O Rio Grande selvagem das tropeadas, do gado franqueiro de chifres longos e dos campos sem fim de cima da serra nasce com águas translúcidas e geladas, em meio a cânions com beleza de tirar o fôlego.
É o que comprovaram 15 aventureiros, vários deles especializados em ambiente, ao percorrer de barco 80 quilômetros pelas raízes do Rio Pelotas. Ele separa os territórios catarinense e gaúcho, dando origem à maior bacia hidrográfica do Rio Grande do Sul, a do Rio Uruguai. O objetivo era verificar o nível de preservação ambiental da região.
A aventura deixou calos e memórias perenes nos participantes. A expedição pelo Pelotas foi realizada no início deste mês abaixo de granizo, neve e temporais. Zero Hora teve acesso exclusivo ao material fotográfico produzido pelo grupo, que pode virar exposição. As águas transparentes do Pelotas e seus afluentes escorrem por gargantas de pedra margeadas de mata ciliar e araucárias (pinheiros nativos), em uma zona de transição vegetal intocada pelo homem.
- Em quase cem quilômetros de barco pelo rio encontramos apenas uma pessoa, que passeava a cavalo pelas margens. Não existem cidades, vilas ou moradias neste trecho - comenta a pedagoga Míriam Prochnow, especializada em Ecologia e uma das participantes da expedição.
A expedição percorreu a divisa de Santa Catarina com o Rio Grande do Sul. Começou no limite dos municípios gaúchos de São José dos Ausentes e Bom Jesus com os municípios catarinenses de São Joaquim e Lajes. Os ambientalistas desceram o Rio Pelotas, de leste a oeste, usando dois botes de borracha especiais para rafting (descida de corredeiras) movidos a remo.
A escolha do Rio Pelotas se deu justamente por ser um dos locais mais selvagens do sul do país. As suas matas ciliares fazem parte dos últimos remanescentes florestais da região nordeste do Rio Grande do Sul, cujas árvores foram devastadas nas últimas décadas por empresas madeireiras e cujos campos sofrem ainda hoje com ação sistemática das queimadas.
Os ambientalistas se preocuparam em conferir a diversidade desse corredor ecológico. A conclusão é de que, até por ser afastado dos centros urbanos, o ambiente em torno do Pelotas está intocado. As câmeras fotográficas documentaram uma exuberante proliferação de bromélias, flores do campo, araucárias e butiazeiros nas escarpas que adornam o leito do Pelotas. Os participantes da expedição também tiveram encontros memoráveis com a fauna silvestre, como veados, que visitaram o acampamento, e lontras - extremamente raras no Sul -, que seguiam, curiosas, os barcos pela água.
- Uma capivara quase pulou para dentro de um dos barcos - recorda Míriam.
A escolha de barcos infláveis e não de madeira se revelou mais do que apropriada. O rio é repleto de rochas entremeadas por forte correnteza. O guia da expedição e dono dos botes, Otto Hassler, atuou como guia numa empresa semelhante na África e não tem dúvidas em comparar o desafio enfrentado com as corredeiras do Rio Zambezi, um dos mais famosos do mundo para prática de rafting.
O percurso
1º de Setembro - O grupo percorreu 12 quilômetros entre os municípios de São José dos Ausentes e Bom Jesus. Suportou uma tempestade de granizo. Acampou na foz do Rio Cerquinha
2 de Setembro - Os aventureiros percorreram 34 quilômetros, entre a foz do Rio Cerquinha e o Passo de Santa Vitória, em Bom Jesus, onde foi montado acampamento. Enfrentaram ventos de até 60 km/h
3 de Setembro - O grupo percorreu cerca de 40 quilômetros entre o Passo de Santa Vitória e a foz do Rio Pelotinhas, no município de Vacaria. Montou acampamento ali
4 de Setembro - Eles passaram por trechos próximos do Rio Pelotinhas e encerraram a expedição. Na madrugada, nevou
Quem estava lá
- Rede de ONGs da Mata Atlântica
- Diretoria de Áreas Protegidas do Ministério do Meio Ambiente (www.mma.gov.br)
- Departamento de Botânica da Universidade Federal de Santa Catarina (www.ufsc.br)
- Associação de Preservação do Meio Ambiente do Alto Vale do Itajaí (www.apremavi.com.br)
- Fundação do Meio Ambiente de Santa Catarina (www.fatma.sc.gov.br)
- Polícia Ambiental de Santa Catarina
- Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (www.ibama.gov.br)
Dez cachoeiras e uma nevada no caminho
Por mera casualidade do calendário, os ambientalistas acabaram realizando rafting pelo Rio Pelotas no período climático mais difícil deste ano.
A expedição ocorreu entre 1º e 4 de setembro, justo quando uma frente fria carregada de vento e umidade foi sucedida por uma massa de ar polar, que fez os indicadores de temperatura despencarem. O resultado é que, no primeiro dia de acampamento, as equipes enfrentaram rajadas com velocidade de até 60 km/h no rumo contrário da correnteza. A ventania era tamanha que os barcos não saíam do lugar. De tal forma que conseguiram percorrer apenas 12 quilômetros rio abaixo.
No segundo dia, uma tempestade de granizo (pedras de gelo) castigou os remadores. Em função do frio, muitos deles só suportaram a temperatura da água com proteção de trajes de borracha especiais para mergulho.
Durante o dia, a temperatura, próxima de 0°C, era suportável porque o sol estava descoberto. Mas à noite, os aventureiros só conseguiram agüentar congelantes -5°C com grandes fogueiras acesas à margem do rio. Pelo menos, o frio espantou os mosquitos.
- O almoço consistia em sanduíches frios improvisados na barranca do rio. Comida quente só à noite, no fogareiro improvisado à beira das barracas - descreve Miriam.
Mesmo que quisessem, os ambientalistas não tinham onde buscar comida durante o dia, já que os barcos trafegavam entre fendas e longe de qualquer aglomeração humana. O acampamento era montado por uma equipe de apoio que seguia em dois jipes por estradas empedradas situadas entre São José dos Ausentes, Bom Jesus e Vacaria.
Os remadores, dos quais apenas dois são profissionais, enfrentaram uma maratona. Remavam das 8h às 17h30min, com pequenas pausas, até o limite da exaustão. A conseqüência não se fez esperar: bolhas, calos, pequenos cortes provocados pelas rochas e muita dor nos braços. Cruzaram no caminho por cinco riachos e 10 cachoeiras.
O pior momento climático, apesar de belo, foi a neve que se abateu sobre os cânions no dia 4 de setembro. O frio e o cansaço foram intensos. Por pura sorte, os remadores só pegaram a neve quando estavam em terra firme, ao amanhecer. A friagem trouxe um efeito colateral: dor de garganta para alguns integrantes do grupo. Nada que a paisagem deslumbrante não compense.
(Por Humberto Trezzi,
Zero Hora/Caderno Ambiente, 28/09/2006)