"Investir no meio ambiente dá lucro e é excelente para o planeta. Os
políticos estão começando a perceber isso"
Afastado dos cargos públicos desde que perdeu a disputa pela Casa Branca
para George W. Bush, seis anos atrás, o ex-vice-presidente Al Gore
converteu-se num inflamado pregador da salvação do planeta por meio do
desenvolvimento de novas tecnologias e da adoção de atitudes contra a
poluição. Seu documentário "Aquecimento Global: uma Verdade
Inconveniente", baseado nas mais de 1.000 palestras que proferiu sobre
os riscos das mudanças climáticas, foi a estréia de maior repercussão no
Festival de Cannes, em maio. Filho de um senador, ele preocupa-se com
questões ambientais desde o início de sua carreira política, em 1976. Há
dois anos, para provar que investir no verde é bom negócio, Gore abriu
com sócios um fundo de investimentos que administra 200 milhões de
dólares aplicados na produção de energia sustentável. Também comprou um
canal de TV a cabo especializado em assuntos ambientais. Aos 58 anos, Al
Gore vem ao Brasil na próxima semana a convite da Câmara Americana de
Comércio para a cerimônia do Prêmio Eco 2006. Da Califórnia, ele
concedeu a seguinte entrevista à Veja.
Veja – Qual a importância da Amazônia na prevenção do aquecimento
global?
Gore – Há dois pontos principais a considerar a respeito da
Amazônia. Primeiro, a ação humana fez com que as florestas, aspiradores
naturais do gás carbônico, se tornassem grandes emissores desse
poluente. A cada ano, 10 trilhões de toneladas de CO2 são lançadas na
atmosfera e, desse total, 2,5 trilhões são produzidas pelas queimadas.
Não sei precisar a contribuição exata do desmatamento da Amazônia para
toda essa poluição. Os brasileiros precisam agir com urgência para frear
o ritmo das queimadas. Estamos vivendo uma crise global e todos precisam
participar do esforço de reduzir a emissão de gás carbônico. O segundo
ponto é que, ao devastarmos as florestas tropicais, não apenas afetamos
o clima e a biodiversidade, mas também perdemos as riquezas naturais
contidas nessas matas. Acredito que, do ponto de vista brasileiro, faz
sentido preservar a floresta para o bem – inclusive econômico – do
Brasil. As espécies vegetais, a maioria delas ainda desconhecida da
ciência, valem milhares de centenas de vezes mais do que a agricultura
de subsistência ou a lavoura de soja que estão substituindo a floresta.
Veja – Muitos brasileiros temem que a pretexto de garantir a
preservação da floresta surjam propostas de internacionalizar a
Amazônia. O senhor acredita que isso seja possível?
Gore – O que acontece no Brasil deve ser uma decisão soberana do
povo brasileiro. Não pode ser uma decisão internacional ou de outro
país. O tema da participação estrangeira na preservação da Amazônia já
causou muitos desentendimentos. É perfeitamente possível para uma nação
tão grande quanto o Brasil descobrir e garantir a riqueza existente na
Amazônia e usar esse conhecimento de forma bem-intencionada.
Veja – O que os outros países podem fazer para ajudar?
Gore – Uma coisa que os Estados Unidos poderiam fazer para ajudar
o Brasil seria remover as altas taxas sobre a cana-de-açúcar e o álcool
combustível. Isso sim ajudaria o Brasil.
Veja – O senhor acha que a experiência brasileira no uso de
álcool combustível pode ser reproduzida em escala global?
Gore – O álcool é o substituto mais importante que temos hoje
para os combustíveis fósseis. Acredito que seja uma solução concreta
para a ameaça de aquecimento da Terra. É claro que há limites para a
produção de álcool na enorme escala necessária para substituir
totalmente a gasolina, mas já estão sendo desenvolvidas técnicas para
resolver esse problema. São tecnologias que, no futuro, poderão produzir
álcool pela metade do preço do petróleo. O mais importante é que
permitirão produzir o combustível com raízes, bagaços e folhas de
plantas, evitando que alimentos sejam usados para esse fim. Se
conseguirmos avançar nesse ponto, não haverá mais a competição comida
versus combustível.
Veja – Já é possível imaginar um mundo que não dependa do
petróleo?
Gore – O Brasil não só inovou no desenvolvimento desse
combustível alternativo como se tornou líder mundial dessa indústria. O
país pode ensinar o resto do mundo a ter um melhor entendimento na
solução de problemas relacionados aos combustíveis fósseis. Prova disso
é o sucesso dos carros flex. Esses veículos mostram aos demais países
que há alternativas viáveis e que não é necessário mendigar a
misericórdia dos países do Oriente Médio e da Venezuela.
