Desertificação ameaça 18% da população do País
2006-08-23
Mais cruel que os períodos longos de estiagem, o semi-árido nordestino está sofrendo um processo de desertificação que se intensificou nos últimos 50 anos. O solo vai perdendo a cobertura fértil e, aos poucos, torna-se estéril. Restam areia, rochas, algumas plantas esturricadas sem potencial econômico e enormes erosões. As áreas com algum tipo de comprometimento hoje no país somam 1,3 milhão de quilômetros quadrados. Isso representa 15,7% do território nacional, onde vivem cerca de 32 milhões de habitantes, mais de 18% da população.
Levantamento do Ministério do Meio Ambiente traz o primeiro diagnóstico feito sobre a desertificação no Brasil. Quatro regiões foram classificadas como núcleos desertificados: Gilbués (PI), Irauçuba (CE), Seridó (RN) e Cabrobó (PE). São áreas onde a situação é alarmante. Ali, a aridez avançou a passos largos e pequenos desertos já podem ser vistos. Reunidas num só espaço, tais regiões formariam uma mancha quase do tamanho do estado de Sergipe.
“É um cenário assustador, que mostra o quanto a degradação ambiental pode afetar a natureza”, lamenta José Roberto de Lima, coordenador do Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação do Ministério do Meio Ambiente. Ele destaca que, num período de 40 a 60 anos, sem um trabalho de paralisação do processo, podemos ter o clima árido, no lugar do semi-árido. Daí surgiriam grandes desertos. Não como o Saara, na África, ou o Atacama, na América do Sul, mas tão improdutivos e avessos à acomodação humana quanto esses.
O fenômeno tem duas causas. Primeiro a variação climática — longos períodos de seca associados a chuvas intensas e de curta duração. A outra face do problema está na ação do homem. Desmatamentos, queimadas, irrigação inadequada, mineração fora das normas, entre outras agressões, deixam o solo nu e completamente desprotegido. “Aí vem a chuva e leva a terra fértil. O sol, por sua vez, incide por um longo período num solo já enfraquecido e o enfraquece ainda mais. Por fim, as erosões vão crescendo”, explica Lima.
O processo é mundial. Hoje, cerca de 30% do globo terrestre sofre a desertificação. A Argentina, por exemplo, tem 60% do seu território comprometido. Outros países da América do Sul, como o Chile e a Bolívia, também apresentam índices preocupantes, em torno de 40%. Mas em nenhum deles há uma população tão densa dentro das áreas propensas ao problema quanto no Brasil.
Pior é que o processo de desertificação no território brasileiro aflige exatamente a população mais vulnerável. Dos 1.482 municípios com algum tipo de comprometimento decorrente da desertificação, 771 apresentam os menores índices de desenvolvimento humano (IDH). São pessoas pobres, de pouca ou nenhuma escolaridade, que convivem agora com o fantasma do deserto, em vez do medo da seca. Se a estiagem dava a chance de voltar à terra, quando chegasse o período das chuvas, o mesmo não acontece na desertificação. “As áreas ficam totalmente inóspitas e as pessoas se vêem obrigadas a abandonar suas casas”, conta Paulo Pedro de Carvalho, da organização não-governamental Caatinga.
A rota migratória, segundo Carvalho, continua sendo as regiões Sul ou Sudeste do país, mas também cidades nordestinas de médio porte. “Muita gente do Irauçuba (CE), que é um núcleo desertificado, prefere ir para Petrolina (PE) a tentar São Paulo (SP), devido à falta de emprego nos grandes centros”, explica. Gilbués (PI), outra área em processo grave de desertificação, apresenta o maior êxodo. Havia de 10 a 12 mil habitantes na década de 60, hoje não passa de 2 mil. Há áreas “fantasmas” lá. A degradação em Gilbués é conseqüência direta de 30 anos de exploração inadequada de diamante.
Outro núcleo desertificado, Seridó, no Rio Grande do Norte, tem conseguido reverter a situação desesperadora, causada pelo aumento da aridez, com o artesanato. “É uma atividade interessante para combater a desertificação porque não requer exploração dos recursos naturais”, explica José Procópio de Lucena. Ele faz parte do Serviço de Apoio aos Projetos Alternativos Comunitários, uma das cerca de mil entidades da sociedade civil que compõem a Articulação no Semi-Árido Brasileiro (ASA). Juntas, essas organizações buscam soluções para o problema da região.
E a articulação não pára por aí. Encabeçado pelo Ministério do Meio Ambiente, o Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca (Pan-Brasil), resultado do estudo feito em 2004, traça medidas estruturantes para os próximos anos, com o apoio de inúmeros parceiros — como os ministérios da Integração Nacional e da Educação. “O Pan-Brasil não é um programa meramente ambiental, ele combate o problema do ponto de vista social, econômico e até educacional”, explica Ruth Quadros. Cerca de R$ 1 milhão foi investido na elaboração do Pan-Brasil. O orçamento para ações particulares, sem contar projetos em conjunto com outras pastas do governo federal, foi de R$ 3 milhões, em 2005 e 2006.
Algumas ações do Pan-Brasil já vêm sendo implementadas, como programas educativos e de recuperação ambiental. “Ainda nos faltam muitos detalhes operacionais. Mas sem dúvida avançamos ao sistematizar as informações e elaborar um plano de ação”, pondera José Otamar de Carvalho, consultor que ajudou a elaborar o programa do Ministério do Meio Ambiente, com experiência de mais de 30 anos no estudo do semi-árido nordestino. Muitos organismos internacionais — inclusive as Nações Unidas, que instituiu o ano de 2006 como o ano de combate à desertificação no mundo — voltaram sua atenção para o problema no Brasil.
O Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA), ligado à Organização dos Estados Americanos (OEA), tem projetos de capacitação ambiental nos núcleos mais afetados. “A capacidade do meio ambiente de se recuperar nos preocupa muito. Em Gilbués (PI), por exemplo, sabemos que não há mais esse potencial. Ainda que a origem do problema, que era a mineração, tenha cessado, a natureza não voltará a ser como antes”, afirma Gertjan Beekman, coordenador do IICA na América Latina. Mesmo quando o meio ainda tem capacidade de se regenerar, o custo é alto. São necessários R$ 2 bilhões, anualmente, durante até 30 anos, para a recuperação.
O melhor a fazer, para o consultor José Otamar de Carvalho, é transformar os núcleos desertificados em unidades de conservação. “Não precisa tirar as pessoas da área”, explica. O mau manejo do solo, segundo Gertjan Beekman, é um dos agravantes do problema.
“Cabrobó (PE) está muito próximo ao Rio São Francisco, e sofre esse processo de desertificação. Vemos que água não é tudo”, lamenta Beekman. Sabe-se hoje que o problema atinge os nove estados do Nordeste, o norte de Minas Gerais e o noroeste do Espírito Santo. Mas pode estar além dessas fronteiras. “Todas as áreas com climas semi-árido e subúmido seco são vulneráveis”, explica o coordenador do IICA.
(Por Renata Mariz, Correio Braziliense, 22/08/2006)
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