Criar Unidades de Conservação é um ótimo negócio para o meio ambiente. Uma
simples canetada presidencial, destinando uma área para a proteção integral
ou uso sustentável, tem um impacto positivo imediato para a natureza. Um
estudo da Conservation International (CI) conduzido em 93 países mostra que
mesmo num estágio onde a unidade só existe no papel – sem chefe, sem
estrutura, sem plano de manejo e com desapropriações por resolver – ela
serve para ordenar a estrutura fundiária ao seu redor, funciona como
barreira a possíveis desmatamentos e permite a regeneração da vegetação em
áreas já degradadas. Felício Pontes, procurador federal em Belém, lembra que
um estudo feito pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon)
corrobora essa conclusão.
“O trabalho indica que em áreas demarcadas como Unidades de Conservação na
Amazônia a média de desmatamento está em 1,5%. Nas outras, em 20%”, diz. A
explicação para tamanha diferença é simples. Do ponto de vista legal,
desmatar em áreas de proteção é muito mais arriscado. “Se eu flagrar alguém
cortando fora de uma área de proteção, vou ter primeiro que provar que ele
está em cima de área pública federal. Se ele tiver algum papel registrado em
cartório dizendo que a área é dele, o processo vai para as calendas”. Mas se
o grileiro for pego em cima de terra que virou uma Unidade de Conservação
está frito. “É muito mais fácil conseguir uma ordem judicial para botá-lo
para fora de lá e conduzir um processo contra ele pedindo indenização”, diz
Pontes.
Apesar desse claro benefício, a decretação de uma Unidade de Conservação no
Brasil gera ao mesmo tempo um problema imediato. Ela aumenta o estoque de um
passivo ambiental da burocracia estatal criada justamente para resolvê-los e
impedir que se repitam. Tome-se como exemplo o atual governo. Desde que Lula
assumiu a presidência, seu Ministério do Meio Ambiente (MMA) destinou 19,86
milhões de hectares de território brasileiro para Unidades de Conservação.
Nenhuma delas, no entanto, está sequer próxima da consolidação. Por
enquanto, são unidades que existem apenas no papel ou porque não têm chefes
ou estrutura, ou porque continuam com gente não autorizada dentro por falta
de recursos para pagar por desapropriações.
Nesse aspecto, a ministra Marina Silva está tendo desempenho semelhante a de
praticamente todos os seus antecessores. Criar Unidades de Conservação e não
implementá-las inteiramente é uma velha mania nacional. Itatiaia, o primeiro
Parque Nacional do país, tem chefe, tem estrutura, tem plano de manejo, mas
quase 70 anos depois de sua fundação mais da metade de seus 30 mil hectares
continuam ocupados por particulares. Trocando em miúdos, ainda não é uma
área de proteção que possa ser considerada consolidada. Esse passivo
histórico das unidades de conservação não é exclusivo do governo federal.
Alto custo
Ana Cristina Barros, da The Nature Conservancy (TNC), coordenou recentemente
um grupo de trabalho do Fórum Nacional de Áreas Protegidas, grupo consultivo
organizado pelo MMA para estudar o assunto, e conseguiu números
impressionantes. Ela estima que o Brasil tenha cerca de 1 mil e 300 Unidades
de Conservação federais, estaduais e municipais. Segundo ela, em torno de
800 existem apenas no papel. As restantes estão em níveis variados de
estruturação. A proporção é semelhante a que se encontra nas 277 Unidades de
Conservação federais, cerca de 64 milhões de hectares, que estão sob a
responsabilidade direta do MMA e do Ibama. “Cinqüenta por cento delas estão
em estágios primários de consolidação”, diz Valmir Ortega, chefe da
diretoria de ecossistemas do Ibama. Traduzindo, ainda existem apenas no
papel. “As outras estão em algum estágio mais avançado de consolidação” – o
que significa que pelo menos um chefe elas têm.
O maior problema para resolver esse passivo é tão histórico, em se tratando
de Estado brasileiro, quanto ele: falta dinheiro. O orçamento que ano após
ano os sucessivos governos destinaram para sua área ambiental sempre foi
cronicamente insuficiente para reverter esse quadro. Nos ano passado, o MMA
destinou 250 milhões reais para as Unidades de Conservação sob sua
responsabilidade. Segundo estudo conduzido pelo Fórum liderado por Barros,
seria preciso dispensar anualmente 300 milhões de reais para colocar todas
as unidades do país em condições adequadas de operação – pagando por
salários de funcionários, combustível e equipamento. Mas mesmo que houvesse
esse dinheiro, para ele ser bem aproveitado, o Fórum estima que haveria
necessidade prévia de investimentos de 1 bilhão e 400 mil reais nas Unidades
de Conservação para dar a elas um mínimo de estrutura em termos de número de
funcionários, benfeitorias e execução de planos de manejo. Esse valor não
inclui o montante necessário para a desapropriação de particulares, presença
comum nas áreas de proteção do Sul e Sudeste.
