Angra 3 completa 30 anos sem sair do papel ao custo de 2,6 bilhões de reais
2006-09-12
Há três décadas, mais precisamente em 22 de junho de 1976, um ano depois de fechar um acordo de cooperação nuclear com a
Alemanha, o Brasil assinou, por intermédio de Furnas, o contrato de construção e financiamento das usinas atômicas Angra
2 e Angra 3, com a Kraftwerk Union (KWU) e o banco Kreditanstalt für Wiederaufbau (KFW). A primeira só entrou em
funcionamento em 2000. Já a terceira planta nuclear do litoral fluminense espera há três décadas o aval do governo. O custo
acumulado de 30 anos de indecisão chega a 1,2 bilhão de dólares (2,6 bilhões de reais), numa estimativa que parte dos 750
milhões de dólares em equipamentos comprados e entregues. Mantê-los de prontidão nos canteiros da obra, paralisada em
meados dos anos 80, é tarefa que exige outros 20 milhões de dólares por ano.
O governo Lula dá sinais de que pretende levar adiante os antigos planos de tornar o Brasil uma potência nuclear. O assunto,
é claro, é só para depois das eleições. “Conto com a aprovação da usina, mas estamos numa época eleitoral e o assunto é
controverso”, disse a CartaCapital o ministro da Ciência e Tecnologia, Sergio Rezende. Ele acredita que a planta nuclear
pode receber o aval do governo este ano, mesmo que, para evitar polêmica, o tema tenha ficado de fora do programa de
campanha de Lula. Já o candidato do PSDB, Geraldo Alckmin, tem defendido publicamente a construção da usina.
Apesar da discrição de Lula com relação aos planos brasileiros na área nuclear, o tema está entre os preferidos do vizinho
Hugo Chávez. Não é de hoje que o presidente venezuelano defende a realização de tratados de cooperação nuclear com o Brasil
e a Argentina. Em entrevista publicada em O Estado de S. Paulo na quinta-feira (7/9), Lula confirmou a possibilidade de acordo
com a Venezuela e defendeu “a cooperação internacional nessa área e o direito de todos os países a terem acesso à
tecnologia nuclear para fins pacíficos, sob a supervisão dos organismos multilaterais especializados”.
O ministro Rezende ressalta que Angra 3 foi incluída entre as fontes de energia previstas no Plano Decenal da Empresa de
Planejamento Energético (EPE) do Ministério de Minas e Energia. Para cumprir o prazo previsto pela EPE e entrar em operação
em 2013, no entanto, a unidade teria de começar a ser construída em 2007.
O principal foco de resistência hoje é, não por acaso, o Ministério do Meio Ambiente. Ao mesmo tempo, a disparada do preço
do barril de petróleo, a crescente demanda mundial pressionando os preços do gás natural e as dificuldades para tornar
viáveis outras alternativas de geração de energia, como a eólica e a solar, atraíram os olhares da comunidade internacional
de volta para a tecnologia nuclear.
Países como os Estados Unidos e a Inglaterra discutem a retomada das construções de reatores nucleares, praticamente
suspensas nos últimos 20 anos, desde o acidente de Chernobyl, na Rússia, em abril de 1986. A catástrofe que traumatizou o
mundo causou a morte de 4 mil pessoas, segundo estimativas oficiais, mas a ONG Greenpeace defende a inclusão de outras 96 mil
vítimas de câncer na contagem.
Quem puxa a atual retomada da energia nuclear no mundo são as economias em desenvolvimento, especialmente as asiáticas. A
China tem cinco reatores em construção e planeja erguer outros 13, enquanto a Índia tem sete unidades em obras e planos para
mais 24, de acordo com a Associação Nuclear Mundial (WNA). O movimento também chegou aos EUA, que trouxeram de volta à
pauta a expansão atômica, e à Europa, onde a Finlândia iniciou a construção de um reator de terceira geração, mais seguro.
Na América Latina, a Argentina (com quem o Brasil tem acordos na área) foi a primeira a anunciar, em 21 de agosto, que
levará adiante o projeto da usina nuclear Atucha 2, interrompido há 25 anos. Para garantir energia suficiente para sustentar
o crescimento econômico do país, o presidente Néstor Kirchner informou que vai investir 1,5 bilhão de dólares para concluir
a terceira central argentina, até 2009.
O presidente da EPE, Maurício Tolmasquim, diz que já existem análises dos ministérios da Ciência e Tecnologia, de Minas e
Energia e do Meio Ambiente sobre a viabilidade de Angra 3, mas a decisão é estratégica e cabe, hoje, apenas ao presidente
Lula. “Mesmo o plano decenal é indicativo, não determinativo, embora mostre que Angra 3 é uma possibilidade concreta de
fornecimento de energia para o País”, afirma. “Por outro lado, não é válido o argumento de que não há alternativas a Angra
3.”
