Ecologia é uma palavra dúbia. Originalmente, designava um ramo da
biologia – o estudo dos seres vivos em sua relação com o ambiente
físico. O uso cotidiano, porém, consagrou uma acepção política. Sob o
termo genérico "ecologia", abriga-se uma miríade de movimentos
ambientalistas e conservacionistas, muitos dos quais abraçam teses que
um biólogo sério descartaria como baboseira mística: a Terra como mãe
protetora, rios e florestas como entidades possuidoras de "alma" etc.
Apesar dessa imprecisão semântica, a ecologia pretende ter algo a dizer
sobre a arte das palavras. Sim, já existe uma crítica literária de base
ecológica – uma ecocrítica. Há até uma Associação para o Estudo da
Literatura e do Ambiente (Asle, na sigla em inglês), fundada em 1992 nos
Estados Unidos, país em que esse é um campo acadêmico florescente
(embora ainda não tão disseminado quanto, por exemplo, a crítica
feminista). "A missão da ecocrítica é demonstrar a interdependência, nem
sempre óbvia, entre a imaginação humana, em todas as suas formas, e o
ambiente", diz Lawrence Buell, da Universidade Harvard, autor de estudos
seminais sobre a obra do ensaísta americano Henry David Thoreau e um dos
papas da matéria. Recentemente lançado no Brasil, Ecocrítica (tradução
de Vera Ribeiro; Editora UnB; 292 páginas; 38 reais), do inglês Greg
Garrard, professor da Universidade Bath Spa, é uma competente introdução
a essa nova vertente crítica. O livro não apenas examina a literatura à
luz da ecologia. Garrard também demonstra que algumas idéias caras ao
movimento, como a "harmonia" da natureza, são metáforas de realidade
duvidosa.
Ecocrítica lista algumas das imagens literárias recorrentes na descrição
da natureza, tanto em obras literárias quanto nos
textos básicos do ambientalismo. Um bom exemplo é Silent Spring, de
Rachel Carson, livro que alertava, em 1962, para os perigos de
pesticidas como o DDT. A obra começa com uma descrição idílica do meio
rural americano, um campo acolhedor e ameno – o que remete à tradição
pastoral, forma literária inaugurada pelo poeta grego Teócrito (300-260
a.C.). A ameaça dos inseticidas viria instaurar a devastação ambiental –
uma profecia (não confirmada, embora o alerta tenha sido importante para
substituir o DDT por substâncias menos nocivas) de envenenamento geral
do planeta que reverbera os tons catastróficos do Apocalipse, livro
final da Bíblia.
Uma terceira imagem também é comumente associada à natureza: a de mundo
selvagem, o limite da civilização em que o homem se perde. O terror de
florestas escuras e mares bravios, porém, é visto com simpatia por
algumas vertentes radicais do ecologismo, que defendem o ideal
misantrópico de uma natureza intocada pelo homem moderno. A idéia de que
essa seria uma paisagem harmônica, equilibrada e estável é uma ilusão
recorrente. Daí surge também o mito do "índio ecológico" – o nativo
americano que, ao contrário do europeu espoliador, teria uma relação
fraterna com os animais que caça. A atividade dos índios de fato foi
menos devastadora que a do colonizador. O mais provável, porém, é que
tenha sido assim pelas limitações demográficas e tecnológicas dos
índios, que viviam em tribos esparsas e não contavam com armas de fogo.
O suposto respeito que eles teriam pela alma dos animais nunca salvou
nenhum bisão de virar churrasco.
Como toda forma de crítica literária que parte de um programa político,
a ecocrítica pode degenerar em vigilância ideológica burra, do tipo que
condena a caça à baleia em Moby Dick, de Herman Melville. "Não se podem
exigir posturas ambientalistas de obras do passado. É um anacronismo
imperdoável", adverte Garrard. Exercida com sutileza, porém, essa é uma
abordagem nova para um dilema ancestral – a relação (ou o choque) entre
cultura e natureza. E é, sobretudo, um sopro revigorante em
departamentos de letras dominados pelo pós-modernismo,
pós-estruturalismo e desconstrucionismo – essas escolas de origem
francesa que se enredavam no exame do "discurso", a ponto de obliterar
qualquer realidade externa às palavras. A ecocrítica trata de problemas
palpáveis. Tigre, baleia e floresta são palavras, mas também são coisas
– e a ecologia luta para que continue sendo assim.
A paisagem em prosa e verso
Três imagens recorrentes da natureza na literatura
A SELVAGEM
É a idéia da natureza como limite da civilização e do domínio humano. Os
lugares descritos inspiram respeito, fascínio e até terror: florestas
escuras e mares tempestuosos, como no quadro do inglês J.M.W. Turner
(1775-1851)
Alguns representantes
Moby Dick, do americano Herman Melville (1819-1891); Coração das Trevas,
do britânico de origem
polonesa Joseph Conrad (1857-1924)
"O vasto leito das águas, sulcado e cerzido por mil correntes
contrárias, explodia subitamente em convulsões frenéticas – ofegando,
fervendo, assobiando, fazendo piruetas gigantescas e turbilhões
inumeráveis"
Trecho de Uma Descida no Maelström, do americano Edgar Allan Poe
(1809-1849)
A APOCALÍPTICA
São previsões da devastação total da Terra. Quase sempre têm um fundo
visionário e religioso – mas cenários de desolação ambiental já renderam
filmes como a série Mad Max, com Mel Gibson
Alguns representantes
O Matrimônio do Céu e do Inferno, do inglês William Blake (1757-1827);
Oryx e Crake, da canadense Margaret Atwood
"Tudo esboroa; o centro não segura;
Mera anarquia avança sobre o mundo,
Maré escura de sangue avança e afoga
Os ritos da inocência em toda parte"
Trecho de A Segunda Vinda, do irlandês W.B. Yeats (1865-1939)
A PASTORAL
São obras que mostram uma natureza serena e acolhedora. Em oposição à
vida urbana "corrupta", o campo é o lugar da virtude e da paz, como
nesta pintura idílica do francês Nicolas Poussin (1594-1665)
Alguns representantes
Marília de Dirceu, do português Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810);
Walden, do americano Henry David Thoreau (1817-1862)
"Sou um amante dos prados e dos matagais, montanhas; e de tudo que nós
contemplamos da verde terra"
Trecho de Abadia de Tintern, do inglês William Wordsworth (1770-1850)
(Por Jerônimo Teixeira,
Veja,
20/09/2006)