A Cachoeira de Iauaretê, localizada no rio Uaupés, região do Alto Rio Negro (AM), será registrada no Livro dos Lugares do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, do Ministério da Cultura. Anunciado no começo de agosto pelo Iphan, o registro marca mais uma etapa no processo de revitalização cultural promovido por lideranças indígenas da região, que inclui também a reconstrução de malocas, a retomada de práticas rituais nas comunidades e a implementação de escolas indígenas, entre outras iniciativas.
No começo de agosto o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) anunciou o registro da Cachoeira de Iauaretê, na região do Alto Rio Negro (AM), no Livro dos Lugares do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, do Ministério da Cultura (Minc). O local, um trecho do rio Uaupés considerado sagrado pelos povos Tariano e Tukano, bem como por outras etnias que vivem em Iauaretê, passa assim a ser o nono patrimônio imaterial brasileiro, o primeiro a ser registrado no Livro dos Lugares – os demais patrimônios imateriais estão descritos nos livros dos Saberes, das Celebrações e das Formas de Expressão.
As pedras e demais formações da Cachoeira de Iauaretê têm significado fundamental de acordo com os mitos de origem dos povos indígenas que vivem na região de Iauaretê, distrito do município de São Gabriel da Cachoeira (AM), no extremo noroeste brasileiro, onde vivem cerca de quatro mil pessoas.
As pedras que formam as corredeiras do rio Uaupés são especialmente importantes aos Tariano, uma das etnias mais numerosas do povoado. “Grande parte da toponímia de Iauaretê refere-se às transformações de Okomi, um dos seres do começo dos tempos que foi devorado pela gente-onça. Os Tariano referem-se a ele como ‘nosso avô’, pois seriam seus descendentes em linha direta”, resume Geraldo Andrello, antropólogo do Instituto Socioambiental (ISA).
A qualificação da Cachoeira de Iauaretê como patrimônio imaterial brasileiro foi fundamentada por um dossiê técnico e um vídeo feitos a partir do registro das narrativas indígenas associadas aos diferentes pontos da cachoeira. O trabalho, realizado pelo ISA em parceria com Iphan, Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e ONG Vídeo nas Aldeias, contou com a participação direta de lideranças Tariano e Tukano que, ao longo de dez dias do mês de fevereiro de 2005, relataram em versões detalhadas seus mitos de origem no local onde eles teriam ocorrido.
Não o fim, mas o começo
O registro da Cachoeira de Iauaretê encerra um processo iniciado há dois anos, quando o Iphan esteve em São Gabriel da Cachoeira para explicar às lideranças indígenas regionais a política do governo federal de registro dos chamados “bens culturais de caráter imaterial” e discutir a inserção, nesta política, do patrimônio cultural dos povos do Alto Rio Negro.
Mais do que um ponto final, porém, o registro da Cachoeira de Iauaretê como patrimônio imaterial brasileiro significa o início de uma nova etapa no movimento de revitalização cultural conduzido pelos Tariano, Tukano e demais etnias de Iauaretê.
Isso porque o registro da Cachoeira de Iauaretê no Livro dos Lugares vem se somar a uma série de ações realizadas ou planejadas por algumas lideranças indígenas de Iauaretê com o objetivo de fortalecer a cultura local. O processo de revitalização cultural, por sinal, faz parte de um movimento maior, em curso já há alguns anos em toda a região do Alto Rio Negro. Ele consiste em diversas iniciativas, como a reconstrução de malocas (as grandes moradias do passado que eram também centro da vida cerimonial), a retomada de práticas rituais em desuso por várias décadas nas comunidades indígenas, bem como a implementação de escolas indígenas com projetos político-pedagógicos diferenciados (com destaque para utilização das línguas indígenas nas salas de aula).
No bojo destes projetos, vários materiais didáticos e para-didáticos também foram elaborados, com destaque para a coleção "Narradores Indígenas do Rio Negro", editada pelo ISA e pela Foirn, que já conta com oito volumes publicados, e apresenta versões das mitologias de origem do mundo e da humanidade segundo a visão das etnias locais.
Com o apoio do governo federal – agora confirmado com o registro da Cachoeira de Iauaretê – novas perspectivas se abrem para os povos envolvidos. Isso porque o registro da cachoeira implica em posteriores “ações de salvaguarda” do patrimônio imaterial, inclusive com o aporte de recursos para o fortalecimento das iniciativas. Entre elas, destaca-se a utilização dos relatos sobre o significado das pedras e formações da cachoeira – arquivados em DVDs – como ferramenta de aprendizagem na escola Tariano de Iauaretê, de modo a incrementar a transmissão do conhecimento ancestral da etnia para as novas gerações.
As lideranças de Iauaretê também planejam publicar um livro registrando seus mitos de origem e a história recente do povoado e de suas populações – tema que inclusive já foi objeto de uma pesquisa preliminar conduzida pelo ISA. A promoção de oficinas de construção de malocas e o inventário de sítios arqueológicos nos arredores de Iauaretê também estão previstos.
Ornamentos recuperados
Outra iniciativa importante refere-se ao desejo dos Tariano e Tukano, e de demais etnias de Iauaretê, em reaver alguns ornamentos e enfeites de seus antepassados atualmente guardados no Museu do Índio de Manaus, muitos deles arquivados na reserva técnica do museu e não expostos ao público. Estes objetos sagrados foram obtidos pelo estabelecimento, de acordo com seus administradores, por doação e em troca de artefatos e mercadorias como espingardas, sabão, material fotográfico e roupas.
A idéia dos índios é transferir um pequeno conjunto de peças do museu para a maloca Tariano inaugurada no final de 2005 em Iauaretê, que é o mais novo local para a realização de atividades culturais e educativas do distrito. Com a repatriação das peças a maloca passaria a se constituir como um “museu vivo”, contribuindo para o que os alunos das escolas de Iauaretê tenham acesso a importantes aspectos do patrimônio cultural de suas etnias.
A intenção de repatriar as peças veio à tona em novembro do ano passado, quando lideranças Tariano e Tukano visitaram o museu em Manaus e elegeram os objetos a serem recuperados pelos povos de Iauaretê. O processo de repatriação das peças vem sendo gerido pelo Iphan, que nos próximos meses deve apresentar ao Museu do Índio um Termo de Repatriação que prevê a correta transferência dos enfeites para a maloca de Iauaretê, assim como sua guarda e conservação.
Um lastro para as novas gerações
O movimento de revitalização cultural no Alto Rio Negro pode ser entendido como uma reação das lideranças indígenas mais antigas ao progressivo distanciamento dos jovens em relação a suas tradições culturais. Esse distanciamento, que resulta de programas de catequese e "civilização", operados pelo Estado e missões religiosas ao longo de mais de dois séculos de contato, é hoje agravado por um movimento de concentração das famílias indígenas nos centros urbanos do Alto Rio Negro – principalmente Iauaretê e São Gabriel da Cachoeira –, em busca de educação continuada, renda e outros serviços públicos.
Esse movimento tem implicado, para os mais jovens, em um desconhecimento de certas referências culturais mais associadas ao estilo de vida comunitário. O processo é apontado pelos mais antigos como uma das causas dos recorrentes problemas sociais detectados nos núcleos urbanos regionais, envolvendo jovens indígenas, como os confrontos violentos entre gangues, casos de estupro e de alcoolismo.
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Instituto Socioambiental, 29/08/2006)