Faltava apenas enquadrar o Parque Florestal do Rio Vermelho, em Florianópolis, em uma das duas categorias previstas no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), coisa que, aliás, o governo catarinense já devia ter feito em 2002. Em vez disso, o governador em exercício, Eduardo Pinho Moreira, editou um decreto passando o parque para uma empresa privada, o que enfureceu deputados e entidades ambientalistas.
O Parque Florestal do Rio Vermelho é uma reserva infestada de pinus com 1.297 hectares no leste da Ilha de Santa Catarina. A vegetação original era de restinga e, para recuperar o ecossistema, é necessário um plano de manejo, que só será feito quando parque estiver enquadrado em uma das duas categorias previstas no SNUC (“proteção integral” ou “uso sustentável”), já que a categoria “florestal” não existe na lei. O enquadramento devia estar pronto desde 2002, mas o processo se arrasta em meio às trapalhadas do governo estadual.
A mais recente delas foi o decreto nº. 4.273, de 28 de abril de 2006. Com ele, o governador vendeu o parque para a empresa SC Parcerias S/A por R$ 1 milhão, cerca de R$ 0,70 o metro quadrado. Valor irrisório, se for levado em conta que só com a venda de 40 mil pinus (10% do total) retirados do parque no ano passado, o governo arrecadou cerca de R$ 1,6 milhão.
Por direito, quem deve gerir a unidade é a Fundação Estadual do Meio Ambiente (Fatma), mas, até então, o parque estava irregularmente sob a responsabilidade da Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola (Cidasc) da Secretaria de Agricultura. Continua irregular nas mãos da SC Parcerias, uma empresa com fins lucrativos criada pelo governo para facilitar contratos de parcerias público-privadas (PPP) em infra-estrutura. Seu papel no Parque Florestal do Rio Vermelho, segundo a empresa, é agilizar o enquadramento do parque.
Só que ninguém entendeu o que uma empresa de infra-estrutura tem a ver com uma unidade de conservação. Na última terça-feira (05/09), foi convocada uma audiência pública na Assembléia Legislativa do Estado para esclarecer a atitude do governo.
O deputado estadual Vânio dos Santos (PT) estranhou a pressa do governo em editar o decreto. “Foi feito tão às pressas que há dois vícios neste decreto, o número da Lei que cria a SC Parcerias está errado, além de citar dois imóveis, um que não existe e outro que fica no sul da ilha”, disse, “o decreto está errado, baseado em uma lei errada. Descobrimos uma caixa preta que não estava bem explicada”, denunciou. O deputado disse que já preparou um novo decreto pedindo a extinção do anterior.
Além de “estranho”, o decreto é ilegal, já que o SNUC estabelece que a alteração de uma unidade de conservação só pode ser feita por lei específica. Mas isso não foi problema para o governo de Santa Catarina, que tem uma ação tramitando no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a extinção do SNUC. Na audiência pública, todos os deputados manifestaram-se pela revogação do decreto nº 4.273.
O acordo entre a Fundação Estadual do Meio Ambiente (Fatma) e a SC Parcerias prevê que o Parque Florestal do Rio Vermelho seja enquadrado até o dia 31 de outubro. No cronograma, estão previstos estudos para a delimitação da reserva, sugestão de elaboração do plano de manejo, termo de referência, estimativa de recursos humanos, assessoramento na retirada dos pinus, entre outras atividades. Na próxima segunda-feira (11/09), a equipe da Fatma e da SC Parcerias vai divulgar uma carta convite para a licitação de empresas de consultoria ambiental. O resultado deve ser divulgado no dia 20 de setembro e a empresa será contratada em 2 de outubro.
Mas, para o biólogo João de Deus Medeiros, representante da Federação das Entidades Ecologistas Catarinenses (FEEC), todo o processo é absurdo. “Não vamos criar outro parque. Não precisamos de consultoria, basta que o parque passe para a gestão da Fatma. Como vamos contratar uma empresa para planejar um parque que nem se sabe em que categoria está? O que temos aqui é uma falta de vontade política monumental. Este é um dos raros casos no país em que a regularização fundiária está praticamente resolvida, daí o Estado entrega o parque para uma Sociedade Anônima”, disse Medeiros, sendo aplaudido pelos presentes.
O deputado Federal Edson Andrino (PMDB) é contra a criação do parque sem que as comunidades do entorno sejam consultadas. “Temos que saber que tamanho vai ser a zona de amortecimento, se as comunidades poderão manter a pesca artesanal, se vai ter espaço pra construir uma escola, um posto de saúde, uma área esportiva”, questionou.
Alexandre Lemos, diretor da ONG Aliança Nativa, explicou que a definição dos usos do parque virá com o plano de manejo, que vem depois do enquadramento. O deputado estadual Afrânio Boppré (PSOL) emendou dizendo que “os equipamentos públicos poderiam ser colocados nos espaços privados que já estão reservados para especulação imobiliária”. “É capciosa essa tentativa de colocar a comunidade contra a preservação ambiental, como se uma coisa prejudicasse a outra”, criticou Boppré.
A diretora de ecossistemas da Fatma, Ana Cimardi, defendeu a contratação de uma consultoria para planejar o parque antes do enquadramento. “A Fatma está muito segura da necessidade desses estudos para que, no dia da consulta pública [prevista para 18/11], todas as respostas estejam na ponta da língua”, disse. “A Fatma vai ser a primeira a não querer que se assine o decreto criando o Parque Estadual do Rio Vermelho sem um estudo aprofundado da área”, respondeu, categórica.
Corte de pinus
Para as entidades ambientalistas, a cobiça em torno do parque está ligada ao valor da venda dos pinus que serão retirados da área. O montante arrecadado com o último corte ficou para a Cidasc, para compensar “prejuízos” que teve com o parque durante mais de 20 anos, apesar de ser um órgão do Estado. Parte da verba arrecadada com as próximas retiradas também deverá ir para os cofres da Cidasc.
Para Alexandre Lemos, falta transparência no processo. “A Cidasc ficou de apresentar uma prestação de contas do que gastou com o parque para sabermos a quanto tem direito com a venda de pinus, mas até agora nada”, critica.
Segundo o promotor Alexandre Herculano Abreu, a licitação para o corte de pinus perdeu a validade quando o parque passou para as mãos da SC Parcerias e mais nenhum pinus será retirado do parque antes do enquadramento.
De acordo com Fernanda Martins Piacentini, do departamento jurídico da SC Parcerias, a empresa não vai ganhar nada com o Parque Florestal do Rio Vermelho. Segundo ela, a SC Parcerias não tem investidores particulares, todas as cotas pertencem ou ao Estado ou a órgãos governamentais. “O Parque continua sendo do Estado, e, além do mais, sentimos que o decreto vai ser revogado”, completa.
(Por Francis França, 08/09/2006)
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