Em recente seminário realizado em São Paulo sobre crédito de carbono, um importante fundo de investimentos internacional resumiu seu interesse pelo país da seguinte forma: "A turma do Miguez é o selo de garantia para entrar no mercado brasileiro".
A platéia, formada por advogados e representantes do setor financeiro, ouviu em silêncio a explanação que se seguiu sobre o potencial do país para o negócio. Todos estavam em busca de informações e experiências sobre o incipiente comércio de carbono. Mas ninguém ali pareceu estranhar a menção a José Domingos Gonzalez Miguez, o "chefe da turma" brasileira mais respeitada na área ambiental, que catapultou o Brasil para posição de destaque nas negociações internacionais.
O secretário-executivo da Comissão Interministerial de Mudança Global do Clima, ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), é citado com freqüência nos seminários que pipocam na cidade, tanto pelos palestrantes quanto nas conversas do intervalo para café. Seu poder: aprovar ou não os projetos de redução de gases do efeito estufa a serem desenvolvidos no Brasil, que podem gerar milhões de dólares em créditos de carbono.
As referências à comissão costumam ser positivas. "Ela está fazendo um trabalho muito sério", diz um economista de um banco que preferiu não ser citado. Outro, ao seu lado, confirma com a cabeça e arremata: "Eles são uns chatos, criteriosos demais, mas deram respeito ao Brasil lá fora".
A comissão para mudanças climáticas é a autoridade brasileira designada a aprovar os chamados projetos de MDL (Mecanismo de Desenvolvimento Limpo), recurso criado pelo Protocolo de Kyoto que permite aos países poluidores investir em projetos de redução de emissões dos gases do efeito estufa em países em desenvolvimento. É através dele que as empresas obtêm as certificações necessárias para comercializar os créditos de carbono.
Quem dá o aval para a emissão de créditos é o Conselho Executivo do MDL da ONU. Mas, para chegar até lá, o projeto precisa antes da aprovação da autoridade designada pelo país hospedeiro - no caso brasileiro, a comissão do Miguez.
Ao contrário de seus principais concorrentes nesse mercado - Índia e China -, o Brasil é considerado muito exigente em suas avaliações. Consultorias, certificadoras e empresas afirmam que o órgão cerca-se por todos os lados, pedindo documentos além do exigido pelos termos de Kyoto. Para os investidores estrangeiros, o perfil "cricri" é justamente o selo de garantia a qual se referiu Ricardo Nogueira, da Trading Emissions - um dos maiores fundos mundiais compradores de créditos de carbono, com quase US$ 200 milhões investidos.
"Somos rigorosos no sentido positivo - não deixamos passar projeto com problemas. Para o mercado, a aprovação brasileira já passou a significar quase uma certeza de registro na ONU", diz Miguez, em uma entrevista de duas horas concedida ao Valor. "Nunca ocorreu de um projeto que nós tenhamos aprovado ter sido rejeitado pelo conselho executivo da ONU. Isso já aconteceu com projetos da Índia e México."
O trabalho do Brasil tem chamado a atenção por vários motivos. O país foi o primeiro do mundo a estabelecer uma autoridade nacional para analisar os projetos. Também teve o primeiro projeto registrado como MDL na ONU, de um aterro sanitário em Nova Iguaçu, no Rio. A própria idéia do MDL foi uma proposta brasileira, de 1997, nascida como um fundo de desenvolvimento limpo e modificada em Kyoto para o atual mecanismo.
O rigor técnico da equipe brasileira na avaliação dos projetos foi determinante para o bom resultado do Brasil neste mercado. O país é o segundo com maior número de projetos apresentados à ONU, atrás de Índia e à frente de China. Já foram apresentados 182 projetos brasileiros - 59 já obtiveram registro na ONU.
"Durante uma visita ao Reino Unido, a autoridade britânica nos disse que prefere a maneira como o Brasil trabalha porque garante a confiabilidade da redução de emissão", diz Miguez.
Formada por 11 ministérios, a comissão reúne-se a cada dois meses para analisar as propostas, a maioria do setor energético e tratamento de resíduos. Ao menos três pareceres são elaborados sobre a viabilidade dos cerca de 20 projetos enviados por mês ao grupo, com 100 páginas cada.
A maior crítica à comissão tem sido a exigência da apresentação de um relatório de validação por uma certificadora independente no ato da entrega do projeto. O Brasil é também o único país a pedir isso - esse documento é exigido apenas pela ONU. "As pessoas reclamavam que estávamos criando um risco adicional pedindo o relatório de validação. Não vejo porquê. Se o projeto é sério, ele terá que ter a validação de qualquer jeito", diz Miguez.
Quando não são aprovados de primeira ou aprovados com ressalvas - com pequenos erros de edição, que não comprometem a idéia -, os projetos de MDL entram para revisão. Cerca de 30% dos projetos apresentados em Brasília estão nessa categoria. "A gente recebe projetos em que a licença ambiental venceu em 2002. Como é que eu vou aprovar isso?", diz Miguez. Ele cita ainda inconsistências nos cálculos e metodologias de redução de gases. "Querem que seja tudo frouxo. A gente quer que o Brasil tenha respeitabilidade. Quando digo que reduzo emissão, estou realmente reduzindo emissão."
A experiência técnica da secretaria executiva da comissão, sobretudo no setor de energia, é fundamental para detectar os erros nas entrelinhas. "Eu venho da Petrobras, temos colegas da Eletrobrás, gente com muita experiência. Participamos de quase todos os programas de planejamento energético de 1978 para cá", diz o secretário-executivo.
Embora diga que trabalha muito - "ainda bem que eu como e durmo pouco" -, Miguez foi escolhido por seu colegas de países em desenvolvimento para assumir a presidência do Conselho Executivo do MDL nas Nações Unidas em 2006, cargo rotatório e que este ano é representado pelo bloco não-Anexo I, dos países em desenvolvimento. "Quando há algum tipo de negociação muito técnica, os países em desenvolvimento da ONU pedem para que o Brasil coordene."
(Por Bettina Barros,
Valor Econômico, 28/08/2006)