Argentina quer limpeza, controle sobre as indústrias, rede de esgoto e cuidados com a população mais vulnerável às margens do Riachuelo
2006-08-31
O governo da Argentina apresentou na segunda-feira (28/08) um projeto integral para sanear a bacia do Rio Matanza-Riachuelo, sinônimo de contaminação. A idéia é criar um organismo com poder de polícia para controlar um recurso que se estende através de diversas jurisdições. Em sinal dessa vontade de trabalhar de maneira conjunta, o presidente Nestor Kirchner, liderou o ato de apresentação da iniciativa junto com o governador da província de Buenos Aires, Felipe Solá; o chefe de Governo da cidade de Buenos Aires, Jorge Telerman, e intendentes da área da bacia.
“Sonhar com um Riachuelo limpo é possível porque existe uma decisão política clara do presidente”, disse a secretária de Meio Ambiente, Romina Picolotti, ex-presidente da organização não-governamental Centro de Direitos Humanos e Meio Ambiente e designada para a secretaria há pouco mais de um mês. O chefe de Gabinete, Alberto Fernández, ressaltou que o objetivo do plano é “por fim a um espantoso modelo da decadência argentina”, com é a contaminação dessa bacia, que se arrasta há mais de um século, segundo denúncias judiciais do início do século XX.
O projeto enviado ao Congresso declara que a “emergência ambiental” do rio de águas fétidas e para isso propõe criar uma Autoridade de Bacia com representantes das três principais jurisdições envolvidas. O organismo investirá a Secretaria de Meio Ambiente com poder de polícia para multar empresas que a contaminarem. A proposta prevê a limpeza dos rios e também maior controle sobre as indústrias, créditos para a reconversão industrial, investimentos na extensão da rede de esgoto e água potável, instalação de usinas depuradoras e cuidados com a população mais vulnerável às margens, incluindo seu traslado.
A Bacia Matanza-Riachuelo tem apenas 64 quilômetros de comprimento desde sua nascente, no oeste de Buenos Aires, até a desembocadura, no Rio da Prata. Seu curso marca o limite entre a capital do país e a província de Buenos Aires e passa por 14 municípios deste último distrito. Trata-se de uma área de 2.240 quilômetros quadrados onde vivem 3,5 milhões de pessoas. Nessa superfície há cerca de 3,5 mil indústrias, muitas delas contaminantes; 13 assentamentos precários, múltiplas conexões de esgoto clandestinas que é jogado no rio e, ainda, 42 lixões a céu aberto. Segundo dados oficiais, nesta zona central do país 35% dos moradores não têm acesso à água potável e 55% carecem de esgoto.
De acordo com um informe da Defensoria do Povo da Nação, a causa principal da poluição é o despejo de orgânicos sem tratamento. Mas também há muitas empresas de hidrocarbonetos, curtumes, químicas, metalúrgicas e frigoríficas. Muitas jogam seus efluentes no rio, e a falta de uma ação coordenada dos governos envolvidos tem impedido uma ação de controle. A Auditoria Geral da Nação concluiu em abril que a bacia é “uma verdadeira cloaca onde o prejuízo à vida aquática é total”. Por sua vez, a Defensoria do Povo divulgou dois informes nos últimos seis anos advertindo para os graves riscos sanitários para as populações que vivem em suas margens.
Mas a gota final para uma resposta política concreta foi a decisão da Suprema Corte de Justiça, que em junho intimou as autoridades das três jurisdições a apresentarem um plano de saneamento no prazo de 30 dias e determinou que 44 empresas informassem seus despejos e estudos de impacto ambiental. A resolução, emitida no contexto de uma demanda por contaminação apresentada por um grupo de moradores de Riachuelo, determina que as partes apresentem-se a uma inédita audiência pública para encontrar uma solução para a contaminação da bacia. A reunião acontecerá no dia 5 de setembro, e poderá durar vários dias.
Em razão dessa demanda, a secretária Picolotti assumiu a tarefa de coordenar os projetos dos diversos distritos e apresentou na semana passada a proposta ao tribunal. Agora, o projeto ganhou forma de um projeto de lei que deverá ser examinado pelo Congresso. Na apresentação do projeto, o governador Solá destacou a importância de se criar a Autoridade de Bacia e dotá-la de verdadeiras faculdades. Também ressaltou que fará uma “enorme vontade política” para chegar ao objetivo final de saneamento com o acordo de todas as partes.
Mas para Solá o maior desafio será atender as necessidades das populações que vivem em assentamentos precários na bacia baixa, a mais afetada pela contaminação. “Eles contaminam pela falta de esgoto, mas são as principais vítimas dela”, admitiu. Picolotti antecipou que “as pessoas serão o objetivo principal do plano”. Moradores e ambientalistas se manifestaram satisfeitos com a idéia. Alfredo Alberto, da Associação de Moradores de La Boca, bairro de Buenos Aires às margens do Riachuelo, explicou à IPS que a chave da proposta está na criação do comitê de bacia, com poder de controle da contaminação.
Com algumas variações, organizações ambientalistas que trabalham em torno da bacia receberam com expectativa a proposta do governo. Entretanto, algumas fontes foram cautelosas. Esperam que a iniciativa seja aprovada pelo Congresso para verificar, em seguida, se as jurisdições envolvidas cedem faculdades de controle à nova autoridade. “A proposta coincide muito com a que sugeríamos”, disse à IPS Pedro Del Piero, presidente da Fundação Metropolitana. “É muito auspicioso que este assunte tenha entrado na agenda política, e isso queremos resgatar fortemente”, acrescentou. No entanto, manifestou o temor pelo alto protagonismo do governo federal na solução de um problema interjurisdicional e de que as ações se frustrem pela falta de participação dos atores municipais, os mais afetados pela contaminação e pelas propostas de saneamento.
Do mesmo modo, Andrés Nápoli, da Fundação Ambiente e Recursos Naturais, considerou que a criação de uma autoridade comum para o Riachuelo “é um bom passo” para o saneamento da bacia, “sempre e quando estiverem incluídas todas as autoridades da região afetada. O recurso natural é de todos, e se todos não estiverem bem representados não haverá possibilidade de um controle efetivo”, afirmou. Nápoli também disse que “será preciso avaliar profundamente” o plano apresentado pelo governo. As organizações ambientalistas queriam incorporar a ele “um estudo de linha de base” para medir o grau atual da contaminação e o eventual progresso de um programa de saneamento.
(Por Marcela Valente, Envolverde, 30/08/2006)
http://www.envolverde.com.br/materia.php?cod=21996