Animais prodigiosos pela imponência, beleza e força, os leões perdem aceleradamente a majestade que lhes conferiu um lugar único no imaginário humano. Nas savanas africanas, o habitat onde sempre reinaram soberanos, a população de leões caiu de cerca de 200 mil para pouco mais de 20 mil nos últimos vinte anos, acuada pela caça e pelo avanço urbano. Na Ásia, a espécie está em extinção. Mais surpreendentemente, no Brasil, a falta de recursos dos proprietários por excelência do animal exótico e uma nova legislação movida por propósito elogiável – a proteção dos bichos – se uniram para criar uma figura impensável: o leão abandonado.
Pela contabilidade do Ibama, existem atualmente cerca de setenta animais sem ter para onde ir, entre felinos apreendidos por maus-tratos ou situação irregular e aqueles que foram simplesmente largados, esfaimados em suas jaulas minúsculas, em estradas e terrenos baldios. Os donos de circos, os principais responsáveis pelas irregularidades, culpam o movimento em favor da proibição de animais em seus espetáculos – os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco já adotaram a medida e há treze projetos de lei tramitando no Congresso que ampliariam o veto para o país inteiro. "Se o circo não pode apresentar os animais, muitos acabam abandonados. As sociedades de proteção fazem barulho, mas não dizem o que fazer com eles depois", reclama o domador Márcio Stankowich, do circo que leva seu sobrenome.
Grandes e de manutenção relativamente cara – um adulto come 5 quilos de carne por dia –, os leões cativos ainda têm um outro fator de "desvalorização": a legendária fertilidade. Mesmo em jaulas apertadas nos circos, leões se reproduzem bem. "O ciclo da leoa presa é mais freqüente e ela chega a ter filhotes anualmente", diz o professor de medicina de animais selvagens Ricardo Pachaly.
Do total de 400 leões registrados no Brasil, oitenta estão em circos e 250, em zoológicos – todos com capacidade esgotada – ou em mantenedores, como são chamadas as organizações ou pessoas físicas credenciadas no Ibama para cuidar de felinos sem-teto. O maior mantenedor do país é o Rancho dos Gnomos, nas proximidades de São Paulo. Lá, no momento, treze leões abandonados são tratados com grande humanidade e alguns toques exóticos, como incenso e música new age. "Eles chegam muito traumatizados pelos maus-tratos", relata Silvia Pompeu, 44, proprietária do sítio que abriga mais de 700 animais, entre macacos, pássaros, pavões, emas, cavalos, galos de rinha, cachorros e gatos, todos abandonados.
A primeira providência de Silvia e do marido, Marcos, quando recebem um leão desabrigado, é rebatizá-lo. "É para não se lembrarem dos nomes com que eram castigados", explica Silvia. Cada leão lá alojado tem sua história de sofrimento. Eles chegam sem garras, sem dentes ou com queimaduras pelo corpo. "Madá", uma leoa de 14 anos, tinha metade da língua cortada. "Gaya", 15 anos, sofreu uma longa intervenção para reparar uma presa cruelmente serrada. "Will", 14 anos, dos quais treze em gaiola de ferro, "pulava e cavava como um filhote quando o pusemos em contato com a terra", lembra Silvia.
No Rancho dos Gnomos, dois a quatro leões convivem em espaços que variam de 400 a 1,4 mil metros quadrados, com sombra e troncos para recreação (como acontece com todos os membros da família felina, afiar as garras é uma das atividades favoritas). Os machos quase não têm juba, devido a mudanças hormonais decorrentes da castração. O abrigo gasta com cada leão, em média, 600 reais por mês, bancados por doações e patrocínios. "Mas vivemos no vermelho", diz Silvia.
Também são qualificados como mantenedores criadores particulares como o baiano Jorge de Almeida, 36, dono de uma fábrica de artigos de plástico. Em seu sítio em Vitória da Conquista, a 520 quilômetros de Salvador, ele mantém cobras, micos e faisões soltos. Compadecido com a situação de um leão abandonado mostrado na televisão, pediu e obteve do Ibama autorização para cuidar de um casal, "Romeu" e "Julieta", felinos alagoanos criados em circo. "Minha mulher não gostou nada da idéia e muita gente achou que eu estava louco", conta. "Mas meus filhos adoram se gabar na escola."
Pai de dois meninos, de 9 e 13 anos, Almeida já passou por sustos. Lembra que certa vez, depois de fazer a limpeza do abrigo de Romeu e Julieta (que enquanto isso ficam presos em uma área menor), esqueceu de fechar um dos portões. Com os animais já acomodados, teve de pedir a um filho que ficasse na outra ponta do abrigo, do lado de fora, chamando a atenção dos animais, enquanto ele corria e trancava o portão. "Meu coração quase saiu pela boca", diz.
Fora os humanos de bom coração que se apiedam dos felinos maltratados, existem os que pensam neles como espetaculares animais de estimação. "Como leão é associado a poder, muita gente se dispõe a alojar um só pelo orgulho de ter o rei dos animais em casa", afirma o professor Ricardo Pachaly. Há, inclusive, quem compre filhotes, sobretudo de circos (a prática é permitida), para criar em casa. "Mas, com 1 ano, brincadeiras típicas de felinos, como pular na perna das pessoas, começam a machucar de verdade. E eles não perdem o impulso selvagem", alerta Gerson Norberto, veterinário especialista em fauna silvestre. "Eu não recomendo leão como animal de estimação a ninguém." Com o tempo e as óbvias inconveniências, esses felinos muitas vezes acabam alimentando a estatística dos sem-teto. Um triste destino para o rei dos animais.
(Por Laura Ming, Veja, 27/09/2006)