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2006-09-19
Em maio deste ano, o Ministério das Minas e Energia divulgou, através da publicação do Plano Decenal de Expansão de Energia Elétrica (PDEE), o projeto do governo para atender às perspectivas de crescimento do país nos próximos dez anos (até 2015) no tocante à geração de energia elétrica. Para evitar uma possível segunda edição do tão temido apagão e para assegurar um ambiente confortável para investidores do setor produtivo, o PDEE elencou uma série de potenciais novas obras, principalmente hidrelétricas, entre elas a usina hidrelétrica (UHE) de Belo Monte, projetada na chamada Volta Grande do rio Xingu, no Pará.

A história da UHE Belo Monte remonta ao início da década de 1980, quando um inventário sobre a capacidade de geração de energia do Xingu apontou a possibilidade de instalação de seis barragens no rio, e o governo iniciou os estudos para a construção de duas grandes usinas na região de Altamira, sudoeste do Pará: Babaquara (com capacidade de geração de 6,6 mil Megawatts) e Kararaô (11 mil MW).

A partir daí, iniciou-se uma batalha técnica, jurídica, política e socioambiental sobre a viabilidade do complexo hidrelétrico - uma vez que seus impactos sobre o meio ambiente e as comunidades indígenas e ribeirinhas, com um alagamento de mais de 8 mil quilômetros quadrados, geraram protestos e contestações veementes -, que, depois de 20 anos de debates, levou à reformulação do projeto original para uma nova versão, rebatizada de Belo Monte. Na prática, retirou-se a barragem de Babaquara do planejamento imediato, mantendo-se a idéia reformulada de Kararaô.

Segundo a Eletronorte, empresa responsável pela proposição do projeto, em sua configuração atual Belo Monte terá 11.181 MW de capacidade instalada e toda a energia gerada será interligada ao sistema energético brasileiro. A bem da verdade, explica o técnico da empresa em Altamira, como o Pará já é auto-suficiente em eletricidade, a energia de Belo Monte supriria majoritariamente demandas de outras regiões do país, principalmente o Sudeste.

A obra, orçada pela Eletronorte em R$ 7,5 bilhões, prevê uma transposição do Xingu na chamada Volta Grande, um pouco abaixo da cidade de Altamira – um trecho onde o curso do rio forma como que um meio laço -, desviando as águas para a parte central e aproveitando o declive geográfico para acionar as turbinas. Desta forma, de acordo com Paulo Rezende, coordenador dos estudos sobre Belo Monte na Eletrobras, a barragem alagará 440 quilômetros quadrados (bem menos do que os 1.225 quilômetros quadrados de Kararaô), dos quais 200 quilômetros quadrados correspondem às cheias anuais normais do rio. “Isso resulta em 0,04 quilômetros quadrados alagados por megawatt instalado - uma das melhores relações do país para empreendimentos implantados acima de 1.000 MW de potência instalada”, afirma Rezende em artigo publicado recentemente.

Fator verão
Apesar de ser uma das maiores apostas do governo para atender um potencial aumento da demanda de energia no país por conta da capacidade de geração do 11,1 mil MW, Belo Monte pode não responder inteiramente às expectativas. Um dos fatores naturais que diminuiriam a eficiência energética da usina é, como a reportagem da Carta Maior pôde constatar em visita à Volta Grande do Xingu no início deste mês, a drástica diminuição do volume de água do rio durante o verão – estação que ocorre na Amazônia entre os meses de setembro e dezembro. Segundo especialistas, o aproveitamento pleno da capacidade de geração instalada de 11,1 mil MW poderia ocorrer por apenas três meses.

Por conta da variação da vazão do Xingu, cálculos dos próprios empreendedores apontam para uma utilização média de apenas 40% da capacidade instalada da hidrelétrica. Simulações realizadas por um sistema desenvolvido pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o HydroSim, no entanto, resultaram em uma taxa de utilização inferior a 20%, afirma um estudo da ONG Conservation Strategy Fund, elaborado em parceria com técnicos do Instituto Técnico da Aeronáutica (ITA).

Em seu artigo, Rezende pondera que esta diminuição da produção de Belo Monte não afetaria a oferta de energia no país, já que, em função do sistema interligado nacional de eletricidade, ao qual estaria ligada, outras usinas cobririam o déficit da hidrelétrica nos meses de baixa produtividade. Ademais, segundo a empresa, o custo de US$ 12,4 o MW/hora da energia de Belo Monte é competitivo.

