A Amazônia brasileira soube nesta segunda-feira (11/9), que sua
floresta está prestes a ter um terceiro sistema de controle e monitoramento
de desmatamento por satélite zelando pelo seu futuro. Chama-se Sistema de
Alerta de Desmatamento (SAD) e por enquanto está restrito ao Mato Grosso. Ao
contrário dos dois programas mais antigos, o Prodes e o Deter do Inpe, que
têm DNA governamental, o SAD é uma iniciativa de duas organizações privadas
– o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) e o Instituto
Centro Vida (ICV) – que para dar certo contou com a disposição do governo
estadual de abrir seu banco de dados sobre propriedades rurais aos
pesquisadores.
Foi essa súbita transparência, manifestada em encontros de funcionários da
secretaria de meio ambiente (Sema) com representantes das duas Ongs ainda no
ano passado, depois da Curupira, que convenceu a Fundação Packard a
financiar um trabalho de pesquisa que em seu primeiro relatório dá detalhes
raramente mostrados sobre a dinâmica do desmatamento em um estado da
Amazônia que é considerado crítico pelos estudiosos. Com Mato Grosso
começando a ser esquadrinhado, o Imazon pretende, no ano que vem, estender o
SAD ao Pará. “Se conseguirmos financiamento, em 2008 vamos gerar números e
informações para toda a Amazônia”, diz Adalberto Veríssimo, do Imazon.
Desde que o Brasil se redescobriu como fronteira agrícola do mundo em fins
da década de 90, Mato Grosso virou o grande campeão do desmatamento na
Amazônia. Dos 70 milhões de hectares de floresta que sumiram na região nas
últimas 4 décadas, 20 milhões desapareceram nas fronteiras do estado. E o
corte de árvores lá acontece em condições muito peculiares. A Amazônia
mato-grossense já perdeu cerca de 17 milhões de hectares, o equivalente a
34% de sua cobertura original. Do ponto de vista da biodiversidade, a perda
é inestimável. Mas do ponto de vista econômico, a derrubada faz todo o
sentido. Marcada pela vegetação de transição de Cerrado para mata fechada, a
floresta no estado tem naturalmente um volume menor de espécies comerciais.
Portanto, é impossível para ela sustentar uma atividade florestal que tenha
escala, como é o caso do Pará. E para piorar a situação, sua mata cresce em
terreno fértil e plano, que não poderia ser mais propício à agricultura.
“Nessa conjunção de fatores, é difícil mantê-la de pé apelando para
argumentos econômicos”, diz Veríssimo. “Para defendê-la, vamos precisar
criar mecanismos de incentivo e ao mesmo tempo aumentar a fiscalização e
repressão”. Para tanto, é fundamental entender a dinâmica desse processo
local de desaparecimento da floresta, qualificando individualmente cada um
dos desmatamentos. É o que o SAD quer fazer.
Seu trabalho de monitoramento e controle no Mato Grosso ainda não chegou
inteiramente lá. Mas a primeira coleta de dados mostra que ele está no rumo
certo. Como o Deter, o SAD enxergou entre agosto de 2005 e julho de 2006 uma
queda no ritmo de perda de cobertura florestal em cerca de 30%. Mas
identificou onde ela continuou a ocorrer e deu o endereço exato dos 608 mil
e 600 hectares que foram devastados. Onze por cento deles estão em
assentamentos do Incra. Dois por cento em Terras Indígenas e Unidades de
Conservação. Nelas foram-se cerca de 16 mil e 500 hectares de floresta, com
destaque especial para o Parque Estadual do Cristalino II, no Norte do
estado, onde desapareceram 1 mil e 500 hectares de vegetação nativa, e a
Terra Indígena dos Maraiwatse, que perdeu 8 mil e 500 hectares. Mas o
desmatamento comeu solto mesmo nas propriedades rurais.
Empenho devastador
As fazendas responderam por 87% da extensão total da derrubada, um indício
claro que apesar de continuar retraído por conta da queda do preço de
commodities como a soja no mercado internacional, o agronegócio não está
morto. “Essa é uma atividade dinâmica. A soja vai mal, substitui-se por
milho, algodão ou arroz. E a pecuária continua em expansão”, diz Veríssimo.
“Só mesmo no Norte do estado é que os madeireiros foram os principais
responsáveis pela derrubada da vegetação”. O SAD foi capaz de detectar todas
essas nuances sobre o avanço floresta dentro. No ranking mato-grossense do
desmatamento em 2005-2006 a região Centro-Norte continuou liderando, como
acontece desde 2003, no volume de árvores derrubadas.