Veja – Pelo que o senhor diz, a ecologia pode ser um ótimo
negócio.
Gore – É um excelente negócio tanto para a economia quanto para o
meio ambiente. A Toyota só tem lucros com seu carro híbrido. Já os
fabricantes tradicionais só têm prejuízos. A General Electric decidiu
recentemente tornar-se uma empresa engajada na preservação ambiental e
está ganhando muito dinheiro nesse processo. O mesmo faz a DuPont, a
gigante da indústria química. Empresas gigantes não entram em negócios
para perder dinheiro.
Veja – O senhor tem negócios ligados à ecologia, não é?
Gore – Tenho dois. Um canal de televisão dedicado à divulgação de
assuntos ambientais e um fundo de investimentos para novas tecnologias.
Ambos vão muito bem, obrigado. Essas iniciativas são do tipo que
chamamos de carbon-free, ou seja, não emitem CO2 e usam energias
alternativas. Em outras palavras, não poluem. Estou tendo muito lucro,
sim. Não vejo problema nenhum nisso. Espero que as pessoas percebam que
todos podem lucrar – ambiental e economicamente – se agirem como eu.
Veja – Em seu documentário sobre o aquecimento global, o senhor
pinta um quadro assustador da situação ambiental do planeta. No fim,
muda o tom e diz que basta mudarmos nosso estilo de vida para reverter
tudo. Não é muito otimismo?
Gore – Certamente não é tão fácil assim. As recomendações
mostradas no fim do filme sobre o que cada indivíduo pode fazer para
melhorar a vida na Terra são importantes, mas sozinhas não resolvem a
crise. As pessoas devem se organizar para pressionar por mudanças nas
políticas públicas. Cada pessoa que adota um estilo de vida ecológico
encoraja o governo a tomar decisões a favor da preservação ambiental.
Isso ocorre na Califórnia e em outros estados americanos que vão em
direção contrária à política ambientalista de Washington, que rejeitou o
Tratado de Kioto.
Veja – Muitos cientistas acham que já é tarde demais para evitar
o desastre. James Lovelock, o criador da Hipótese Gaia, sustenta que as
mudanças climáticas eliminarão 80% da população mundial até o fim do
século.
Gore – Lovelock, por quem tenho imenso respeito, é muito
pessimista e erra em presumir que o ser humano é incapaz de mudar seu
comportamento. Sei algo sobre política que ele não sabe. Os políticos
são em geral muito lentos, e isso se reflete na condução do governo e na
tomada de decisões. Por outro lado, eles podem agir com muita rapidez se
pressionados pelos eleitores. Foi assim quando os Estados Unidos tomaram
a decisão de enviar um homem à Lua e fizeram isso em menos de dez anos.
O mesmo aconteceu quando os aliados reagiram ao fascismo. Em 1940, a
idéia de montar 1 000 aviões de guerra por ano era considerada insana.
Em 1943, esse número estava muito abaixo da capacidade industrial.
Veja – Dez anos não é um tempo curto demais para mudanças capazes
de afetar o clima em escala global?
Gore – Não precisamos fazer tudo em dez anos. De qualquer forma,
seria impossível. A questão é outra. De acordo com muitos cientistas, se
nada for feito, em dez anos já não teremos mais como reverter o processo
de degradação da Terra. Os estudos mostram que é necessário iniciar
imediatamente uma forte redução na emissão de gases poluentes. O
primeiro objetivo seria estabilizar a quantidade de poluentes na
atmosfera. E então, quem sabe, depois de cinco anos, começar a reduzir o
montante de CO2 no planeta.
Veja – O senhor já começou a mudar seu estilo de vida?
Gore – Há dois anos decidi viver uma vida sem carbono. Tudo o que
eu e minha família fazemos visa a emitir a menor quantidade possível de
gás carbônico. Temos carros híbridos, usamos energia verde, evitamos
água quente, desligamos nossos aparelhos elétricos quando eles não estão
sendo usados. Claro que ainda pego aviões comerciais e vou tomar um para
ir ao Brasil. Mas a minha emissão pessoal de carbono nas viagens é
compensada com a divulgação que faço do tema.
Veja – Qual é a maior ameaça ao planeta atualmente?
Gore – Não vejo só uma ameaça, mas uma combinação de fatores. A
superpopulação é um deles. Daí a necessidade de tecnologias que evitem o
uso de alimentos como fonte de energia. O mundo não pode suportar por
muito tempo o crescimento do consumo no ritmo atual. O número de pessoas
quadruplicou nos últimos 100 anos. Isso é muita gente. A boa notícia é
que o tamanho das famílias nos países onde há educação para o povo,
justamente aqueles que consomem mais, está diminuindo de forma jamais
imaginada. O importante é evitarmos aquilo que Jared Diamond mostrou em
seu livro "Colapso". Ou seja, civilizações que se autodestroem em nome
do progresso.