Custo-benefício
Mas há quem questione a viabilidade econômica da hidrelétrica. Para o historiador e jornalista Glenn Switkes, co-autor, com o pesquisador da Unicamp Oswaldo Sevá, do livro Tenotã-Mõ, uma das mais completas radiografias do projeto de Belo Monte, os altos custos da obra exigiriam garantias de rentabilidades aos investidores. Ou seja, é preciso que a “loja de eletricidade” Belo Monte tenha produto para vender durante o ano todo. Como funcionaria a engenharia de realocação de energia de outras usinas para a comercialização dos sócios da hidrelétrica, e que tipo de custos essa negociação teria, não está claro, argumenta Switkes.

Adicionalmente, segundo o estudo da Conservation Strategy Fund, sem se levar em conta variáveis como atrasos no cronograma de implantação do projeto e outros imprevistos, o gasto estimado de R$ 7,5 bilhões com a obra poderia subir para R$ 9,6 bilhões, considerando-se apenas os juros dos financiamentos, e dentro deste cálculo não estariam previstas a instalação de linhas de transmissão e a construção do porto fluvial e das eclusas, previstas no projeto da Eletronorte.

Também estariam fora deste orçamento os custos “indiretos” para a região, como os gerados pela perda nas atividades pesqueira, agropecuária e de turismo, perda da ictiofauna (peixes) migratória, perda da qualidade da água e de seu aproveitamento para abastecimento da população local, indenizações, etc.

“Para uma avaliação mais realista, foi realizada uma análise de risco que permite variar os parâmetros de entrada simultaneamente a partir de situações previamente definidas. Assim, no conjunto de simulações, agruparam-se os perigos de excesso de custo, atraso nas obras e geração abaixo do projetado, além de simularem-se valores de energia acima e abaixo do valor médio. É evidente que, ao juntar todos estes riscos, o projeto tem chances mínimas de viabilidade econômica. A probabilidade de viabilidade do empreendimento nesta situação seria de apenas 2,28%”, afirma o estudo da ONG. Procuradas pela reportagem, as empresas Eletronorte e Eletrobras, através de suas assessorias, afirmaram que não estão comentando o projeto Belo Monte neste momento.

As avaliações contraditórias sobre a rentabilidade de Belo Monte têm incitado um debate sobre a real dimensão do projeto entre seus defensores e opositores. Apesar das negativas da Eletronorte, os últimos afirmam que, construída a usina e constatada alguma deficiência econômica, os empreendedores pressionariam pela ampliação do complexo hidrelétrico com a retomada do projeto de Babaquara.

“Temo que se conte novamente com o conhecido fato consumado. Ou seja, depois de Belo Monte pronta e constatada a sua ineficiência, os empreendedores vão culpar os engenheiros pela imprecisão nos cálculos e exigir que se sane o problema com a retomada de Babaquara para controlar a vazante do Xingu rio acima”, afirma Marco Antonio Almeida, procurador do Ministério Público Federal em Altamira.

A ONG Conservation Strategy Fund vai além: “Seja viável ou não como empreendimento independente, o Complexo Hidrelétrico Belo Monte irá criar uma enorme pressão para a construção de mais barragens a montante. A própria Eletronorte prevê a utilização média de apenas 40% da capacidade instalada da usina. (...) Essa capacidade ociosa representa uma “crise planejada” e deve estimular permanentemente projetos de regularização de vazão do rio Xingu. (...) Em função disto, parece muito pouco realista o cenário de uma UHE Belo Monte sustentável”.

A população
Entre a população da área de influência de Belo Monte, as opiniões sobre o projeto estão divididas. De acordo com a Eletrobras, os municípios afetados de alguma forma pela usina seriam Altamira, Anapu, Brasil Novo, Medicilândia, Senador José Porfírio, Uruará, Vitória do Xingu e Porto de Moz.

Com a previsão da Eletronorte de geração de 100 mil novos empregos diretos e indiretos, a perspectiva de uma intensificação do comércio e de olho nos royalties advindos da hidrelétrica, prefeitos e comerciantes da região têm, de maneira geral, apoiado a iniciativa. Já a oposição tem partido da Igreja, dos movimentos sociais, ambientalistas e indígenas, e do próprio Ministério Publico Federal, em função dos impactos socioambientais inevitáveis mesmo que tomadas medidas mitigatórias e compensatórias por parte dos empreendedores da obra.

De acordo com a Eletronorte, Belo Monte impactaria diretamente 2 mil famílias na área urbana de Altamira, 813 na área rural de Vitória do Xingu e 400 famílias ribeirinhas. A empresa reconhece ainda, segundo seu representante em Altamira, impactos indiretos sobre cerca de 10 comunidades indígenas.

