Livre comércio e ambiente, riscos crescentes à saúde
2006-08-30
Acordos multilaterais e bilaterais de comércio e problemas ambientais, como mudanças climáticas, constituem graves ameaças à saúde humana, segundo especialistas reunidos na semana passada no XI Congresso Mundial de Saúde Pública. Regulamentações domésticas, como as que restringem o comércio de tabaco ou favorecem a produção de medicamentos genéricos, podem ser questionadas por firmas estrangeiras como sendo "barreiras comerciais", alertou Ellen Shaffer, diretora do Centro para Análises de Políticas de Comércio e Saúde (CPATH), dos Estados Unidos.
O Tratado de Livre Comércio República Dominicana-América Central com os Estados Unidos (DR-Cafta) pode ser "uma tragédia" para os portadores do vírus HIV ao ameaçar os remédios genéricos, deu como exemplo, destacando que nas negociações deste tipo de acordo, em geral, não participam representantes da saúde pública. Os fatores determinantes da saúde, especialmente sociais e ambientais, atraíram a atenção dos mais de 10 mil participantes do encontro, realizado em conjunto com o VIII Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, que teve como tema central "Saúde pública em um mundo globalizado: rompendo barreiras sociais, econômicas e políticas".
A globalização, somando a liberalização dos fluxos financeiros e comerciais, não criou a pobreza e a desigualdade, mas as agrava, afirmou o brasileiro Roberto Guimarães, ao resumir o Informe da Situação Social Mundial de 2005, que coordenou como funcionário do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas, publicado com o título "O dilema da desigualdade". Uma profusão de dados, "insuspeitos, porque são do Banco Mundial", mostra que a desigualdade persistiu, ou aumentou, em várias áreas das últimas décadas, com 10% da população mais rica concentrando 53,4% da renda do planeta, enquanto somente 2,2% ficam para os 10% mais pobres, afirmou.
Algumas vezes as estatísticas são usadas para ocultar essa verdade. A brecha entre países em desenvolvimento e industrializados diminuiu desde 1990 em termos globais, mas "é uma mentira" quando se exclui a China, disse Guimarães. A disparidade se manifesta também em dimensões mais econômicas, como na educação, saúde e padrões de consumo. Os países em desenvolvimento concentram 90% da mortalidade materna mundial, suas mulheres enfrentam um risco 460 vezes maior de morrer durante o parto do que as grávidas de países ricos. Os resultados concretos do informe dependerão do uso que os governos fizerem dele, mas é importante denunciar uma tendência agravada pelos acordos de livre comércio e porque propõem medidas que podem se contrapor a ela, disse Guimarães à IPS.
Sabe-se, por exemplo, que as remessas de dinheiro enviadas pelos imigrantes aos seus países de origem superam em muito a ajuda ao desenvolvimento oferecida pelo mundo industrializado, que nunca cumpriu a meta acordada. Entretanto essas remessas pagam entre 10% e 20% de taxas bancárias, um custo que poderia ser reduzido em favor do desenvolvimento, acrescentou o especialista brasileiro. Para promover a geração de empregos decentes, como propõe a Organização Internacional do Trabalho, pode-se criar um certificado como a ISO, que, bem ou mal, representou um avanço na questão ambiental, para empresas que respeitem os direitos trabalhistas e não explorem o trabalho infantil, disse Guimarães. A ISO são normas internacionais industriais e comerciais fixadas pela não-governamental Organização Internacional para a Padronização.
As nações em desenvolvimento devem avaliar com o máximo de precaução uma adesão ao Acordo Geral sobre Comércio e Serviços (GATS), no contexto da Organização Mundial do Comércio, porque significa assumir compromissos que serão "muito difíceis de mudar no futuro", recomendou Chantal Blouin, pesquisadora do Instituto Norte-Sul, do Canadá. São acordos que protegem, principalmente, os investidores estrangeiros, cujos interesses não coincidem com os da saúde pública do país. Os investimentos em serviços de saúde na América Latina, por exemplo, buscam apenas setores de "alta renda e baixo risco", aproveitando a "fraca regulamentação" do setor, disse Guimarães como exemplo.
A relação entre meio ambiente e saúde também foi tema de numerosos painéis e palestras durante o Congresso da Federação Mundial das Associações de Saúde Pública. "Um quarto das mortes no mundo é provocado por fenômenos ambientais", e nos anos 90 os desastres naturais provocaram meio milhão de mortos e US$ 750 bilhões em perdas materiais, destacou o vice-almirante Conrad Lautenbacher, representante do Ministro da Saúde e da Marinha dos Estados Unidos no Sistema de Observação Global da Terra (GEOSS).
Este sistema foi apresentado por Lautenbacher como uma espécie de "Big Brother" ambiental, reunindo organizações e cientistas de 65 países em um esforço para monitorar o planeta na prevenção de desastres naturais, como tsunamis e furacões, ultimamente acentuados. As mudanças climáticas e ambientais, estimuladas pelo tipo de desenvolvimento adotado, têm relação direta com muitos problemas de saúde, por isso constituíram um tema central do encontro, justificou à IPS Álvaro Matida, secretário-geral do Congresso, que pela primeira vez aconteceu na América Latina. A água, abundante e descuidada na região, é um grave problema de saúde pública, bem como fonte de conflitos que ajudam a prejudicar a saúde humana, concluiu.
(Por Mario Osava, Envolverde, 28/08/2006)
http://www.envolverde.com.br/materia.php?cod=21828&edt=1