A tentativa de se camuflar num tronco seco com cor semelhante à de sua
penugem não foi suficiente para que o urutau (Nyctibius grandis) despistasse
os “inimigos”. Como dois faróis na escuridão, os olhos da ave que repousava
em uma árvore da floresta amazônica denunciaram sua presença por ali. Foi o
que bastou para que a equipe de biólogos, ainda de dentro do carro,
vislumbrasse o primeiro alvo da expedição.
Em questão de segundos, Luís Fábio Silveira – o líder do grupo – saltou para
fora, sacou sua espingarda, lançou mão do chumbo mais adequado, mirou a luz
em cima do animal e atirou. Foi pena voando para todo lado. Já na estrada de
terra, o corpo do bicho enfrentou os olhares atentos do grupo, que buscava
se aprofundar em cada detalhe da espécie.
O episódio ocorreu há cerca de duas semanas, durante a realização de um
inventário de avifauna em um trecho de mata próximo à cidade de Tailândia
(nordeste do Pará). De início, ver os biólogos sacrificando os bichos, mesmo
que para fins científicos, assusta um pouco. Mas apesar de parecer
contraditório, a prática da coleta, além de bastante comum e necessária
durante a realização de inventários, é feita para o próprio bem do animal.
“Não temos dó, mas respeito. É muito importante coletá-los para conhecermos
melhor suas características. Principalmente quando a área nunca foi estudada
antes, como é o caso desta em que estamos. Imagina pelas mãos de quanta
gente esse exemplar vai passar. Essas pessoas não precisarão voltar até aqui
e matar mais bichos”, explica Silveira.
Para alívio dos que se comovem com mais facilidade, uma informação
importante: os pesquisadores não podem matar passarinho a torto e a direito.
A licença emitida pelo Ibama, neste caso, permite o abate de cinco
exemplares por espécie a cada viagem. “Tentamos viabilizar que a pesquisa
aconteça com o menor impacto ambiental possível. Os técnicos analisam cada
processo antes de emitir a licença, levando em consideração a situação das
espécies que serão coletadas e a área pesquisada”, informa Rômulo Mello,
diretor de Fauna e Recursos Pesqueiros do Ibama. E todo o material coletado
tem como destino as coleções dos museus. O conteúdo estomacal dos animais é
conservado no formol, para permitir que os alunos estudem o bicho por
dentro. “Alguns tópicos conseguimos conhecer somente se sacrificarmos a
ave”, diz Silveira.
O biólogo foi contratado pela empresa Agropalma, que é dona de terras nos
arredores de Tailândia, para descobrir como anda a biodiversidade de aves na
região. O trabalho foi desenvolvido em parte dos 77 mil hectares de mata
nativa que compõem a reserva legal da empresa. Segundo o diretor comercial
da Agropalma, Marcello Amaral Brito, eles pretendem explorar essa floresta
com ecoturismo. “Principalmente para a observação de aves”, comenta.
Se depender da biodiversidade de aves na região, o projeto será viabilizado
em breve. Com seis expedições para o local, o biólogo contabilizou 346
diferentes espécies de pássaros. “Alta Floresta, que é uma das regiões mais
pesquisadas da Amazônia e recebe estudiosos há cerca de 10 anos, tem 450
espécies registradas. No entorno da rodovia Belém-Brasília, onde o
levantamento de avifauna durou dois anos, com os pesquisadores acampados dia
e noite no mato, tem 200”, compara. A área paraense recém-estudada abriga
ainda 8 das 11 espécies de aves ameaçadas de extinção que ocorrem na
Amazônia. Inclusive a ararajuba (Guaruba guarouba), grande atração da
região, infelizmente não avistada durante esta viagem.
Segundo as normas da Universidade de São Paulo (USP), onde leciona, Silveira
não pode receber em dinheiro pelo trabalho realizado. Em troca, pede uma
bolsa para seus alunos que o acompanham nas viagens e equipamentos para o
laboratório da instituição. Em cada expedição, ele leva um grupo diferente
de três aprendizes, para que vejam na prática como é feito um levantamento
de avifauna. Algumas técnicas contribuem para que a pesquisa se torne mais
completa. A bióloga Giulyana Althmann, que atualmente tenta uma bolsa de
mestrado na USP, sabe de cor e salteado quais são os melhores métodos de
amostragem. “Gravador, binóculo, rede e espingarda”, relaciona, enquanto
curva o pescoço para cima a fim de identificar qual pássaro corta o céu.
