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2006-10-09
Localizada no centro do Pará, a Terra do Meio é uma das regiões mais importantes para conservação da sociobiodiversidade da Amazônia, mas também o palco de um dos maiores conflitos fundiários no Brasil. Seu destino pode servir para avaliar a real capacidade do Poder Públido para desenvolver e proteger a floresta amazônica.

A área atrai a cobiça de grileiros e madeireiras ilegais. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) confirma a intenção de criar, até o fim do ano, a Reserva Extrativista (Resex) do Médio Xingu, e o governo paraense promete decretar, dentro do mesmo prazo, a Floresta Estadual do Iriri e a Área de Proteção Ambiental (APA) Triunfo do Xingu, todas na Terra do Meio, no centro do Pará.

As três Unidades de Conservação (UCs) poderão somar-se a outras cinco já existentes, além de duas Terras Indígenas (TIs), que cobrirão, assim, a totalidade dos 7,9 milhões de hectares da região. A Terra do Meio é assim denominada por situar-se entre o rio Xingu e seu afluente Iriri, abrangendo ainda trechos dos municípios de Altamira e São Félix do Xingu em meio a oito TIs.

A região é reconhecida por pesquisadores, organizações da sociedade civil e, ao menos no discurso, pelo governo como uma das mais importantes para a conservação da sociobiodiversidade da floresta amazônica, com uma riqueza biológica e genética ainda pouco conhecida. Lá habitam mais de 200 famílias de ribeirinhos abandonadas pelo Poder Público, mas fundamentais para a manutenção dos ecossistemas locais e detentoras de um conjunto de conhecimentos tradicionais de valor igualmente inestimável.

A Terra do Meio tem mais de 90% de seu território ainda bem conservados, mas sofre com o avanço da fronteira agrícola e um intenso conflito fundiário que envolve desde as comunidades locais e fazendeiros até poderosos grupos econômicos nacionais. A área é alvo de grileiros, pistoleiros, garimpos e madeireiras ilegais por causa de seus imensos estoques de madeiras-de-lei, minérios, terras públicas e devolutas.

As duas maiores UCs da região – a Estação Ecológica (Esec) da Terra do Meio, com 3,3 milhões de hectares, e o Parque Nacional (Parna) da Serra do Pardo, com 445 mil hectares – foram decretadas, em 17 de fevereiro de 2005, como parte de um grande pacote ambiental que serviu como resposta do governo federal à série de assassinatos de trabalhadores rurais e líderes do movimento social do Pará, principalmente à morte da freira estadunidense Dorothy Stang, ocorrida alguns dias antes, em Anapu, 700 quilômetros a sudoeste de Belém.

As medidas em reação ao crime também incluíram operações de fiscalização do Ibama e ações de regularização fundiária do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), entre outras. Muitas das ações já estavam previstas no Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia, lançado pelo governo federal, em março de 2005, mas foram antecipadas por causa das mortes.

Em novembro de 2004, já havia sido criada a Resex do Riozinho do Anfrísio, com 736 mil hectares. Em junho de 2006, foi instituída a Resex do Iriri, com 398,9 mil hectares.

Criação de áreas protegidas contra a devastação
A movimentação dos órgãos do Estado brasileiro e a oficialização das áreas protegidas causaram grande repercussão nos municípios ao redor da Terra do Meio. A instalação do Ministério Público Federal (MPF), da Justiça Federal e de uma das bases operativas definidas pelo plano de combate ao desmatamento, em Altamira, por exemplo, inibiram a prática do desmatamento ilegal, da grilagem e da violência cometida contra ribeirinhos.

Os grandes, médios e pequenos criminosos que impunham uma ordem paralela ao Estado na região – exatamente como acontece em muitas favelas de grandes cidades do País – assustaram-se com as notícias sobre a repressão. O resultado é que houve uma queda no desmatamento no período imediatamente posterior às ações do governo. Segundo dados do ISA, isso só não teria acontecido na Resex do Riozinho do Anfrísio.

Apesar da presença relativa do Poder Público depois do assassinato de Dorothy Stang, a região continua pressionada pela demanda por madeira e novas terras vindas das cidades ao seu redor. São Félix do Xingu, município mais próximo por via terrestre, deve ser pelo quinto ano consecutivo o campeão do desmatamento da Amazônia.

