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2006-10-03
Equilibrar a oferta e a demanda de água foi, historicamente, responsabilidade dos governos nacionais. Mas agora a escassez hídrica atravessa fronteiras por causa do comércio internacional de cereais. Produzir uma tonelada desses alimentos consome mil toneladas de água. Assim, importá-los é a maneira mais eficiente de importar água. Os países usam cereais para balancear suas contas hídricas. De modo semelhante, comercializá-los no futuro é, de certo modo, fazê-lo com a água no futuro. A falta de água já prejudica as colheitas em alguns países, entre eles a China, maior produtora mundial de cereais.

O bombeamento excessivo reduziu o já pouco profundo aqüífero que se estende sob sua planície setentrional, obrigando os agricultores a recorrerem às camadas profundas do aqüífero fóssil da região, cujas reservas são limitadas. Os produtores de trigo em algumas áreas da planície agora retiram água a uma profundidade de 300 metros. A produção chinesa de cereais caiu de seu máximo histórico de 392 milhões de toneladas, em 1998, para 358 milhões de toneladas no ano passado, segundo estimativas. Essa redução de 34 milhões de toneladas excede a colheita de trigo canadense. A China cobriu amplamente essa redução apelando para suas outras existências até 2004, a ponto de importar sete milhões de toneladas de grãos.

A escassez de água é inclusive mais séria na Índia, simplesmente porque a margem entre o consumo real de alimentos e a sobrevivência é muito precária. As colheitas de trigo e arroz, os principais grãos da Índia, ainda aumentam. Mas nos próximos anos a perda de água de irrigação poderá superar os avanços tecnológicos e diminuir as colheitas em algumas partes do país, como já ocorre na China. Depois de China e Índia, existe uma segunda série de países com grande déficit hídrico: Argélia, Egito, México, Irã e Paquistão, sendo que os três primeiros já importam boa parte de seus grãos. Entretanto, ao mesmo tempo em que a China, o Paquistão recorreu abruptamente ao mercado mundial em 2004, para importar 1,5 milhão de toneladas de trigo. É provável que suas necessidades de importações aumentem nos próximos anos.

Oriente Médio e África setentrional – desde Marrocos, no oeste, até o Irã, no leste – se converteram no mercado de importação de cereais de crescimento mais acelerado. A demanda por grãos se deve tanto ao rápido crescimento da população quanto ao crescente bem-estar econômico, produto, em boa parte, das exportações de petróleo. Com praticamente cada país da região pressionando ao máximo seus limites hídricos, a crescente demanda urbana de água pode ser satisfeita somente reduzindo a irrigação da agricultura.

Egito, com cerca de 74 milhões de habitantes, se tornou grande importador de trigo nos últimos anos. Já disputa o primeiro lugar com o Japão. Agora, importa 40% de seu consumo total de cereais, proporção que cresce à medida em que o consumo de sua crescente população supera a colheita irrigada pelo Rio Nilo. A Argélia, com 33 milhões de habitantes, importa mais da metade de seus grãos, o que significa que a água incorporada ao cereal importado excede o uso de água de origem para todo propósito. Devido à sua forte dependência das importações, a Argélia é particularmente vulnerável a qualquer variação do mercado mundial de grãos.

No total, a água necessária pra produzir cereais e outros produtos agrícolas importados pelo Oriente Médio e África setentrional no ano passado igualaram o fluxo anual do Rio Nilo na represa de Aswan. Assim, o déficit hídrico da região representa outro Nilo fluindo na região sob a forma de grãos importados. Costuma-se dizer que as futuras guerras no Oriente Médio serão travadas mais por causa da água do que pelo petróleo, mas a competição hídrica já é evidente nos mercados mundiais de grãos. São os países financeiramente mais fortes – não necessariamente aqueles que o são do ponto de vista militar – os que ficaram melhor situados nesta competição.

Saber onde amanhã estarão concentradas as exportações de cereais requer olhar quais regiões e países sobrem hoje com o déficit hídrico. Até agora, os que importam boa parte de seus grãos têm sido os menores. Agora o déficit cresce rapidamente, tanto na China quanto a Índia, cada um com mais de um bilhão de habitantes. A cada ano se amplia a brecha entre o consumo mundial de água e seu fornecimento sustentável. Tanto a redução do aqüífero quanto o desvio da água para as cidades contribuirá com o crescente déficit de irrigação e, portanto, com uma escassez maior em países com poucas reservas hídricas. O bombeamento excessivo para satisfazer a crescente demanda de alimentos garante uma queda da produção agropecuária no futuro, quando os aqüíferos estiverem esgotados.

Por isso, muitos países criam uma “economia de bolha alimentar”. Segundo esse critério, a produção de alimentos é inflada artificialmente pela extração insustentável de água subterrânea. Os efeitos não foram óbvios quando os agricultores começaram a bombear água em grande escala há poucas décadas. A grande conveniência de usar com essa finalidade os lençóis subterrâneos sem apelar para sistemas de água superficial em grande escala é que os produtores podem regar cultivos somente quando é necessário, maximizando a eficiência. Além disso, a água subterrânea também está disponível na estação seca, o que permite a muitos agricultores de regiões temperadas duplicar seus cultivos.

Nos Estados Unidos, 37% da água de irrigação são subterrâneos. O restante procede de fontes da superfície. Três grandes produtores de cereais – os Estados do Texas, Kansas e Nebraska – obtêm, a cada ano, entre 70% e 90% de sua irrigação do aqüífero Ogallala, de origem fóssil com pouca recarga. A incomum alta produtividade da irrigação de fontes subterrâneas significa que as perdas na produção de alimentos serão desproporcionalmente grandes quando estas reservas se esgotarem. Até que ponto a escassez hídrica se traduz em escassez alimentar? Em quais países as perdas na água para irrigação pela redução de aqüíferos redunda em uma queda na produção de cereais?

David Seckler e seus colegas do Instituto Internacional para o Manejo da Água, resumiram dizendo que “muitos dos países mais povoados do mundo – China, Índia, Paquistão, México e quase todos do Oriente Médio e da África setentrional – literalmente tiveram um passe livre nas últimas duas ou três décadas, esgotando seus recursos subterrâneos. “O castigo pelo mau manejo deste valioso recurso está chegando agora, e não é exagerado dizer que os resultados poderiam ser catastróficos para estes países e para todo o mundo”, acrescentaram.

Como a irrigação expandida ajudou a triplicar a colheita mundial de cereais entre 1950 e 2000, não é surpresa que as perdas de água reduzam as colheitas. Com água para irrigação, muitos países estão em um clássico modo de exceder e cair. Se os países que bombeiam excessivamente suas reservas subterrâneas não adotarem rapidamente medidas para reduzir o uso da água e estabilizar os balanços hídricos, será quase inevitável uma queda na produção de alimentos.
(Por Análise de Lester R. Brown, IPS, 02/10/2006)
http://www.envolverde.com.br/materia.php?cod=23049&edt=1

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