Angra 3 entrou na pauta do atual governo há cerca de dois anos, quando, a pedido do presidente Lula, foi criado um grupo
interministerial para discutir a viabilidade da retomada das obras. Orçada em 1,8 bilhão de dólares, com prazo de construção
estimado em seis anos, a usina foi considerada inviável, na época, pela ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff. Em um
segundo estudo, apresentado no início de 2005, algumas premissas foram revistas a favor da usina e a balança pendeu para o
lado do projeto.
A questão ressurgiu com mais força este ano na Comissão Nacional de Planejamento Energético (CNPE), tendo em vista, além da
escalada de preço das commodities energéticas, a dificuldade de aprovação das obras de novas hidrelétricas no País e o
custo para enquadrar os projetos nas normas ambientais.
Segundo o secretário de Planejamento e Desenvolvimento Energético do Ministério de Minas e Energia, Marcio Zimmermann, a
tarifa de Angra 3, entre 135 e 140 reais por KWh (quilowatt/ hora), passou a ser considerada competitiva na comparação
com outras fontes, como as usinas térmicas tradicionais, movidas a gás natural ou carvão, e até mesmo algumas hidrelétricas.
O cálculo leva em conta os preços do último leilão de energia, em dezembro de 2005. “Angra 3 encaixa-se no atendimento às
necessidades energéticas do País, operando na base da matriz energética, enquanto as térmicas entram em momentos de
necessidade, ou seja, apenas entre 10% e 20% do tempo”, explica.
O grupo francês Areva, que adquiriu o braço nuclear da alemã Siemens, teria apresentado ao governo brasileiro propostas
para o financiamento da construção de Angra 3. O executivo responsável pelas operações brasileiras da Areva na área nuclear,
Johannes Höbart, confirma o interesse de instituições financeiras francesas e alemãs em emprestar ao País os recursos
necessários para a obra. “A idéia é que dois terços dos equipamentos e serviços sejam nacionais e o restante, importado”,
diz o executivo.
Responsáveis por 16% da geração de eletricidade no mundo (quadro na edição impressa), as usinas atômicas respondem por menos
de 2,5% da matriz energética nacional. Segundo dados da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), a produção nuclear
brasileira representou, em 2005, apenas 0,37% do total mundial. A capacidade de geração de energia de Angra 1, comprada dos
EUA no início da década de 70 e em operação comercial desde 1985, é de 657 MW. Mais moderna, Angra 2 tem um potencial de
1.300 MW.
Embora pequeno no mapa mundial da energia atômica, o País tem a sexta maior reserva de urânio do planeta e é um dos poucos
que dominam todo o ciclo de produção do combustível nuclear (quadro Território Radioativo). Estima-se que as reservas
brasileiras sejam ainda maiores, porque as pesquisas feitas até hoje abrangem apenas um terço do território nacional e em
pequenas profundidades.
“Seria um absurdo não explorar esse potencial”, diz Leonam dos Santos Guimarães, chefe de gabinete da presidência da
Eletronuclear, a empresa responsável pelas operações das usinas de Angra dos Reis. De acordo com o executivo, os depósitos
de urânio de Lagoa Real, no município de Caetité, na Bahia, e de Santa Quitéria, no Ceará, possuem um potencial elétrico
duas vezes superior ao das reservas de gás bolivianas. As atividades na mina baiana, a única em exploração atualmente, foram
retomadas este mês, depois de uma parada de cerca de dois meses para a renovação da licença concedida pela Comissão Nacional
de Energia Nuclear (Cnen).
Com tanto combustível atômico sob o solo, defendem os especialistas, o custo de geração poderia ser mais baixo. Para isso,
entretanto, seria fundamental aumentar a escala de produção, de acordo com o presidente da Cnen, Odair Dias Gonçalves.
“Todos os cenários partem da construção de Angra 3. É inevitável”, defende. O executivo levou ao presidente Lula, ainda no
segundo semestre de 2005, uma proposta que prevê a construção de sete usinas até 2022, incluindo a terceira unidade
fluminense.
O entusiasmo das áreas de energia e tecnologia do governo, entretanto, não é compartilhado pelo Ministério do Meio Ambiente.
“Por que subsidiar uma energia que é cara, se o Brasil tem outras alternativas, como biomassa, eólica e tantas outras?”,
questiona o diretor do Programa de Qualidade Ambiental do MMA, Ruy de Góes. Ele avalia que, se Angra 3, que já tem parte do
material comprado, ainda exigirá altos investimentos para ser concluída, a tendência é que novas usinas sejam ainda menos
vantajosas financeiramente.
Para Góes, ainda é cedo para dizer que há uma retomada na produção de energia nuclear no restante do mundo. “Em muitos
países, como a Itália e a Suécia, a própria população decidiu, em plebiscitos, abandonar essa alternativa”, diz. De acordo
com o diretor, o risco de acidentes nucleares deve ser visto em razão de probabilidade e efeito. “Ainda que as chances de
algo ocorrer sejam pequenas, a magnitude dos estragos é enorme”, afirma.