No meio das longas caminhadas em busca das aves, os biólogos fazem inúmeras
paradas para avistar ou coletar os animais – sempre com a ajuda desses
equipamentos. Ao encontrar um Rapazinho Estriado (Nystalus striolatus)
pousado numa árvore logo à frente, Silveira transfere a um dos alunos a
missão de pegá-lo. “A grande malícia é analisar a distância e conhecer a
arma. Também é importante marcar onde ele vai cair”, recomenda. Marco
Antônio Rego, estudante de biologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie,
mostra como aprendeu direitinho o be-a-bá do trabalho de campo. Na sua
primeira experiência com uma espingarda, encara a ave e acerta o tiro.
Orgulhoso da conquista, o aluno sai do mato com o animal em mãos.
E é bom que acerte mesmo. A coleta com armas exige bastante concentração. O
pesquisador, além de escolher o calibre e o chumbo apropriados para
determinada espécie, deve mirar no peito do pássaro. Dependendo do local em
que acerta o tiro, o bicho fica estraçalhado e não serve para mais nada. Com
as aves menores o cuidado tem que ser ainda maior. Mas, se o atirador for
bom, consegue derrubar até beija-flor.
Outra técnica utilizada é a armação de redes no meio da floresta. A montagem
dos 250 metros de arapuca ao longo da trilha dá um certo trabalho. Logo pela
manhã, todos ajudam na tarefa. São 20 redes, cuja altura atinge 2,6 metros,
estendidas de modo a não encostarem no chão, para evitar que as folhas do
solo fiquem presas a ela. São colocadas na vertical, para que a ave vá de
encontro com ela e fique agarrada. O material pertence à universidade e não
é barato. Juntas, as redes custam em torno de dois mil dólares. A cada três
dias, em média, são retiradas de um lugar e armadas em outro. “Se ficar
muito tempo em uma área, começa a cair muito bicho repetido, da mesma
espécie”, explica Silveira. À noite, são fechadas, para evitar que os
morcegos se prendam a ela.
A cada uma hora, aproximadamente, alguém verifica quais aves se enroscaram
na armadilha. Fábio Schunck, estagiário do laboratório e candidato ao
mestrado na USP, permanece de plantão enquanto o resto do grupo faz uma
caminhada de 18 quilômetros por outras áreas da floresta. Para evitar que os
animais sofram antes de serem sacrificados, o trabalho do “guarda-rede” tem
que ser rápido e cuidadoso. Assim que retira a ave da armadilha, fotografa o
exemplar para acrescentar o registro ao relatório e, em seguida, sacrifica o
bicho. “Tem de pressionar o coração e o pulmão, até que ele tenha uma parada
cardiorespiratória. Não pode soltar”, ensina Schunck. “Garantir a morte
significa apertar firme, de maneira decidida”, acrescenta o professor.
Quando a ave abre a cauda e relaxa as pernas é sinal de que morreu. “Ai, se
pudesse só tirar foto e depois soltar seria bem melhor, né?”, diz o mateiro
Maxixe, que acompanha os biólogos durante a jornada pela floresta. A soltura
ocorre com bastante freqüência, sempre que cinco indivíduos de determinada
espécie já foram coletados. A partir do segundo dia da rede armada na
primeira trilha escolhida durante a expedição, exemplares do Rendadinho
(Hylophylax poecilinota) se tornaram figuras fáceis na armadilha. Depois de
alcançar a cota permitida pelo Ibama, as aves começaram a ser devolvidas à
natureza. “Essa aí deu sorte. Se tivesse se adiantado um pouquinho e caído
na rede de manhã, nunca mais ia comer na vida”, comemora o mateiro.
Quem escolhe a profissão de biólogo tem de estar disposto a acordar cedo. E
cedo, neste caso, quer dizer por volta das 4h30. Os famosos cinco minutinhos
a mais têm de ficar para os finais de semana. Isso quando eles existem.
Todos os dias, invariavelmente, o grupo pula da cama ainda de madrugada.
Café da manhã tomado, o destino é o mato, onde ficarão até o horário do
almoço. À tarde tem mais trabalho e, às vezes, até mesmo após escurecer -
único jeito de encontrar as espécies de hábitos noturnos. Depois de ver e
falar o dia inteiro sobre passarinhos, a equipe, ao voltar para a casa,
dificilmente deixa os bichos de lado.
Em cima da mesa do alojamento, o livro Aves do Brasil, de Tomas Sigrist é
uma prova de que haverá mais trabalho pela frente. Entre uma espiadinha na
televisão e uma desviada de assunto, os biólogos utilizam a “bíblia da
ornitologia” para identificar as aves que viram durante o dia. É uma forma
de memorizar a infinidade de espécies existentes, seus locais de ocorrência,
tamanhos e características. A paixão e o prazer transformam o trabalho em
diversão, mas sempre com muita seriedade. Em sete dias de campo, a equipe
coletou cerca de cem animais. Foram mais de 70 horas de trabalho e 350
quilômetros rodados de carro. Sem contar as caminhadas a pé.
(Por Aline Ribeiro,
OEco , 28/09/2006)