Depósitos químicos ameaçam a vida de milhares de pessoas na bacia Matanza-Riachuelo, na Argentina
2006-09-12
Três mil pessoas vivem sob as chaminés de refinarias de petróleo e
depósitos químicos, entre lixo, lama e cursos de água pestilentos, em
Vila Inflamável, um assentamento na região baixa da bacia
Matanza-Riachuelo, ao sul de Buenos Aires. “Aquele é o centro de Buenos
Aires”, disse ao Terramérica Maria Del Carmen Brite, apontando para as
torres da cidade. “Se isto voar, voamos todos”, alertou a mulher, membro
da Sociedade de Fomento de Vila Inflamável.
Toda a bacia, de 64 quilômetros quadrados, está contaminada. Desde a
nascente, a oeste da capital argentina, até sua desembocadura, no Rio da
Prata, a falta de rede de esgoto e as três mil empresas instaladas na
área afetaram gravemente o recurso. A zona baixa é a mais crítica. Brite
é uma das 144 pessoas que, há dois anos, processaram por dano ambiental
o Estado e as 44 empresas do complexo industrial vizinho, o Pólo
Petroquímico Dock Sud. O caso chegou à Suprema Corte de Justiça, que em
junho intimou o governo e as companhias a apresentarem um plano de
saneamento.
No dia 5, em audiência judicial pública, a secretária de Meio Ambiente e
Desenvolvimento Sustentável, Romina Picolotti, admitiu que o Dock Sud
abriga “uma combinação potencialmente explosiva” de instalações
industriais e adiantou que os 11 depósitos de químicos serão
transferidos em um ano. Também prometeu que a população afetada será
“uma prioridade” do plano. Disse ainda que, enquanto são implementadas
medidas de longo prazo. será distribuída água segura aos moradores e um
reforço dietético para neutralizar os efeitos da contaminação. “Pensam
que, por sermos pobres, somos estúpidos”, protestou Brite, desempregada
que vive com um subsídio para chefes da família sem emprego. de US$ 50
mensais.
A Vila está localizada em Avellaneda, no limite sul da capital. O Rio
Riachuelo nesse local é “uma cloaca imunda”, afirmou o advogado de
Brite, Jorge Iturraspe. A água é quase negra, é opaca e oleosa. As
garrafas de plástico flutuam como camalotes e as margens estão cheias de
lixo urbano. “Aqui pode aparecer de tudo. Até um cadáver”, afirmou a
moradora. Segundo Picolotti, não há estudos epidemiológicos que atestem
a relação entre a atividade industrial e a saúde, mas admitiu que há
contaminação. Existe apenas um estudo, da Agência de Cooperação
Internacional do Japão, segundo o qual em Vila Inflamável 50% das
crianças entre sete e 11 anos têm chumbo no sangue e 10%, cloro na
urina.
Brite tem 49 anos, nove filhos, e vive em Vila Inflamável desde 1976. Em
1998, grávida, teve de ser hospitalizada. “Fiquei toda inchada, tiveram
que me entubar”, contou. Penso que foi pela limpeza de um depósito da
empresa química Union Carbide – a mesma que explodiu na Índia em 1984,
deixando cerca de oito mil mortos. Sua filha Camila, de oito anos,
nasceu com sofrimento fetal. Aos cinco anos, teve sarampo hemorrágico e
perdeu capacidade respiratória. Doze crianças morreram em Vila
Inflamável por causa do vírus que transmite essa doença, acrescentou.
Outro filho seu, Emir, de dez anos, teve um problema na pele em um dia
de chuva. Os médicos diagnosticaram “intoxicação por ácido”.
Seu filho de três anos, Yair, esteve hospitalizado durante uma semana
este ano, por problemas respiratórios e foi enviado para a unidade de
intoxicação do hospital. “Nos pedem exames para encontrar tolueno,
benzeno e chumbo, mas os reagentes são muito caros”, explicou Brite. Ela
não duvida que seus males tenham origem ambiental. E lembra a morte de
seu filho Rodrigo ao nascer – supostamente por anencefalia – e a de seu
primeiro neto por morte súbita. Maria Alejandra Sciarreta, que também é
uma das autoras do processo que chegou à Suprema Corte, tem 34 anos e
recebe subsídio semelhante ao de Brite. Três de seus nove filhos
freqüentam uma escola para deficientes. Dois têm chumbo no sangue. Um
esteve internado duas vezes no Hospital de Crianças de La Plata. Entrou
com quadro de vômito e enjôos. “Agora tem muitos problemas de conduta na
escola”, afirmou.
Segundo a Defensoria do Povo da Nação, para Vila Inflamável “não há
remédio possível”. É necessário transferir as 880 famílias residentes,
além de desmantelar o complexo industrial. Alfredo Alberti vive em
frente à Vila Inflamável, no bairro de La Boca, até onde chegam os
vapores do Riachuelo e das indústrias químicas. “Não se pode permitir
que as pessoas vivam expostas a esses níveis de contaminação. Querem
mudar a Vila para apenas dez quadras daqui, junto ao riacho Sarandí, que
é a mesma porcaria”, afirmou. “Não queremos ir para lá”, confirmou
Brite, acrescentando que “aqui as nuvens caminham. As empresas químicas
liberam gases e nós pedimos ao vento que os leve para o Rio, porque se a
nuvem pairar sobre sua casa, estará perdido”.
(Por Marcela Valente, Terramérica, 11/09/2006)
http://www.envolverde.com.br/materia.php?cod=22310&edt=1