Biologia sintética pretende criar organismos não encontrados na natureza
2006-10-03
Um engenheiro pode criar vida? Um grupo de cientistas de várias
universidades americanas acredita que sim. Liderados pelo engenheiro
Tom Knight, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), eles
investigam uma nova ciência, apelidada de biologia sintética. A idéia
principal é a montagem de organismos com pequenas peças formadas por
genes, os BioBricks (tijolos biológicos). Os BioBricks são trechos de
DNA que possuem encaixes nas duas pontas. Isso permite que sejam
acoplados ao DNA de outro organismo. A inspiração são as peças do
brinquedo Lego, só que em escala minúscula. Eles seriam capazes de
alterar as funções do organismo original.
Até agora, a engenharia genética tem se ocupado apenas de alterar as
características dos seres vivos. Os biólogos transplantam genes de
uma espécie para outra e assim conseguem modificar algumas funções
das células. Nos estudos, algumas bactérias assim "tratadas" passam a
produzir hormônios humanos que podem servir para fazer remédios. Com
os BioBricks, os cientistas esperam criar seres vivos totalmente novos.
Um dos maiores entusiastas desse modelo é o americano Drew Endy,
também do MIT. Ele só podia ser engenheiro. Acompanhe o raciocínio:
"Quando um engenheiro precisa de uma peça, procura em um catálogo a
que tiver as especificações corretas e a encomenda. Não precisa
fabricá-la", diz Endy. "Os BioBricks vão colocar os biólogos na mesma
posição."
Os mais otimistas prevêem que, com os BioBricks, a biologia avance do
mesmo modo que a computação progrediu com a invenção dos chips. Assim
como acontece na eletrônica, eles esperam que esse dispositivo seja a
base da biologia sintética industrializada. O DNA de um BioBrick
contém uma combinação de genes que atua como um componente padronizado.
Quando orienta a formação de proteínas dentro da célula, obriga
aquela célula a fazer algo diferente. Endy está interessado em
desenvolver sistemas do tipo "liga e desliga", que regulem outros
genes.
Os objetivos da nova ciência são nobres: inventar remédios para
doenças negligenciadas como a malária, reduzir o uso de herbicidas,
despoluir o ambiente. Apesar de todo o entusiasmo, por enquanto há
poucos resultados concretos. Os BioBricks têm sido usados em
experiências simples apenas para demonstrar a validade do conceito.
Mas os progressos nessa área são rápidos. Rob Carlson, pesquisador da
Universidade de Washington, acredita que a evolução das técnicas
tornará possível, até o final da década, sintetizar uma amostra do
tamanho de todo o genoma humano em um único dia.
"Ainda não há muitos dados disponíveis", afirma J. Craig Venter,
presidente do instituto de mesmo nome em Rockville, em Maryland. Em
1998, o controverso Venter decidiu decifrar o genoma humano e se
lançou em uma competição com o Human Genome Project, bancado com
dinheiro público. O cientista está envolvido em nova polêmica. Em vez
de analisar genes, agora ele está sintetizando genomas. Ele diz que
está criando o "genoma mínimo". Trata-se do conjunto de genes de uma
bactéria feito em laboratório. O genoma dela é composto da menor
quantidade possível de genes necessários para a manutenção da vida.
Um material como esse apresenta duas vantagens para quem lida com
biologia sintética. Primeira: é fácil de ser feito porque é pequeno.
Segunda: não seria capaz de sobreviver fora do laboratório e, portanto,
ofereceria pouco risco de ser usado como arma biológica.
Não existe tecnologia livre de perigos, mas os da biologia são enormes.
Afinal, a matéria-prima é cultivada. Pode se reproduzir e fugir do
controle. Quanto mais a informação genética se multiplica e o custo
dos equipamentos cai, mais surgem "biohackers", gente que rouba dados
biológicos depositados em bancos internacionais. Na maioria das vezes,
com o simples objetivo de fazer arruaça, mas em outras com intenção
criminosa. Os próprios especialistas decidiram organizar debates
públicos para criar um código de ética e medidas de segurança para o
setor. Uma das idéias é fazer um registro de todos os profissionais
que lidam com esse tipo de material. Outro projeto prevê a inclusão
de alterações nas "peças de DNA". Elas poderiam se autodestruir caso
fossem retiradas do ambiente de pesquisa.
A preocupação é justificável. Com um equipamento de segunda mão e US$
50 mil é possível botar para funcionar um laboratório caseiro de
biotecnologia. O número de pessoas que lidam com esse ramo da ciência
por hobby ainda é pequeno. Mas tende a crescer. Não faltam jovens
graduados em Biologia que saem das universidades com treinamento e a
esperança de tornar-se milionários da biotecnologia a partir de
empreendimentos caseiros. É o caso da Agribiotics, empresa de
biotecnologia aplicada à agricultura, que foi vendida recentemente por
US$ 24 milhões. Ela nasceu no porão de uma casa de família.
Todo o ramo da biologia sintética é embrionário. Mas já atrai
investimentos altos, do governo americano e de universidades de ponta.
Se for bem-sucedido, uma das conseqüências será tornar menos nítida
a fronteira entre o que é vida e o que não é. Outra conseqüência pode
ser o salto da revolução digital para a revolução biológica. Os carros
só se tornaram populares no mundo depois que o engenheiro americano
Henry Ford inventou um modo de produzi-los em massa. Foi a linha de
montagem clássica. Os computadores também só se popularizaram depois
da invenção do chip. O que inspira os cientistas ligados à biologia
sintética é a chance de uma evolução similar. Com os BioBricks, seria
possível produzir não apenas remédios mais eficientes e mais baratos.
Também materiais industriais, e até fontes de energia, como o etanol.
(Época, 02/10/2006)
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG75417-6014-437,00.html