O segundo lugar, que pertencia à região Noroeste, foi tomado pelo Norte. Em
terceiro, apareceu a região Nordeste. Todas têm em comum o fato de estarem
pelo menos em parte sob a zona de influência da BR-163 e, de um ano para cá,
terem aderido à pecuária como saída para a crise da soja. Até o ano passado,
o grão servia de biocombustível para o motor do desmatamento no estado.
Agora, parece que voltou a ser o gado. A marca de suas patas é evidente na
quantidade de derrubadas que alçou os três recém-chegados à lista 2005-2006
dos dez municípios que mais desmatam no Mato Grosso. Seu salto foi
impressionante. Feliz Natal pulou de 17º no biênio anterior para 3º lugar
este ano.
Peixoto de Azevedo saiu do 35º para o 8º lugar. A cidade vizinha,
Marcelândia, não ficou para trás. Veio da 25ª para a 9ª posição. “A pressão
maior está vindo mesmo do gado”, diz Laurent Micol, do ICV. “Em Feliz Natal
a pecuária está lado a lado com a soja”. Mas foi Marcelândia que mais chamou
sua atenção. Lá havia um pólo madeireiro grande que este ano foi sufocado
pela demanda por pasto. O SAD apontou que pelo menos 39% dos desmatamentos
ocorridos em fazendas têm toda a pinta de serem ilegais. Eles ocorreram em
áreas averbadas como reserva legal e somados dão uma perda de 171 mil e 100
hectares de florestas nesses doze meses.
O SAD descobriu isso porque cruzou suas imagens com os dados do Sistema de
Licenciamento de Propriedades Rurais (SLAPR). Criado em 2002 pelo governo do
Mato Grosso, ele cadastra com base em georeferenciamento por satélite as
fazendas do estado e sua reservas legais. Infelizmente, seu banco de dados
não é completo o suficiente para ajudar a qualificar sem margem de erro os
desmatamentos flagrados no estado. “O sujeito que desmatou nessas áreas pode
ter compensado comprando reserva em outras propriedades na mesma bacia” diz
Veríssimo. Esse tipo de informação ainda não faz parte do SLAPR. E algumas
que fazem – como mapas de autorização para desmatamentos ou de autos de
infração aplicados – estão defasadas.
“Seu banco de dados já ajuda muito a qualificar o desmatamento”, diz Laurent
Micol, do ICV. “Mas ele pode ir bem mais além”. Pode também cadastrar muito
mais propriedades. A maioria dos fazendeiros de Mato Grosso ainda não ligou
para a obrigatoriedade de se inscrever no sistema. Em junho, havia 8 mil 135
fazendas cadastradas, cada uma com um tamanho médio de 2 mil 352 hectares,
que somados cobrem somente 21% do seu território. Para piorar, o entusiasmo
dos proprietários rurais com o assunto tem sido cadente. Em 2003, ano em que
o SLAPR começou a funcionar, 2 mil deles cadastraram suas propriedades. Em
2005 foram apenas 900. Este ano, até junho, só 236.
O SAD flagrou essa aritmética da informalidade. Sessenta e seis por cento
dos desmatamentos detectados em áreas privadas, equivalentes a 501 mil e 400
hectares, ocorreram em terras não cadastradas. “O desafio do governo
estadual é dar um caráter compulsório a esse cadastro. E isso vai custar
muita fiscalização”, diz Micol. Se as informações melhorarem, Carlos de
Souza Jr., do Imazon, diz que o SAD pode chegar próximo da perfeição. “Vai
dar para entregar a detecção do desmatamento junto com o CPF do desmatador”.
Em alguns casos, já se conseguiu isto este ano. Mas a maioria, por conta das
deficiências do sistema estadual, ainda teve que ficar na seara da
suspeição.
Para montar a perna mato-grossense do SAD, o Imazon, além dos dados
da Sema, apoiou-se nas informações geradas pelo Prodes e pelo Deter, do
Inpe. Os dados do Prodes foram detidamente estudados para Mato Grosso, e a
partir deles criou-se uma base zero, com início no ano de 2000, para o SAD
começar a prospectar. Do Deter, além dos dados, o sistema do Imazon pegou as
imagens, obtidas pelos satélites Terra e Acqua, da Nasa. Só que as submeteu
a tratamento que lhe permitiu enxergar nas cenas coisas que o Deter não
consegue porque seu sistema o limita à detecção de desmatamentos acima de 20
hectares. O SAD chega a ver áreas desmatadas no tamanho do pixel – o ponto
que junto com milhões de outros iguais a ele, forma uma imagem.