Outro problema associado à tecnologia nuclear, para o qual ainda não há uma solução consensual no mundo, é o que fazer com
os rejeitos radioativos, que podem se manter perigosos por milhares de anos. As próprias usinas precisam ser desativadas
depois de cumprirem uma vida útil em torno de 50 anos. Os EUA estimam gastar 56 bilhões de dólares para construir, em
Nevada, um gigantesco depósito para armazenar, a partir de 2010, os resíduos dos mais de cem reatores em operação no País.
A linha de argumentação do MMA é muito próxima à do Greenpeace. O coordenador da Campanha Antinuclear da ONG, Guilherme
Leonardi, ressalta também que o fato de o Brasil possuir reservas de urânio não justificaria, por si só, a necessidade de
exploração. “Não é porque há biodiversidade no Brasil que vamos utilizá-la de qualquer maneira. Seria irracional”, afirma.
Segundo o físico Luiz Pinguelli Rosa, ex-presidente da Eletrobrás e hoje diretor da Coordenação de Programas de Pós-Graduação
em Engenharia (Coppe) da UFRJ, a opção nuclear não pode ser vista desvinculada da matriz energética e dos interesses
estratégicos do País. “Não é a energia atômica que vai resolver o problema energético do País”, afirma. “É uma decisão
estritamente política.” A opção, de acordo com Pinguelli Rosa, só é válida se o Brasil optar por utilizar e desenvolver o
conhecimento acumulado na área, com uma visão estratégica de longo prazo, sem prejuízo para a exploração do potencial
hidrelétrico.
Enquanto não se chega a uma conclusão sobre Angra 3, o presidente da Associação Brasileira de Energia Nuclear (Aben), Edson
Kuramoto, alerta para o risco crescente de a bagagem tecnológica acumulada pelo País se perder com o tempo. “Não é só o uso
dos equipamentos que está em jogo. A média de idade dos especialistas é de 50 anos e dentro de mais dez anos a maioria deles
vai se aposentar”, diz. Pelo menos 200 engenheiros brasileiros foram enviados para a Alemanha, nas décadas de 70 e 80, para
receber treinamento. “Sem a perspectiva da construção de novas usinas, a tendência é que esse conhecimento se perca.” Como
reza a sabedoria popular, algumas vezes cruzar os braços também é uma maneira de decidir.
Presidente de estatal propõe parceria entre o público e o privado
A construção de Angra 3 seria a melhor justificativa para o Brasil aproveitar um mineral que só se presta à produção de
energia, segundo os especialistas do setor. Mas um outro caminho é o defendido pelo engenheiro Roberto Esteves, presidente
das Indústrias Nucleares do Brasil (INB), estatal responsável pela produção do combustível que abastece as usinas de Angra.
É dele a proposta de explorar, em parceria com a iniciativa privada, a mina de Santa Quitéria, com o objetivo de exportar o
excedente de urânio que o País vier a produzir.
O reservatório cearense é duas vezes maior do que Lagoa Real, com capacidade para produzir 800 toneladas de urânio por ano,
e possui um minério também rico em fosfato, uma matéria-prima importante para a fabricação de fertilizantes e rações animais,
entre outros produtos. “Estamos em busca de um parceiro para explorar a mina, em um sistema parecido com o adotado pela
Petrobras na exploração de bacias”, explica Esteves. As propostas de grupos privados serão entregues à INB até o fim de
setembro.
Com a receita das exportações, seria possível financiar a Fábrica de Combustível Nuclear (FCN) de Resende, para tornar o
País auto-suficiente no setor. Hoje, embora exista uma unidade de enriquecimento de urânio em Resende, ainda não há
equipamentos em escala suficiente para suprir as necessidades de Angra 1 e 2. Para desenvolver a tecnologia e construir uma
primeira cascata (equipamento utilizado no processo), foram gastos 120 milhões de reais. Esteves avalia que seriam
necessários mais 550 milhões para instalar na FCN outras 16 cascatas e suprir a demanda de Angra 1 e 2.
“O urânio, que chegou a ser cotado a 9 dólares por libra (de peso) em 2003, hoje custa 47 dólares a libra e acreditamos que
o preço vai se manter nesse patamar por mais alguns anos”, avalia o presidente da INB. Com o lucro da venda de urânio para
outros países, Esteves diz que a empresa conseguiria, em no máximo dez anos, concluir as unidades de conversão e
enriquecimento de urânio e ainda fazer a prospecção do território nacional em busca de novas reservas do mineral. Uma meta
quase impossível de atingir com os atuais 20 milhões de reais do orçamento anual da empresa.
Um dos empecilhos para os planos de Esteves é um dispositivo constitucional que diz que o Brasil deve assegurar reservas
geológicas estratégicas, como as de urânio, mas não especifica qual o tamanho do estoque necessário. Além disso, o ministro
da Ciência e Tecnologia, Sergio Rezende, acredita que a idéia de exportar urânio ainda precisa ser debatida. “Prefiro que o
Brasil tenha um programa nuclear capaz de financiar as etapas do ciclo do combustível sem vender o minério em estado bruto”,
defende.
(Por André Siqueira, Carta Capital, 13/09/2006)
http://www.cartacapital.com.br/index.php?funcao=exibirMateria&id_materia=5379