrofes naturais que assolaram a Coréia, Kim resolveu negociar com Washington. Tratava-se então da Administração Clinton, que conseguiu arrancar de Pyongyang a promessa de congelar dois programas armamentistas que causavam grande temor na Coréia do Sul e no Japão. O primeiro alvo das negociações era o programa balístico desenvolvido com meios próprios a partir de uma velha tecnologia soviética de mísseis Scud. Em pouco tempo Pyongyang conseguiu desenvolver uma balística eficiente, com características altamente ofensivas. Com Scuds de pouco mais de 300 km de alcance, os norte-coreanos desenvolveram, em 1996, os mísseis classe No-Dong A e B, com alcance variável de 1300 até 4000 km, podendo, portanto atingir não só a Coréia do Sul, como ainda todo o Japão e as bases e a frota americanas no Oceano Pacifico.
Em 1998, num teste-realidade, a Coréia do Norte lança um míssil No-Dong que sobrevoa o Japão antes de atingir o Oceano Pacífico, causando grande apreensão em Tóquio. Ao menos 13 cidades japoneses, todas com mais de um milhão de habitantes e grandes centros industriais, estavam ao alcance das armas de Pyongyang.
Em 2004 a Coréia do Norte anuncia testes com uma nova classe de mísseis, os Taep ó-dong, tipo I e II, com alcance de 3750 até 15 000 km, colocando os territórios da Austrália e o Costa do Pacífico dos Estados Unidos ao alcance do fogo norte-coreano. Em 2005, num anúncio não confirmado, Kim Jong II declara o sucesso dos mísseis NKSL-X, de alcance orbital.
O segundo programa de armas de Pyongyang deveria completar seus esforços na área da balística: a produção de bombas atômicas. Se até ontem (09/10/2006) os mísseis coreanos eram de alto risco para os países do Pacífico – mesmo com ogivas convencionais – a possibilidade atual de portarem ogivas nucleares causa uma onda de impacto até então desconhecido nos países vizinhos, em especial no Japão e na Austrália.
A crise com os EUA
A Administração Clinton, secundada por Tóquio e Seul, aproveitou a terrível crise econômica da Coréia do Norte, entre 1995 e 1998, para promoverem uma aproximação capaz de “domesticar” o regime e, ao mesmo tempo, diminuir o temor paranóide de Kim Jong II. Os Estados Unidos ofereceram-se para “comprar” os armamentos coreanos em troca de petróleo e alimentos, negociando um acordo-quadro, amplo, com o país. Visava com isso criar condições de confiança entre as duas partes. Kim Jong II exige o fim do embargo econômico de Seul e o abrandamento do bloqueio imposto por Washington, assim como o reconhecimento do país pelos Estados Unidos. Clinton envia ao país a secretária de Estado Madaleine Albright, estando a poucos passos do reconhecimento oficial. Tal política causa grande animosidade entre os neoconsercadores na oposição, que declaram a Administração Clinton “fraca”.
Ao mesmo tempo, o Japão envia ajuda alimentar, enquanto Seul inicia um amplo diálogo com o Estado irmão/inimigo. Em inédita visita a Pyongyang, em 2000, o presidente da Coréia do Sul, Kim Dae-Jung, é saudado efusivamente por multidões nas ruas da capital comunista. O resultado da visita é a formação de joint-ventures entre os dois Estados, com empresas sul-coreanas trabalhando no fornecimento de energia ao Estado vizinho. Da mesma forma entrará em funcionamento uma ligação férrea entre ambas as Coréias. Famílias separadas pela guerra de 1950-53 podem se encontrar pela primeira vez, e nas Olimpíadas de Sidney as duas Coréias desfilam juntas. No fim do ano, Kim Dae-Jung ganha o Prêmio Nobel da Paz pelo trabalho em prol da pacificação das duas Coréias.