Integrantes dos movimentos sociais levantam indícios de que a devastação já voltou à Terra do Meio depois do impacto inicial causado pelas medidas oficiais. Segundo o Greenpeace, que sobrevoou há pouco tempo a região, continuam ocorrendo queimadas, extração ilegal de madeira, movimentação de caminhões e tratores. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) também confirmam um número razoável de focos de calor, nos últimos meses, na Esec e no Parna, UCs de proteção integral onde são proibidas queimadas.

A Terra do Meio ainda está bem conservada também por causa da barreira representada pelas oito Terras Indígenas que a cercam. Os dados de desmatamento sobre o Pará como um todo também reforçam os indícios de que a situação na Terra do Meio talvez não seja tão boa.

Números ainda não consolidados do Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter) dão conta de que o Estado apresentou um aumento de até 50% na taxa de desflorestamento, entre os períodos 2004-2005 e 2005-2006, e foi recordista em focos de calor. Em agosto, foram registrados 33,1 mil focos, (mais de 30% do total na Amazônia), sendo 1.801 em UCs e 1.925 em TIs.

Implementação das UCs é demorada
O governo federal admite que tem dado mais prioridade à formalização de UCs do que à sua implementação - o que pode abrir espaço ao desmatamento. Em 2006, o Programa Áreas Protegidas da Amazônia (Arpa) disponibilizou mais de R$ 2,3 milhões para a Esec, o Parna e as duas Resex já criadas. Até setembro, foram gastos pouco mais de R$ 130 mil, apenas 5,6% do total. Segundo o Ibama, por falta de pessoal capacitado e pela demora dos trâmites no serviço público para compra de equipamentos e contratação de serviços. Apenas três funcionários da gerência-executiva do órgão ambiental em Altamira foram destacados para cuidar exclusivamente dos 4,9 millhões de hectares das quatro UCs, território maior que o do Espírito Santo.

“Acho um absurdo que ainda não tenhamos uma equipe operando lá [na Esec e no Parna]. A pressão é grande para que se faça”, assegura o secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente (MMA), João Paulo Capobianco. Apesar da situação, ele garante que a região continua sendo uma prioridade nos planos do governo federal. “Mas lá as UCs pelo menos têm recursos. Tem UC que nem tem recursos”. Capobianco confirma que várias áreas protegidas atravessam uma “fase de transição difícil” por causa dos processos burocráticos complicados para formação e nomeação dos funcionários responsáveis por elas.

O mosaico da Terra do Meio
As UCs da Terra do Meio foram propostas em um estudo realizado, em 2002, pelo Instituto Socioambiental (ISA) sob encomenda do MMA. O mesmo trabalho apontou a necessidade de englobá-las em um mosaico. Esta figura jurídica está prevista pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC, Lei nº 9.985/00) e é reconhecida como instrumento de vanguarda na conservação da biodiversidade, mas ainda não devidamente testado no país.

As áreas protegidas de um mosaico são geridas de forma compartilhada, com participação não apenas do órgão público responsável, mas também da sociedade civil organizada e de comunidades locais. Isso implica melhor aproveitamento dos recursos e dos funcionários de cada uma das UCs a partir de um planejamento estratégico integrado para sua proteção, monitoramento e uso do conjunto.

Apesar da previsão legal, até hoje apenas dois mosaicos foram formalmente instituídos no Brasil. O governo federal não regulamentou sua aplicação nem foi capaz de formular uma política estruturada para estimulá-la. O mosaico de áreas protegidas da Terra do Meio permanece sendo uma promessa enquanto algumas de suas UCs continuam no papel e outras nem mesmo foram inscritas na letra da Lei. É bom lembrar que essas UCs têm destinações diferentes – algumas são de uso sustentável e outras de proteção integral, o que complica ainda mais sua administração.

Por tudo isso a Terra do Meio é um desafio à capacidade do Estado brasileiro de formular, coordenar e implantar políticas socioambientais e de ordenamento territorial. O destino da região pode ser uma boa pista para saber se o Poder Público será capaz, nos próximos anos, de proteger Amazônia e colocar em prática uma alternativa sustentável ao modelo de desenvolvimento predatório que nela impera hoje.

