O Brasil tem a sorte de ser um país cercado de nações amigas, com as
quais não tem pendência territorial ou rivalidade histórica. O problema
são os governantes encrenqueiros. O mais notável deles é Hugo Chávez, da
Venezuela. Com o dinheiro farto da venda de petróleo, ele se transformou
num arruaceiro internacional. Para atormentar os Estados Unidos, ao qual
declarou guerra verbal (nada a ver com os negócios bilaterais, que
prosperam), Chávez sustenta a falida economia cubana e insiste em apoiar
o Irã em suas ambições de fabricar a bomba atômica.
Evo Morales, cria de
Chávez, é diferente. Morales prefere atazanar um "imperialismo" menos
perigoso, o Brasil. Na semana passada, seu governo anunciou a
expropriação das duas refinarias da Petrobras sem indenização. Quatro
meses atrás, ele já havia nacionalizado a indústria do petróleo e
mandado o Exército ocupar as instalações da Petrobras.
A expropriação foi sentida como um ultraje pelo governo brasileiro.
Primeiro, porque aconteceu na reta final da campanha eleitoral, dando
argumentos aos adversários do presidente Lula. Segundo, porque os
bolivianos não avisaram previamente o Brasil, rompendo uma promessa
feita pelo vice-presidente de Morales de que o Itamaraty e a Petrobras
não seriam mais surpreendidos por medidas radicais anunciadas pela
imprensa. Talvez por isso o presidente Lula tenha reagido de modo
diferente.
Em maio, Lula usou o insustentável argumento de que, por ser
pobre, a Bolívia tinha o direito de se apossar da propriedade e dos
investimentos dos brasileiros. A reação da semana passada foi mais dura.
O Brasil adiou as negociações sobre um tema que interessa apenas à
Bolívia – o aumento do preço do gás natural boliviano – e despiu a
questão do caráter ideológico adotado em maio. A mensagem do governo
passou a ser a seguinte: a Bolívia pode até querer ganhar mais com seus
recursos naturais, desde que respeite os contratos.
A nova postura parece ter dado resultado, pelo menos a curto prazo. Três
dias depois, o governo boliviano decidiu adiar a expropriação. "Essa
deveria ter sido a postura brasileira desde o início: deixar claro que a
Bolívia depende de nós, sobretudo como consumidor de gás, e não tem
força para impor condições ao Brasil", diz o diplomata José Botafogo
Gonçalves, presidente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais,
no Rio de Janeiro.
O direito internacional estabelece quatro passos para
a solução de controvérsias entre países. O primeiro é a negociação
direta. O segundo é levar a questão para a arbitragem internacional,
feita por países neutros ou organismos multilaterais. O terceiro passo é
a retaliação, o que pode incluir a suspensão das relações diplomáticas.
Em teoria, o quarto passo seria a guerra – mas isso, evidentemente, não
passa pela cabeça de ninguém.
No início de seu governo, Lula teve a pretensão de liderar o continente
e até posou de patrocinador ideológico de Morales. Os planos viram-se
frustrados pela exuberância de Chávez e, falando claro, pela relutância
geral em aceitar a liderança de Lula. O desafio da diplomacia brasileira
é agora como conviver com vizinhos encrenqueiros. Eles são problemáticos
em muitos sentidos. Primeiro, pelos estragos diretos aos interesses
nacionais, como a expropriação de propriedade brasileira na Bolívia.
Segundo, pelo caráter deletério sobre os investimentos estrangeiros, que
fogem de aventureiros. Terceiro, pelo risco de desintegração da vizinha
Bolívia. O radicalismo de Morales está dividindo o país e, se a
Petrobras for embora, a indústria petrolífera local entrará em colapso.
Por fim, o clima de insegurança jurídica criado pela estatização está
afastando investimentos externos. Aí está, por sinal, a melhor
estratégia para o Brasil conviver em tal companhia: exibir ao mundo sua
estabilidade econômica e política como contraponto aos arruaceiros das
vizinhanças.
(Por Diogo Schelp,
Veja, 20/09/2006)