Veja – A escassez de água potável é um problema cada vez mais
grave. Um dia a água valerá mais do que o petróleo?
Gore – Em poucos anos a água será um problema sério em muitos
países. Isso devido tanto ao aumento da população quanto às estratégias
ignorantes de determinados países em relação a esse bem. Não tenho
dúvidas de que a água será uma commodity preciosa. Na minha opinião, ela
já vale mais do que o petróleo. Note que uma garrafa de água mineral
custa mais do que o equivalente em gasolina. E não estou falando de
águas de marcas famosas, como San Pellegrino.
Veja – O senhor considera a energia nuclear uma boa alternativa
ao consumo de combustíveis fósseis?
Gore – Não acredito nessa opção. É possível que ocorra um aumento
no uso de energia nuclear, mas creio que será mínimo. Trata-se de uma
opção complicada por duas razões. A primeira é o alto custo. Essa ainda
é uma tecnologia muito cara. A segunda, e mais importante, é que a
energia nuclear é sempre um risco. Ao se permitir o seu uso, aumenta
bastante o risco de proliferação de armas nucleares. Os oito anos em que
estive na Casa Branca me alertaram para as dimensões desse desafio.
Alguns países anunciaram a intenção de obter tecnologia nuclear para
produzir energia e na verdade estavam interessados em fabricar armas
atômicas. Hoje temos a ameaça da Coréia do Norte, que aliás já tem armas
nucleares, e do Irã. Em todo caso, se houver o desenvolvimento de uma
nova geração de reatores mais seguros, poderíamos tolerar o uso moderado
dessa energia.
Veja – Em seu documentário, o senhor se refere várias vezes a
aspectos de sua vida pessoal. Por quê?
Gore – Um desses episódios foi o incidente com o meu filho, que
quase morreu quando criança. Ao vermos um ente querido à beira da morte,
somos levados a reavaliar nossas prioridades na vida. O incidente deu-me
maior entendimento emocional do significado de uma grande perda. O que
será do planeta daqui a vinte anos, caso não façamos nada? O que será
dos nossos filhos?
Veja – O presidente George W. Bush rejeitou o Tratado de Kioto
para reduzir as emissões de carbono e tomou outras medidas que
desagradaram aos ambientalistas. Qual é sua avaliação da política
ambiental do presidente americano?
Gore – Eu já perdi a objetividade no que diz respeito a Bush.
Todas as suas políticas me assustam. Na verdade, nesse campo suas ações
são extremamente perigosas para todo o mundo. O encarregado da pasta de
Meio Ambiente de seu governo não passa de um censor. Ele censurou a
maioria dos trabalhos científicos sobre meio ambiente. Catorze senadores
acabam de começar uma investigação a esse respeito. Espero que o
Congresso consiga punir o presidente por isso.
Veja – O senhor ainda está ressentido por ter perdido as eleições
presidenciais para Bush apesar de ter obtido maior votação popular?
Gore – Eu não guardo mágoas. Não olho para o passado, olho para o
futuro.
Veja – O senhor vai se candidatar novamente à Casa Branca?
Gore – Eu não planejo concorrer. Na verdade, não descarto
totalmente essa possibilidade, ainda que não conte com isso.
Veja – O senhor acredita que uma plataforma baseada na defesa do
meio ambiente ajuda ou atrapalha na política americana?
Gore – Ajuda, sem dúvida. Os políticos estão começando a perceber
isso. Veja o caso de (Arnold) Schwarzenegger na Califórnia. O governador
está ganhando força e popularidade graças às suas ações em prol do meio
ambiente. Claro que o terrorismo também é um tema importante. Os
políticos têm de cuidar das duas coisas de forma inteligente. A guerra
no Iraque converteu o terrorismo numa ameaça ainda maior do que já era.
Mas o aquecimento global é a pior crise que já enfrentamos.
Veja – No Festival de Cannes, no qual seu documentário foi
exibido, o senhor atraiu mais atenção da imprensa do que astros como Tom
Cruise e Penélope Cruz. O que é mais emocionante, ser um político ou um
astro do cinema?
Gore – Sou velho o bastante para não me iludir com o tapete
vermelho. Gostaria, isso sim, de fazer outro filme. O problema é que
precisaria de mais trinta anos de experiência em um assunto para ter
competência para fazer um filme e ter coragem de apresentá-lo.
(Por Gabriela Carelli,
Veja, 11/10/2006)