Morte de apresentador australiano: raias não atacam ninguém - Artigo
2006-09-06
Como biológo marinho e diretor do Instituto Ecológico Aqualung, acredito ser importante
fornecer informações pertinentes sobre o assunto de modo a esclarecer os fatos.
Conhecido como o "Caçador de Crocodilos", o apresentador de TV australiano Steve Irwin era
famoso por se aproximar demais dos animais selvagens quando captava imagens para seus
documentários. Um de seus muitos "espetáculos", que sempre geravam polêmica mundo afora, foi
dar de comer a um gigantesco crocodilo enquanto segurava seu filho recém-nascido nos braços.
Nessa segunda-feira (04/09), quando filmava cenas submarinas para um novo documentário, na
praia de Port Douglas, na Austrália, Irwin foi morto por uma raia. Ferido no peito pelo
animal, chegou a ser socorrido por paramédicos, mas foi considerado morto no local do
acidente. De acordo com o produtor de seus programas, "Steve segurou uma raia e o barbilhão
entrou no peito dele, abrindo um buraco no coração". Provavelmente, foi uma raia-prego (do
gênero Dasyatis) que ao ser manipulada de forma irresponsável penetrou seu aguilhão no tórax
e inoculou peçonha no coração do apresentador.
Grande parte das raias costuma passar quase todo o dia em repouso na areia, onde algumas se
enterram. As espécies potencialmente perigosas possuem em sua cauda um aguilhão (às vezes
mais de um ao mesmo tempo) que pode inocular uma potente peçonha. O aguilhão é um grande
espinho retroserrilhado e pontudo composto de um duro material semelhante ao osso coberto
por uma fina camada de tecido, onde estão inseridas algumas glândulas produtoras de peçonha.
Quando o animal está tranqüilo e em repouso, o aguilhão fica encostado paralelo à cauda,
acondicionado em uma dobra membranosa e imerso em muco e peçonha produzidos pelas glândulas
da epiderme. Ao ser perturbada ou estressada, a raia costuma dar violentas "chicotadas" com
sua cauda. Nesse momento, seu aguilhão adquire uma posição perpendicular à cauda e, ao
atingir sua vítima, provoca ferimentos profundos e graves com inoculação de peçonha.
No entanto, quando não molestadas, as raias são totalmente inofensivas e incapazes de atacar
ativamente quem quer que seja. Para que ocorra um acidente, é necessário que a raia sinta-se
muito ameaçada ou acuada, pois ao menor sinal de perigo ela costuma afastar-se do local com
extrema rapidez. Cerca de 99% dos acidentes com raia são provocados por pescadores que
insistem em capturá-las, e no ato de dominá-las ou retirá-las da rede ou anzol são atingidos
pelo aguilhão, ou mergulhadores inconseqüentes que acham que podem acariciá-las ou
molestá-las até o limite do insuportável, como se elas fossem um animal doméstico e bobo.
Apenas 1% ocorre por acidente, quando alguém inadvertidamente, ao desembarcar de suas lancha
na praia por exemplo, dá uma "pisada" em uma raia que esteja repousando na água rasa.
Os acidentes com as raias têm dois aspectos médicos importantes cujos efeitos costumam atuar
em conjunto: o trauma provocado pela penetração do aguilhão retroserrilhado e a inoculação
da peçonha, facilitada pela lesão. O trauma provocado pelo aguilhão é puntiforme ou
lacerante, muitas vezes profundo, e pode ocasionar graves conseqüências, muitas vezes com
abundante sangramento. Além dos danos extensos e dolorosos, o aguilhão ou pedaços dele podem
destacar-se da cauda da raia no momento da penetração e permanecer na lesão, ocasionando
complicações futuras. As peçonhas de todas as raias são similares e contêm várias
substâncias tóxicas cujos efeitos sistêmicos costumam afetar os sistemas cardiovascular e
respiratório. Além disso, a peçonha possui uma poderosa ação local de necrose tecidual. A
dor, imediata, intensa e persistente, com características cortante, pulsátil, espasmódica ou
latejante é o sintoma inicial predominante. É seguida, usualmente, por alguns dos sintomas
gerais, como hipotensão ou hipertensão arterial, arritmias, dor de cabeça, dores abdominais,
náuseas, vômitos, febre, sudorese, tremores, fraqueza, vertigem, convulsão, linfangite,
parestesia, paralisia muscular e choque, podendo até ocorrer o óbito. Embora as lesões
ocorram com maior freqüência nos membros, há casos registrados de lesão no tórax com
fatalidade. A penetração do aguilhão em qualquer parte do tronco ou cabeça é considerada uma
grave emergência médica devido às hemorragias internas não controladas, à inexorável necrose
tecidual das vísceras ou órgãos vitais atingidos e inoculados com peçonha e à infecção
secundária.
Fatalidades como essa que ocorreu com o apresentador de TV australiano Steve Irwin são
raras, mas mostram o quanto devemos ter respeito e cuidado ao interagir com esses e outros
animais selvagens. O tipo de programa de televisão que o apresentador fazia, que tem sido
copiado inclusive no Brasil, utiliza-se do domínio, manipulação e abuso de animais com o
objetivo de mostrar o quanto corajosos são seus protagonistas. Ao contrário do que
supostamente pretendem, além de se colocarem em perigo real, deseducam os telespectadores e
mostram um grande desrespeito pela natureza.
(Por Marcelo Szpilman, biólogo, Instituto
Ecológico Aqualung/Ecoagência, 05/09/2006)
http://www.ecoagencia.com.br/index.php?option=com_newsfeeds&Itemid=53