Até 2015, o Ministério das Minas e Energia prevê a construção 494 grandes barragens de usinas hidrelétricas em rios de todo o Brasil, como parte da estratégia do modelo energético a ser desenvolvido nos próximos anos. Hoje, todos os rios federais já sofreram intervenção com a construção de barragens, exceto o rio Ribeira de Iguape, localizado no Vale do Ribeira e que corta os limites dos estados de São Paulo e Paraná. O projeto da usina hidrelétrica Tijuco Alto ameaça também a integridade deste último rio.
Após um período de duas décadas de negociação e resistência por parte das comunidades locais e de grupos socioambientais, o projeto da hidrelétrica tem sido retomado agora com mais força. Até a próxima semana, o EIA-RIMA (estudo e relatório de impacto ambiental), elaborado pela empresa Camargo Corrêa, será encaminhado ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para que seja avaliado. O resultado deve ser divulgado num prazo de 45 dias.
“O que chegou para nós é que a construção da barragem é prioridade no governo federal. Até o final do ano, será decidido”, afirma Denildo Rodrigues de Moraes, coordenador nacional do Movimento Atingidos por Barragens (MAB) e morador da comunidade quilombola de Ivaporunduva, no município de Eldorado (SP), no Vale do Ribeira. Caso o EIA-RIMA seja aprovado, uma série de audiências públicas será convocada para a discussão com a população entre novembro e dezembro.
Os esforços para que a primeira barragem do complexo de quatro (Tijuco Alto, Itaóca, Funil e Batatal) seja implantada se arrasta desde o final da década de 80, quando as primeiras discussões e propostas surgiram por parte da Companhia Brasileira do Alumínio (CBA), do Grupo Votorantim. O objetivo é que o empreendimento amplie a capacidade de produção exportação de alumínio do grupo Votorantim na região do município de Sorocaba (SP) e expanda a geração energética.
Na época de sua proposição, a idéia da construção de Tijuco Alto veio quase como uma imposição. “A decisão chegou de cima para baixo”, lembra Laura Jesus de Moura e Costa, coordenadora geral do Centro de Estudos, Defesa e Educação Ambiental (Cedea) e moradora do município de Cerro Azul, no Paraná, um dos municípios a ser afetado com a construção da barragem.
Laura recorda que a população decidiu se mobilizar para entender o que era a obra e como ela afetaria os moradores da região. Contudo, isso não impediu que houvesse um êxodo populacional. “Com o anúncio de uma obra, a população de uma cidade pequena cria expectativas”. De acordo com ela, os moradores da região venderam suas terras, ansiosos pela incerteza do que aconteceria com a instalação da usina hidrelétrica, mas também sofreram muita pressão, inclusive por parte da CBA, para deixarem suas propriedades.
Desordenamento fundiário
A construção da usina suscitou um outro debate: a posse da terra. Parte das propriedades são ocupadas há anos por posseiros. “Falta regularização fundiária, e a CBA se aproveita disso para se apropriar das terras”, afirma Laura. “O Vale do Ribeira se empobreceu totalmente, somente com o anúncio da construção da barragem. A população deixou de investir nas suas propriedades e o governo deixou de investir em estradas para escoar a produção de banana, em educação e moradia, porque diziam: A barragem vai vir e cobrir tudo, por que investir?. A CBA tem uma dívida social com o Vale”, afirma Denildo, o coordenador do MAB.
Adrianópolis, cidade paranaense que também pode ser atingida pela barragem, esvaziou-se durante a década de 90. Laura explica que, diferente de Cerro Azul, seus habitantes não se mobilizaram e acabaram deixando a cidade. Atualmente, 60% das terras necessárias para a obra e que seriam inundadas pelo represamento de água foram vendidas. Os 40% restantes são o trunfo que resta à população como forma de resistência.
Laura conta que a tática da CBA mudou nos últimos anos frente à resistência populacional. Ao invés de tentar impor a construção de Tijuco Alto, passaram a organizar uma série de assembléias com a população, que sempre votou em massa contra o empreendimento. “Em 1994, houve uma audiência pública fraudulenta em Cerro Azul. A CBA trouxe um ônibus de Sorocaba, com funcionários de uma das suas plantas de produção de alumínio para votar a favor da barragem. Os moradores do município não puderam entrar na assembléia”, relata Laura.
Resistência
Os grupos interessados em Tijuco Alto têm defendido que a empreitada trará geração de emprego e estimulará o turismo. Mas Laura contesta os argumentos: “A geração de emprego é apenas enquanto durar a obra, e o turismo que eles falam é o náutico, que poucas pessoas têm acesso, não é o rural e popular”.
Para Raul Silva Telles do Valle, assessor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA), uma das organizações não-governamentais envolvidas na luta contra Tijuco Alto, a demora para implementação da barragem se deve à resistência de setores da sociedade civil, como as comunidades e ONGs locais e os grupos socioambientais, que lutam mobilizados até hoje. “Somos contra o conjunto das barragens no Ribeira e a razão de elas serem construídas”, afirma. “A nossa mobilização vem de 20 anos de luta para não deixar que construam a barragem”, concorda Moraes.
