Os problemas enfrentados pela Amazônia Legal são tão grandiosos quanto os seus 508 milhões de hectares. As constantes denúncias de usurpação de terras públicas da União e dos Estados, mediante falsas escrituras de propriedade, as chamadas grilagens, preocupam pelas conseqüências que as acompanham: a exploração ilegal de madeira, o desmatamento e a biopirataria. Soma-se a isto o trabalho escravo e a destruição de reservas indígenas.
De acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), desde 2004, quando foi editada a Portaria 10 para normatizar a ocupação de áreas públicas federais da região, 46,7 mil cadastros de imóveis correspondentes a 21 milhões de hectares (4,13% da Amazônia Legal) foram inibidos – impossibilitados de receber qualquer documentação –, quase todos fruto de grilagem. Em ação conjunta com o Ministério do Meio Ambiente, o Incra já conseguiu regularizar 11,8 milhões desses hectares, destinando-os a quem de direito.
As tentativas de loteamento da Amazônia são ousadas. O estudo "Grilagem de terras na Amazônia: negócio bilionário ameaça a floresta e populações tradicionais", feito pelo Greenpeace, mostra que sete corretoras virtuais oferecem 11 milhões de hectares de floresta nos Estados do Amazonas, Pará, Rondônia e Roraima, por um valor total de mais de R$ 900 milhões.
Esses e outros problemas foram apontados pela CPI da Amazônia, realizada em 2000, na Câmara dos Deputados, e pela CPI Mista da Terra, finalizada no ano passado, que mostraram a forte ação dos grileiros.
Estrangeiros na briga por terras
Além da ação ilegal de brasileiros na região, autoridades e organizações não-governamentais também se preocupam com estrangeiros que anunciam, aos quatro cantos, que já possuem seus hectares na região.
A Fundação Nacional do Índio (Funai) pediu à Polícia Federal que investigue o empresário chinês Lu Weiguang, que, em entrevista a O Globo, afirmou ter comprado, em 2004, 1.000 quilômetros quadrados da floresta amazônica em uma reserva indígena. Ele teria dito que tem "muito orgulho desse empreendimento porque a Amazônia não é apenas um tesouro dos brasileiros, mas um tesouro do mundo inteiro".
Por várias vezes, Arthur Virgílio (PSDB-AM) referiu-se em Plenário ao "magnata sueco" Johan Eliasch, que segundo o senador "está disposto a comprar terras e mais terras na Amazônia".
– Eliasch já comprou 160 mil hectares da floresta amazônica, compreendendo duas fazendas, uma em Manicoré e outra em Itacoatiara, ambas no meu estado – declarou o senador em abril.
O também senador amazonense Jefferson Péres (PDT) disse não embarcar "na paranóia de uma conspiração de países ricos para nos tomar a Amazônia".
– Mas compartilho da preocupação quanto à alienação de uma considerável parte do nosso território na região – ressaltou.
Lei de Florestas Públicas ainda divide opiniões
Para uns, lei é ameaça à soberania. Para outros, solução contra grilagem
Em vigor desde março deste ano, a Lei de Florestas Públicas ainda divide opiniões sobre sua eficácia. Para alguns, a legislação permitirá minimizar a expansão da grilagem e suas conseqüências. Para outros, no entanto, áreas privilegiadas da floresta – que ainda conservam biodiversidade intacta – poderão ser postas em risco.
A lei regulamenta o uso sustentável de florestas públicas no Brasil, definindo três formas de gestão: a criação de unidades de conservação que permitem a produção florestal; a destinação para uso comunitário como assentamentos, reservas extrativistas e áreas quilombolas; e as concessões florestais pagas, com base em processo de licitação pública.
O senador Edison Lobão (PFL-MA) considera "um escândalo" a China ser o maior exportador de móveis de madeira para os Estados Unidos, tendo boa parte da matéria-prima importada de "forma legal ou ilegal" da Amazônia brasileira.
Para o senador, a lei "abre largas portas para um loteamento da floresta amazônica, a ser aproveitado por empresas nacionais ou estrangeiras". Lobão questiona se será possível impor algum controle eficaz, já que hoje "os órgãos brasileiros de fiscalização não conseguiriam impedir a devastação e a exportação ilegal de madeira".
Para o senador Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR), com a lei "as florestas serão alugadas para grandes conglomerados internacionais".
Já para o senador Tião Viana (PT-AC), a lei deverá acabar com o maior problema atual da região: a grilagem de terra. "Precisamos ter o marco legal, o zoneamento, a definição de uso e defesa das potencialidades econômicas da Amazônia", explicou.
Para o pesquisador do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), Adalberto Veríssimo, a grilagem será solucionada com a Lei de Florestas Públicas, com o recadastramento de títulos de terras feito pelos órgãos governamentais e com a criação das unidades de conservação.