Tanto no caso de investimentos quanto no de custeio anual, o principal gasto
é contratação e manutenção de pessoal para trabalhar nas áreas protegidas.
Excluindo-se cargos gerenciais, a pesquisa do Fórum indicou que nas reservas
e parques brasileiros seriam necessários cinco mil funcionários. Seriam
servidores em uma categoria chamada guarda-parque e, na visão dos autores do
estudo, o que mais se aproximaria hoje das funções deste cargo é a mão de
obra do PrevFogo. O problema é que os membros do PrevFogo, atualmente, são
apenas 1,1 mil e a maioria trabalha em regime temporário. A lacuna em
recursos humanos não afeta só as funções de base. O diretor de Áreas
Protegidas do MMA, Maurício Mercadante, conta que uma das dificuldades
primordiais na implantação das novas UCs tem sido a nomeação dos chefes.
Só um
Até o momento, apenas um chefe, o do Parque Nacional da Serra do Itajaí,
criado em 2004, assumiu suas funções nas novas áreas protegidas. A escolha
de Itajaí como a primeira das novas UCs em ter um chefe e um plano de
implementação se deve à estratégia de evitar críticas de que se criam áreas
apenas no papel. “Para tentar reverter a imagem de que parques são criados
mas não são implementados, fizemos um trabalho especial que deu resultados
promissores”, afirma Mercadante. O saldo positivo ao qual ele se refere diz
respeito a parcerias que a chefia do Parque Nacional de Itajaí está firmando
com prefeituras e organizações não governamentais da região.
Mercadante diz que a dificuldade origina-se na escassez de funcionários
concursados e de cargos comissionados no Ibama. O déficit de mão de obra não
permite suprir uma vaga na Amazônia abrindo uma brecha em Brasília, por
exemplo. Esse entrave burocrático foi reduzido graças a dois concursos do
Ibama, um em 2002 e outro no ano passado, para a contratação de novos
funcionários. Mas o impacto não chegou a ser tão positivo para a conservação
porque houve uma decisão de concentrar funcionários do órgão na capital
federal, para atender às necessidades do próprio governo, como o
licenciamento ambiental para obras de infra-estrutura. Dos 545 milhões de
reais que o Ibama têm à disposição para pagar aos seus empregados, pouco
mais da metade destina-se aos salários de pessoal lotado na sua sede.
Parcerias têm funcionado bem melhor para as unidades localizadas na
Amazônia. Um exemplo disso é o programa Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA),
que tem o valor total de 400 milhões de dólares, obtido através de doações
de organismos multilaterais, Ongs internacionais e dos governos do Brasil e
de outros países. Parte do dinheiro será usado em investimentos nas áreas
protegidas da região. E 240 milhões de dólares foram destinados a um fundo
administrado pelo Fundo Nacional para a Biodiversidade (Funbio), que tem
como objetivo render dividendos anuais para financiar a estruturação e
manutenção de Unidades de Conservação na Amazônia no longo prazo. “É uma
forma de sempre poder atender as demandas dos chefes das áreas com rapidez”,
explica o gestor do Programa de Apoio ao ARPA do WWF, Fernando Vasconcelos.
Em 2006, o ARPA financiou a conclusão de 16 planos de manejo em UCs na
Amazônia e mais 17 estão em andamento.
Mas fora a bonança do ARPA, a realidade de caixa com que Ibama e MMA lidam é
infinitamente mais apertada. Uma saída que vem sendo buscada pela burocracia
é fazer com que pelo menos algumas das Unidades de Conservação do país se
tornem auto-sustentáveis, estruturando programas que incentivem a visitação
de Parques Nacionais. O primeiro passo foi a escolha de 23 parques que terão
prioridade nos investimentos em infra-estrutura de visitação. Agora, o Ibama
está contratando uma empresa de tecnologia que vai uniformizar a rede de
cobrança de entradas dos visitantes e impedir que os recursos desapareçam no
caixa-geral da instituição. Segundo o diretor de Ecossistemas do Ibama,
Valmir Ortega, dentro da estratégia de revitalização dos Parques Nacionais,
estão previstas até o fim do primeiro semestre de 2007 as regularizações
fundiárias de Itatiaia e da Chapada Diamantina.