É neste quadro que o Presidente Bush assume o poder em 2000 e congela as relações entre os dois países. Em 2002, para grande surpresa de Pyongyang – e também de Teerã – Bush declara, no seu agora notório discurso – a Coréia do Norte como parte do “Eixo do Mal”, ao lado do Iraque, do Irã e de Cuba. Para Bush e seus neoconservadores estes países deveriam ser tratados como Estados-fora-da-lei – outlaw states – e seus regimes condenados como “postos avançados da tirania”. A invasão do Iraque logo depois, em 2003, a pressão sobre o Irã, acabam por convencer Pyongyang que a fala de Bush não era meramente retórica e, como no caso do Iraque, os Estados Unidos preparavam a invasão do país.
É neste momento que Kim Jong II decide-se pela estratégia de “fuga para frente e para o alto”. Trata-se de aceitar as acusações de desenvolver armas ofensivas (balística+armas atômicas) como elemento dissuasor de um ataque norte-americano. Sabendo-se incapaz de enfrentar uma longa guerra contra os Estados Unidos, Kim Sung II ameaça destruir Seul, Tóquio ou Nagoya, transformando seus habitantes em reféns da crise coreano-americana.
A tsunami estratégica
Para alguns importantes Estados da orla do Pacífico oriental, a posse de armas atômicas por Pyongyang é um risco demasiado elevado. Teme-se o que em política internacional passou a ser chamado “estado de paranóia” da liderança norte-coreana, ou mais simplesmente sua capacidade de levar à sério todas as ameaças da Administração Bush, incluindo-se aí a política de mudança de regime em Pyongyang. Por outro lado, a fraqueza do país e a possibilidade de um golpe militar criam a sensação de que tais armas não estão sob perfeito controle do Estado naquele país. Por fim, Washington insiste neste ponto, num ato de vingança, a Coréia do Norte poderia entregar um engenho nuclear a um grupo terrorista que assumiria o ônus de sua utilização contra o Japão, Austrália ou mesmo os Estados Unidos.
Ocorre que três dos Estados com a maior sensação de ameaça em face de uma Coréia Nuclear – Japão, Coréia e Austrália – possuem completa capacidade de desenvolvimento de armas atômicas. Não só possuem o conhecimento técnico, como ainda possuem os recursos financeiros adequados para produzir bombas num espaço de 15 a 30 meses. Além, é claro, de controlarem eficientes vetores de lançamento, tanto em termos de aviação supersônica quanto na área da balística intercontinental. Pelo menos em um destes países, o Japão, há uma forte corrente nacionalista – incluindo-se aí o partido no governo – que defendem a produção de armas nucleares como a única forma de deter a ameaça coreana. Desde 2001, o Japão superou a cláusula constitucional de envio de tropas ao exterior – hoje possui um contingente no Iraque – e suas (assim chamadas) Forças de Autodefesas possuem o quarto orçamento militar do mundo, com um número superior de homens sob a bandeira do que o Brasil.
O tsunami, entretanto, não para aí – no retorno ao cenário mundial do Japão como potência militar. A nova situação choca-se diretamente com os interesses da China Popular. Embora com boas relações com Beijing, o regime de Pyongyang mostra-se claramente autônomo – como menosprezou a declaração conjunta do Secretário Geral Hu Jintao e o Premier Abe (China, Japão respectivamente) de 08/10/2006 quanto ao caráter “inaceitável” de um teste nuclear norte-coreano.
Não só Beijing teme mais um vizinho nuclear (já possui a Rússia, Índia e Paquistão), como teme, ainda mais, a possibilidade do Japão decidir-se pela construção de um arsenal nuclear próprio. Com 150 anos de disputas violentas com Tóquio, tendo sofrido a ocupação e o holocausto de chineses nas mãos nipônicas, a China veria como uma grande ameaça a nuclearização das forças armadas japoneses. Pyongyang estaria, no momento, dando motivos – para a grande irritação de Beijing – para os nacionalistas japoneses (entre os quais o próprio premier Abe) imponham ao parlamento e à opinião pública um projeto nacional armamentista. Em tais condições – considerando o Japão um aliado e uma democracia estável – que Washington não se oporia a tal projeto.
Em tal cenário caberia a China Popular deter o avanço do militarismo japonês, o que poderia desencadear uma nova e violenta “Guerra Fria” no Pacífico Oriental.
(Por
Francisco Carlos Teixeira,
Agência Carta Maior, 09/10/2006)