Segundo Felício Pontes, procurador geral do Ministério Público Federal no Pará e responsável por uma liminar que impede o início dos estudos de impacto ambiental da obra por um entrave legal, a falta da autorização do Congresso Nacional após a realização de audiências com os povos indígenas, como reza o artigo 231 da Constituição, o MPF teme que a hidrelétrica cause uma desestruturação geral do modus vivendi das populações indígenas e ribeirinhas, que poderia levar à sua desagregação social e cultural de forma definitiva.

De fato, o projeto da hidrelétrica prevê uma cheia constante a montante da barragem, que alagaria parte de Altamira, praias naturais do rio e áreas utilizadas hoje na agricultura pelos ribeirinhos, e diminuiria drasticamente o volume das águas a jusante, cerca de 10 quilômetros da Volta Grande do Xingu.

Segundo o historiador Glenn Switkes, coordenador da ONG International Rivers Network (Coalizão dos Rios), esta seca inviabilizaria a navegação de grande parte do trecho - e, portanto, a principal forma de locomoção dos moradores da região -, aumentaria brutalmente a incidência de vetores de doenças, principalmente a malária, afetaria a pesca, da qual dependem muitos ribeirinhos e indígenas, afetaria o consumo da água potável, e ainda levaria à perda do volume de águas dos afluentes do Xingu, como o rio Bacajá, do qual dependem comunidades e aldeias da Terra Indígena Trincheira Bacajá.

Este potencial ameaça e a alegada falta de informação sobre o projeto tem indisposto a maioria das lideranças indígenas e ribeirinhas da Volta Grande contra a obra. Segundo o cacique Ngkara Kararaô, da aldeia Potikro, no Rio Bacajá, a comunidade nunca foi procurada pela Eletronorte para esclarecimentos sobre o projeto. Por outro lado, em encontro recente das aldeias Kayapó, que reuniu representantes de 19 das 21 comunidades da região, foi declarada “oposição intransigente” e unânime contra a hidrelétrica. “O índio toda vida é contra, ninguém aceita a usina”, sentenciou o cacique.

Lideranças da Fundação Viver, Produzir e Preservar em Altamira, as pequenas agricultoras Antonia Mello, Antonia Martins e Rosa Pessoa, co-articuladoras de uma forte campanha dos movimentos sociais contra Belo Monte, afirmam que, além de uma alteração drástica de todo o ciclo produtivo da região, Belo Monte também afetaria grande parte das Unidades de Conservação criadas pelo governo na região da Terra do Meio, incluindo os Projetos de Desenvolvimento Sustentável idealizados pela Irmâ Dorothy Stang, assassinada em fevereiro de 2005 por conta da disputa pela terra com fazendeiros e grileiros.

Por outro lado, afirmam as mulheres, seria incoerente por parte do governo investir pesadamente em um projeto que beneficiaria majoritariamente outras regiões do país, enquanto que a Amazônia - e em especial o sudoeste do Pará – carecem de políticas públicas básicas, como saneamento, educação, saúde e até documentação das populações mais pobres.

“As políticas públicas não chegaram até aqui. Em Altamira, o maior município em extensão territorial do mundo, milhares de pessoas sofrem com déficit habitacional, por exemplo. O governo e as empresas não conhecem nem querem conhecer a forma de vida na Amazônia, e os grandes projetos na região nunca foram feitos pensando no desenvolvimento local. A raiz social e cultural das populações ribeirinhas e indígenas é diferente, eles não sabem viver na cidade, precisam do contato com os rios, com a floresta. Os grandes projetos de infra-estrutura vão trazer os problemas, mas não os benefícios da cidade grande. Aqui podemos ter vida digna sem estas grandes obras”, afirma Antonia Mello.

Segundo as mulheres, a construção de Belo Monte seria um desrespeito e uma covardia com os amazônicos. “Se fosse em São Paulo, uma obra dessa, que impactaria tanta gente, nunca seria feita. Parece que esse outro Brasil, que é a Amazônia, é um Brasil de segunda categoria, que sempre foi predada pelo resto do país. Infra-estrutura necessária para nós são estradas, transporte”, acrescenta Antonia Martins.

Sobre a necessidade de aumento da geração de energia no país, as três acreditam que é possível otimizar as estruturas existentes - “a hidrelétrica de Tucuruí tem três comportas fechadas, por exemplo” – e investir em energias alternativas, como a solar, e em novas tecnologias mais sustentáveis. “O conceito de felicidade nosso pode não ser o mesmo que o seu, este desespero por um shopping center. Só queremos que respeitem o modo de vida da Amazônia”, conclui Rosa.
(Por Verena Glass, Agência Carta Maior, 19/09/2006)

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