“O pixel que a gente utiliza é de 2, 5 hectares por 2, 5 hectares”, explica
Souza Jr. Desmates isolados de menos de 5 hectares são classificados como
alertas. Mas se na próxima passagem do satélite sobre a mesma área, um ciclo
que se repete a cada 16 dias, forem detectados cortes em terrenos
adjacentes, ela passa a ser qualificada como desmatamento. “Está funcionando
muito bem para o Mato Grosso. Já testamos no Pará, Amazonas, Acre e
Rondônia. Precisamos calibrar melhor o nível de detecção porque as variações
atmosféricas impedem que você tenha um padrão pré-definido para cada área”,
diz Souza Jr.
O SAD é um sistema desenhado para fazer com que a detecção de desmatamentos
através de satélites tenha um impacto na fiscalização. Ele produz
informações com rapidez suficiente para auxiliar na repressão. Os relatórios
sobre o monitoramento e controle no Mato Grosso sairão todo o mês e
informações mais urgentes podem ser repassadas às autoridades imediatamente.
“Não há mais a desculpa de que ninguém sabia para os governos. Com uma
ferramenta como o SAD, não há porque não agir. E a publicação mensal dos
dados aumenta a pressão por ação oficial”, diz Veríssimo. Num certo sentido,
o SAD retoma um dos objetivos que estavam na raiz do lançamento do Deter, em
2004. Mas o sistema do governo anda atrasando a geração de relatórios e,
portanto, abandonando sua função primordial. Segundo Souza Jr, os atrasos do
Deter na produção de informação chegam a atingir às vezes quatro meses.
“No caso do SAD para Mato Grosso, isso não vai acontecer porque a geração do
relatório está inteiramente automatizada”, diz Souza Jr.. Veríssimo conta
que uma das motivações por detrás do projeto do SAD era dar mais
transparência a produção de estatísticas sobre desmatamento na Amazônia. “No
caso do que nós e o ICV estamos fazendo no Mato Grosso, não há qualquer
pacto de não divulgação”, diz ele. Além disso, o SAD quer também servir para
melhorar uma das pontas mais deficientes do tripé de medidas geralmente
utilizadas para combater a derrubada da floresta amazônica. O país tem
tradição na detecção de ações ilegais, melhorou muito – embora precise
melhorar muito mais – na fiscalização, mas continua patinando na sua
capacidade de responsabilizar alguém por eventuais crimes cometidos.
“Sistemas assim melhoram a inteligência e ampliam a possibilidade de
parcerias entre Ministérios Públicos e secretarias estaduais de meio
ambiente”, continua Souza Jr.. Marcelo Vacchiano, promotor do MP em Alta
Floresta sabe muito bem a importância de poder responsabilizar rápido o
suspeito de um crime ambiental. “Antes, praticamente ninguém era punido”,
explica ele. O órgão ambiental dava um auto de infração que abria um
inquérito administrativo que levava em média 4 anos para ser concluído. Só
então a papelada chega ao MP para a abertura de ações criminais ou civis.
“Depois de tanto tempo, nem mais o infrator se achava”, diz Vacchiano.
Ele e colegas de 8 comarcas do Norte do Mato Grosso, por conta da incidência
de queimadas na região, se reuniram no ano passado para tomar uma atitude em
relação à questão da responsabilização. Fizeram um convênio com o Ibama cujo
efeito prático foi reduzir a distância burocrática entre os dois órgãos.
“Agora eles mandam o auto de infração imediatamente para cá, o que nos
permite fazer correr as ações judiciais em paralelo ao inquérito
administrativo”, diz Vacchiano. O MP e o Ibama também começaram a fazer
ações conjuntas. Este ano, os dois realizaram perícias sobre crimes
ambientais em vários municípios que renderam mais de 100 autos de infrações.
“Estamos agora discutindo um Termo de Ajuste de Conduta com os infratores.
Quem não assinar será levado à Justiça”, promete o promotor. Ele tem grande
esperança nos efeitos que o SAD vai ter em seu trabalho. “É mais um elo para
ser usado na responsabilização pelos crimes. E tem a vantagem de poder
servir de guia para a secretaria de meio ambiente estadual se reestruturar
para ser capaz de tocar esse trabalho”.
(Por Manoel Francisco Brito,
OEco, 11/09/2006)