Um corredor de biodiversidade de 28 milhões de hectares
A proteção da Terra do Meio poderá significar também a formação de um outro grande conjunto de 19 TIs e dez UCs contíguas, ao longo da Bacia do Rio Xingu, desde o nordeste do Mato Grosso até o centro do Pará, com um total de 28 milhões de hectares - o equivalente ao território do Equador - e uma população de mais de 12 mil pessoas, entre não-indígenas e 25 etnias indígenas. Trata-se de um dos maiores corredores de biodiversidade do mundo e o segundo maior do Brasil, ainda mais importante para a conservação por se tratar de uma ligação entre os dois maiores biomas nacionais – a Amazônia e o Cerrado – fundamental para a manutenção das populações de várias espécies, algumas endêmicas.

Os corredores ecológicos também estão previstos pelo SNUC, mas igualmente carecem de regulamentação. As experiências com este tipo de zona de amortecimento ambiental também são muito poucas no país, não existem recursos e diretrizes governamentais consistentes para estimular a sua implantação. Por sua vez, as TIs são reconhecidas há algum tempo como essenciais à preservação da biodiversidade, o que foi reforçado no Plano Nacional de Áreas Protegidas lançado recentemente pelo governo federal.

A formação de um território legalmente protegido na Bacia do Rio Xingu com essa extensão e importância, portanto, amplia o desafio representado pela Terra do Meio. A pergunta que se coloca mais uma vez é: o Poder Público terá condições de gerir e resguardar um conjunto tão grande de áreas com diferentes destinações e órgãos responsáveis (Ibama e Fundação Nacional do Índio-Funai), levando em conta o quadro de restrições orçamentárias e de desarticulação político-administrativa já tradicionanal ao longo de sucessivos governos?

O assassinato de Dorothy Stang
No início da manhã de 12 de fevereiro de 2005, a freira estadunidense naturalizada brasileira Doroty Stang, 73 anos, andava por uma estrada do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Esperança, do Incra, a cerca de 45 quilômetros da sede urbana de Anapu (PA), para visitar uma comunidade de agricultores próxima. A missionária foi abordada por dois homens que lhe perguntaram se estava armada. Ela teria respondido que sim e apontado uma bíblia, segundo uma testemunha. Depois, leu alguns trechos do livro. Em seguida, foi assassinada com sete tiros.

Irmã Dorothy, como era conhecida, vinha sendo ameaçada de morte por denunciar a ação ilegal de grileiros de terras, fazendeiros e madeireiros contra trabalhadores rurais e assentados na região da rodovia Transamazônica (BR-320). A religiosa era integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e trabalhava na Amazônia desde os anos 1970, defendendo a reforma agrária e a floresta. Órgãos dos governos federal e paraense foram alertados das ameaças pelo menos um ano antes do crime.

Na semana seguinte, mais sete pessoas, entre trabalhadores rurais e líderes do movimento social, foram assassinadas no interior do Pará. O assassinato repercutiu dentro e fora do País, reforçou a imagem de que a Amazônia seria uma terra sem lei e resultou em desgaste político à administração federal.

A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e outras autoridades insistiram que a violência era uma reação às medidas governamentais de regularização fundiária e proteção ambiental. Do início do mandato de Lula até o crime contra Dorothy, cerca de 50 pequenos agricultores e ativistas sociais foram assassinados no Pará.

No dia 17 de fevereiro de 2005, Marina Silva anunciou a oficialização de 5,2 milhões de hectares em áreas protegidas em toda a Amazônia – 3,7 milhões na Terra do Meio – e o envio do Exército e da Polícia Federal à região da rodovia Transamazônica. Também foram interditados para estudos 8,2 milhões de hectares na área de influência da rodovia Cuiabá-Santarém (BR-163), no Pará, e encaminhado ao Congresso Nacional o Projeto de Lei de Gestão de Florestas Públicas. A intenção do governo seria garantir manutenção da “ordem pública e do Estado de Direito no Pará”.
(Por Oswaldo Braga de Souza, ISA, 06/10/2006)

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