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2006-09-22
Ecologia é uma palavra dúbia. Originalmente, designava um ramo da biologia – o estudo dos seres vivos em sua relação com o ambiente físico. O uso cotidiano, porém, consagrou uma acepção política. Sob o termo genérico "ecologia", abriga-se uma miríade de movimentos ambientalistas e conservacionistas, muitos dos quais abraçam teses que um biólogo sério descartaria como baboseira mística: a Terra como mãe protetora, rios e florestas como entidades possuidoras de "alma" etc.

Apesar dessa imprecisão semântica, a ecologia pretende ter algo a dizer sobre a arte das palavras. Sim, já existe uma crítica literária de base ecológica – uma ecocrítica. Há até uma Associação para o Estudo da Literatura e do Ambiente (Asle, na sigla em inglês), fundada em 1992 nos Estados Unidos, país em que esse é um campo acadêmico florescente (embora ainda não tão disseminado quanto, por exemplo, a crítica feminista). "A missão da ecocrítica é demonstrar a interdependência, nem sempre óbvia, entre a imaginação humana, em todas as suas formas, e o ambiente", diz Lawrence Buell, da Universidade Harvard, autor de estudos seminais sobre a obra do ensaísta americano Henry David Thoreau e um dos papas da matéria. Recentemente lançado no Brasil, Ecocrítica (tradução de Vera Ribeiro; Editora UnB; 292 páginas; 38 reais), do inglês Greg Garrard, professor da Universidade Bath Spa, é uma competente introdução a essa nova vertente crítica. O livro não apenas examina a literatura à luz da ecologia. Garrard também demonstra que algumas idéias caras ao movimento, como a "harmonia" da natureza, são metáforas de realidade duvidosa.

Ecocrítica lista algumas das imagens literárias recorrentes na descrição da natureza, tanto em obras literárias quanto nos textos básicos do ambientalismo. Um bom exemplo é Silent Spring, de Rachel Carson, livro que alertava, em 1962, para os perigos de pesticidas como o DDT. A obra começa com uma descrição idílica do meio rural americano, um campo acolhedor e ameno – o que remete à tradição pastoral, forma literária inaugurada pelo poeta grego Teócrito (300-260 a.C.). A ameaça dos inseticidas viria instaurar a devastação ambiental – uma profecia (não confirmada, embora o alerta tenha sido importante para substituir o DDT por substâncias menos nocivas) de envenenamento geral do planeta que reverbera os tons catastróficos do Apocalipse, livro final da Bíblia.

Uma terceira imagem também é comumente associada à natureza: a de mundo selvagem, o limite da civilização em que o homem se perde. O terror de florestas escuras e mares bravios, porém, é visto com simpatia por algumas vertentes radicais do ecologismo, que defendem o ideal misantrópico de uma natureza intocada pelo homem moderno. A idéia de que essa seria uma paisagem harmônica, equilibrada e estável é uma ilusão recorrente. Daí surge também o mito do "índio ecológico" – o nativo americano que, ao contrário do europeu espoliador, teria uma relação fraterna com os animais que caça. A atividade dos índios de fato foi menos devastadora que a do colonizador. O mais provável, porém, é que tenha sido assim pelas limitações demográficas e tecnológicas dos índios, que viviam em tribos esparsas e não contavam com armas de fogo. O suposto respeito que eles teriam pela alma dos animais nunca salvou nenhum bisão de virar churrasco.

Como toda forma de crítica literária que parte de um programa político, a ecocrítica pode degenerar em vigilância ideológica burra, do tipo que condena a caça à baleia em Moby Dick, de Herman Melville. "Não se podem exigir posturas ambientalistas de obras do passado. É um anacronismo imperdoável", adverte Garrard. Exercida com sutileza, porém, essa é uma abordagem nova para um dilema ancestral – a relação (ou o choque) entre cultura e natureza. E é, sobretudo, um sopro revigorante em departamentos de letras dominados pelo pós-modernismo, pós-estruturalismo e desconstrucionismo – essas escolas de origem francesa que se enredavam no exame do "discurso", a ponto de obliterar qualquer realidade externa às palavras. A ecocrítica trata de problemas palpáveis. Tigre, baleia e floresta são palavras, mas também são coisas – e a ecologia luta para que continue sendo assim.

A paisagem em prosa e verso

Três imagens recorrentes da natureza na literatura
A SELVAGEM
É a idéia da natureza como limite da civilização e do domínio humano. Os lugares descritos inspiram respeito, fascínio e até terror: florestas escuras e mares tempestuosos, como no quadro do inglês J.M.W. Turner (1775-1851)

Alguns representantes
Moby Dick, do americano Herman Melville (1819-1891); Coração das Trevas, do britânico de origem polonesa Joseph Conrad (1857-1924)

"O vasto leito das águas, sulcado e cerzido por mil correntes contrárias, explodia subitamente em convulsões frenéticas – ofegando, fervendo, assobiando, fazendo piruetas gigantescas e turbilhões inumeráveis" Trecho de Uma Descida no Maelström, do americano Edgar Allan Poe (1809-1849)

A APOCALÍPTICA
São previsões da devastação total da Terra. Quase sempre têm um fundo visionário e religioso – mas cenários de desolação ambiental já renderam filmes como a série Mad Max, com Mel Gibson

Alguns representantes
O Matrimônio do Céu e do Inferno, do inglês William Blake (1757-1827); Oryx e Crake, da canadense Margaret Atwood
"Tudo esboroa; o centro não segura; Mera anarquia avança sobre o mundo, Maré escura de sangue avança e afoga Os ritos da inocência em toda parte" Trecho de A Segunda Vinda, do irlandês W.B. Yeats (1865-1939)

A PASTORAL
São obras que mostram uma natureza serena e acolhedora. Em oposição à vida urbana "corrupta", o campo é o lugar da virtude e da paz, como nesta pintura idílica do francês Nicolas Poussin (1594-1665)

Alguns representantes
Marília de Dirceu, do português Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810); Walden, do americano Henry David Thoreau (1817-1862)
"Sou um amante dos prados e dos matagais, montanhas; e de tudo que nós contemplamos da verde terra" Trecho de Abadia de Tintern, do inglês William Wordsworth (1770-1850)
(Por Jerônimo Teixeira, Veja, 20/09/2006)

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