"Há uma série de medidas tomadas no governo anterior e no atual que tornaram mais rígido o cadastro de terras na região. Quem faz grilagem sabe que agora irá perder dinheiro", afirmou.
José Batista Afonso, membro da Coordenação Nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), acredita que a lei terá efeito negativo, principalmente pela ineficiente fiscalização na Amazônia. "Alguma coisa é feita pelo Incra e pelo Ibama, mas não o suficiente para coibir a extração ilegal de madeira, a implantação de grandes fazendas, o trabalho escravo imposto pelos grileiros – alertou Afonso.
Procuradores impedem que União indenize grileiros
No Pará, um dos estados mais prejudicados pela grilagem, o Ministério Público Federal está à caça das grandes áreas adquiridas de maneira ilegal. Recentemente, os procuradores da República conseguiram impedir que o governo indenizasse a empresa Incextil, que pertenceria ao grupo C. R. Almeida, pela desapropriação de 4 milhões de hectares da Fazenda Curuá e 1 milhão de hectares dos seringais Belo Horizonte, Humaitá, Caximguba, Mossoró e Forte Veneza.
"Os seringais, por exemplo, estão localizados em áreas de conservação, como a Terra do Meio e terras indígenas. Por isso pedimos o bloqueio dos títulos e a retirada da empresa da área", diz o procurador da República, Marco Antônio de Almeida.
Segundo o advogado Eduardo Toledo, a empresa Incextil pertence ao empresário Cecílio Rego de Almeida, e não ao grupo Almeida. Ele nega que o empresário seja grileiro, afirma que os títulos de posse da terra são verdadeiros e que por isso contesta na Justiça as acusações do Ministério Público.
No início dos anos 2000, cerca de 30 milhões de hectares no Pará estavam na mão de grileiros. O procurador Marco Antônio é categórico ao apostar que a situação está mudando, e para melhor. Com ações civis públicas, o MPF está conseguindo devolver à União e ao estado áreas tomadas pelos grileiros. "As posses precárias acabam sendo permitidas pelos cartórios. Já conseguimos fechar um em Altamira que estava envolvido com irregularidades".
Além disso, a Corregedoria de Justiça determinou o bloqueio de todas as matrículas que excedem os limites constitucionais, conforme o permitido à época pela Carta Magna vigente. Pela Constituição de 1988, se a área total for superior a 2.500 hectares, sua aquisição ou doação deve ser aprovada pelo Congresso Nacional. "Em momento algum os grileiros conseguem documentos para comprovar a transferência da posse de terra da União ou do estado para seus nomes", enfatiza.
Passo a passo da grilagem
Uma pesquisa do Greenpeace identificou os seguintes procedimentos por parte dos grileiros:
Passo 1. O grileiro identifica a terra a ser grilada.
Passo 2. Consegue o controle da terra, empregando geralmente um dos quatro métodos a seguir:
A – Uso de concessões inválidas de seringais
Durante os anos 40 e 50, foram expedidas concessões para seringais válidas por apenas um ano. Mas esses documentos de concessão foram usados como base para solicitar documentos de terra. Na maioria das vezes, a descrição imprecisa dos limites de terra facilita o registro de áreas muito maiores que a concessão original.
B – Ocupação física de uma área não ocupada previamente
O grileiro chega em uma área de floresta, faz a demarcação do local e guarda a área com homens armados.
C – Concessões inválidas de sesmarias
Entre 1531 e 1822, concessões de terras não-cultivadas, chamadas de cartas de sesmarias, foram designadas para colonos trabalhar na terra. Recentemente, esses antigos direitos foram usados ocasionalmente como base para registro de documentos de terras, apesar de esse sistema ter sido abolido.
D – Ocupação, aquisição ou falso arrendamento de terra ocupada fisicamente por outros (colonos tradicionais, como os ribeirinhos).
O grileiro compra as posses de famílias da região. Depois, ele marca uma grande área com piques (trilhas abertas na floresta), muitas vezes reivindicando a propriedade de toda a terra comunitária. Quem não aceita a reivindicação do grileiro freqüentemente é expulso da área pelo uso de violência.
Passo 3. O grileiro escolhe um cartório municipal para declarar a propriedade de terra.
Normalmente, falsifica documentos declarando ter ocupado a área por um longo período ou conta com a cumplicidade de funcionários do cartório para dar tal declaração.
Passo 4. O grileiro submete o documento de terra fornecido pelo cartório a um dos institutos de terra oficiais e à Receita Federal. Os institutos geralmente concordam em registrar o título de terra não contestado e baseado em documentos de cartório.
Passo 5. O grileiro entra com pedido de autorização para explorar a área. Quando quer explorar madeira, precisa receber aprovação do Ibama para o Plano de Manejo Florestal (PMF) ou Autorização de Desmatamento, apresentando provas de propriedade da terra.
(
Jornal do Senado, 14 a 20/08/2006)