Nem só dinheiro
“Essa escolha do governo é totalmente válida. Abrir os parques para
visitação aumenta a arrecadação e ajuda dar a dimensão do valor ambiental e
social das unidades de conservação”, diz Barros, representante da TNC e
coordenadora do Fórum de Áreas Protegidas. Em sua opinião, a principal forma
de atrair recursos financeiros para as áreas protegidas é traçar para elas
estratégias de utilização. Nesse ponto, entraria em jogo o pagamento por
serviços ambientais. Por exemplo, a qualidade da água retirada de um rio
cuja nascente está em uma UC pode ser remunerada por usuários. Ou ainda, a
propriedade de seqüestrar carbono por uma larga extensão de floresta intacta
seria financiada por países que necessitam reduzir suas emissões. O único
problema das alternativas identificadas como serviços ambientais é que elas
ainda estão engatinhando.
De imediato, o que o governo tem em mãos para a implementação das UCs são os
parcos recursos orçamentários e a compensação ambiental. A compensação está
prevista no artigo 36 da Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação
(9985/ 2000). Trata-se da obrigação para empreendedores que causam impacto
ambiental de investir no mínimo 0,5% do valor total de uma obra em áreas
protegidas. “A lei nos dá opções para o financiamento de uma unidade de
conservação, o único problema é que ainda não conseguimos consolidá-las”,
explica Ortega, que considera a compensação um instrumento “vital” para a
saúde financeira das áreas protegidas. Ele diz que a novela para acertar o
método de cobrança da compensação está próxima do fim. Até o momento, o
Ibama já pactuou 350 milhões de reais com a iniciativa privada por
compensações.
São recursos valiosos, mas que estão sob risco, pois empresários, liderados
pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) estão em uma briga ferrenha
para tornar a compensação inconstitucional. O gerente de Economia da
Conservação Internacional (CI), Alexandre de Almeida Prado, levanta outra
dúvida sobre a validade da compensação. Para ele, o instrumento pode se
tornar uma espécie de “caixinha” do setor privado aos órgãos ambientais.
Seria como trazer para as instâncias licenciadoras uma pressão para aprovar
projetos degradantes que ao mesmo tempo renderiam bom dinheiro às áreas
protegidas. “Temos que olhar a compensação com visão crítica. É como se
prostituir”, diz Prado.
Apesar da temática financeira dominar o debate sobre UCs, alguns
especialistas observam que, para as medidas de implementação saírem do
papel, será preciso também melhor planejamento. Em outras palavras,
transformar o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) em um
sistema operante. No momento, ele enfrenta muitas lacunas de informação,
coisa que prejudica a capacidade de sua gestão. As lacunas atuais são falta
informação e, por conseqüência, gestão organizada. Barros conta que a
primeira grande dificuldade enfrentada pelo seu grupo de trabalho foi
encontrar informações sobre a situação de cada área. Prado vai na mesma
linha: “o problema não é só receita, é a gestão do sistema”. Segundo ele, a
área ambiental do governo não conhece bem as necessidades do SNUC para
pressionar o Congresso por mais recursos orçamentários.
O diretor de Áreas Protegidas do MMA reconhece que o Cadastro Nacional de
Unidades de Conservação, que seria um instrumento precioso de gestão e é uma
obrigação prevista na Lei do SNUC, ainda está longe de estar pronto. Com
relação ao planejamento, Mercadante argumenta que o recém-aprovado Plano
Nacional de Áreas Protegidas deverá ter um papel crucial, pois no documento
estão definidas metas e diretrizes a serem implementadas até 2015.
A necessidade de resolver o problema de consolidação das áreas protegidas,
na medida em que seu número cresce, fica cada vez mais urgente. A blindagem
imediata que um decreto criando uma unidade oferece a um terreno tende a se
esvair com o passar do tempo. “Não dá para deixar as unidades eternamente só
no papel”, diz Pontes, o procurador federal no Pará. “Isso acaba dando um
recado que o país não se importa com as suas áreas de proteção e as deixa
novamente vulneráveis aos desmatadores”. O estudo feito pela CI em 93 países
mostra que Pontes tem toda a razão. Das unidades de papel investigadas
mostra que elas são até oito vezes mais vulneráveis a atividades ilegais do
que aquelas que acabaram sendo consolidadas.
(Por Gustavo Faleiros,
OEco, 31/08/2006)