A construção da barragem suscita a discussão do uso e da finalidade do rio e da energia elétrica produzida no Brasil. A questão esbarra na privatização de um bem público no que se refere à água e à energia, cujo uso deveria ser universalizado. “Tijuco Alto é um exemplo de um modelo energético que beneficia determinados grupos, como o empresariado, e traz pouco retorno econômico ou benefício social para a região. Que direito a CBA tem de usar o rio para exportação maior do que as populações locais que sobrevivem dele?”, questiona Valle.
“Está excluído do processo de consumo quem deveria ser incluído. É um modelo excludente, que empobreceu a população. A população local não precisa de usinas hidrelétricas; essa não é uma necessidade dos estados do Paraná ou de São Paulo. É uma necessidade só da CBA. O uso é particular. Quando você represa a água do rio, haverá um gestor do espaço e da água; é privatização”, afirma Laura.
O último rio
Além de ser o único rio federal sem barragens, o Ribeira é também o último de médio porte no Estado de São Paulo sem intervenção. “O Rio Ribeira é o que chamamos de rio testemunha. No Vale, os rios se tornaram uma série de lagos. São rios mortos, sem peixes, a não ser pelos de criação. Todos os outros acabaram. A gente luta para mantê-lo para lembrar de como seriam os demais sem as barragens”, afirma Valle.
A região em questão tem um solo de rochas calcárias. “Não sabemos se o solo vai resistir ao peso de toneladas de água represadas, que vai deixar este solo ainda mais fragilizado. Haverá um efeito dominó sobre as cavernas da região. O lugar abriga a maior área de cavernas da América do Sul”, explica Laura.
Segundo a coordenadora do Cedea, se houver qualquer problema de resistência nas barragens, toda a água represada vai descer para os municípios de Adrianópolis, Cerro Azul e Doutor Ulisses, que ficam 50 metros abaixo do nível da barragem e a pouco mais de 100 quilômetros dela. A situação é pior se somada ao prejuízo das áreas que serão inevitavelmente inundadas pela barragem, afetando a vazão de água e o regime hídrico, o fluxo de peixes e a produção agrícola, basicamente o cultivo da banana.
A usina hidrelétrica intensifica ainda mais a contaminação de chumbo na região. Até a década de 80, mineradoras exploravam o chumbo do solo, mas essas empresas fecharam devido ao passivo ambiental. Ainda hoje, os solos e o próprio leito do rio Ribeira não estão livres dessa contaminação. Contudo, pelo fato de o chumbo ser um metal pesado, os seus resíduos permanecem depositados no fundo do rio e assentados no solo. Com a construção da usina hidrelétrica, esses resíduos retornariam à superfície e, por meio de reações químicas, a contaminação seria potencializada e mais agressiva, aumentando a exposição da população.
O coordenador do MAB lembra que a região é muito úmida e as chuvas são abundantes. Por esse motivo, a barragem não teria forças para segurar o volume de água que aumenta muito durante a época de chuvas. “Hoje, eu estou conversando com você e estou vendo o rio e ele não é o mesmo de 10 anos atrás: está seco, pelo assoreamento na sua cabeceira. A construção da barragem será uma catástrofe socioambiental”.
Laura afirma que a CBA promete o assentamento das famílias desalojadas pelo empreendimento. “Mas assentar é diferente. Hoje, quem mora na região tem trabalho, vive do rio, da água e da terra. O desenvolvimento é sustentável”, conta. “Em Cerro Azul, não existia favelas. Hoje, a maior dela tem 3 mil pessoas. O pessoal que se deslocou, depois que vendeu as terras, hoje passa fome e antes não passava, porque não tem mais terra para cultivar. Aqueles que deixaram suas terras na região do rio acabaram se tornando favelados, bóias-frias ou operários da CBA na região metropolitana de Curitiba”, conta.
Segundo o assessor jurídico do ISA, o Vale do Ribeira é uma região com condições muito especiais. A região concentra um grande número de comunidades locais e conta com poucos recursos. “Com dinheiro público, vontade política, parcerias e políticas públicas é possível desenvolver uma economia sustentável”.
Hoje, as comunidades da região vivem da agricultura e o molde de produção é familiar. “Nossa forma de organização é diferente: a terra é coletiva. A forma de se relacionar com o meio ambiente também. A gente produz só o que precisa para sobreviver, é agricultura de subsistência. Vivemos também de artesanato e turismo. A região do Vale do Ribeira é a maior área continua de Mata Atlântica do país, e isso só foi preservado pelo cuidado das etnias da região de quilombolas, indígenas, caiçaras e ribeirinhos. Temos a preocupação de não desmatar muito e preservar aquilo que temos”, conta Moraes, o morador da comunidade quilombola.
(Por Natália Suzuki,
Agência Carta Maior, 29/09/2006)