Cerca de quatro milhões de pequenas propriedades rurais empregam 80% da mão-de-obra do campo e produzem 60% dos alimentos consumidos pela população brasileira. No país dos latifúndios, a bem-sucedida produção da agricultura familiar disputa com o agronegócio exportador a atenção do poder público e o reconhecimento de sua participação no desenvolvimento. A alta produtividade das pequenas propriedades contrasta com as extensas áreas ocupadas por lavouras de monoculturas e pastagens de pecuária extensiva.
O café é um dos principais produtos de exportação do país e também um dos exemplos da importância da produção familiar na agricultura brasileira, sendo que aproximadamente 80% da produção é cultivada em pequenas propriedades. No primeiro semestre deste ano, o café esteve entre os três produtos mais vendidos ao exterior, faturando US$ 1,6 bilhão.
“A criação das cooperativas é a oportunidade de tornar a economia da agricultura familiar ainda mais forte e mais competitiva no país”, avalia Humberto Oliveira, da secretaria de Desenvolvimento Territorial do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Em muitas regiões empobrecidas, é a produção familiar quem dinamiza a economia local e gera postos de trabalho.
No município de Barras, no Maranhão, cerca de 40 famílias estão se organizando para formar uma associação das quebradeiras de coco de babaçu e combater, dessa maneira, o aliciamento de mão-de-obra escrava. Vivendo em um dos estados com mais baixo índice de desenvolvimento humano (IDH), com poucas ofertas de emprego, trabalhadores rurais deixam suas casas em busca de trabalho nos estados vizinhos ou no Centro-Sul do país. Muitos são levados para trabalhar em fazendas isoladas, não terão seus direitos trabalhistas respeitados e acabarão enredados em um regime de escravidão por dívidas.
A associação das quebradeiras faz parte do projeto "Trilhas da Liberdade", que envolve entidades nos Estados do Maranhão, Pará, Tocantins e Piauí para prevenir a escravidão. A proposta é ampliar a gama de produtos que podem ser aproveitados do babaçu e elevar a renda das famílias, criando mais oportunidades de trabalho na própria cidade. “No próximo mês, já deverá começar a funcionar a associação para a extração do óleo de babaçu. E o nosso sonho é depois poder aproveitar todo o babaçu. Estamos terminando de construir o galpão, depois chegarão as máquinas. A idéia é aproveitar a associação para fazer horta comunitária também”, planeja Francisco das Chagas Souza, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município.
O cooperativismo entre pequenos produtores rurais tomou força na década de 80, em resposta ao longo ciclo de estagnação econômica nacional, e deu um salto nos últimos cinco anos. Segundo levantamento da Secretaria Nacional de Economia Solidária, do Ministério do Trabalho e Emprego, os quase 15 mil empreendimentos foram criados por dois motivos principais: alternativa ao desemprego e a possibilidade de complementar a renda da família. Quase metade das cooperativas e empreendimentos solidários no país está ligada à agropecuária, extrativismo e pesca.
"De uma maneira geral, o cooperativismo se desenvolve nas regiões onde o mercado de agricultura familiar é mais forte, na região Centro-Sul, por exemplo. Mas o índice de cooperativismo ainda é muito baixo: no país somente 13% das famílias participam, enquanto na Itália, que é uma referência nesse assunto, esse número chega a 82%”, ressalva o representante da Secretaria de Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário, Adoniran Peraci.
Impulso local
A chamada economia solidária mantém 1,25 milhão de associados e movimenta R$ 500 milhões por mês. O dinheiro circula nos próprios municípios onde estão as cooperativas, uma vez que os mercados locais são o destino principal dos produtos e serviços oferecidos por elas.
Feijão, milho, geléias e queijos são alguns dos itens produzidos por 280 famílias de 10 municípios de Santa Catarina e vendidos semanalmente nas feiras de Chapecó, no interior do Estado. Em 1995, esses produtores rurais decidiram organizar a Cooperativa Alternativa de Agricultura Familiar (Coperfamília) para ajudá-los a industrializar e a comercializar a produção. “Antes, as famílias que criavam porcos eram exploradas pela indústria, que fazia o seu preço. Agora elas mesmas montaram sua agroindústria para produzir lingüiça, salame. E essa é a principal fonte de renda”, explica Kleber Guriatti, integrante da Coperfamília.
Os agricultores também participam do Programa de Aquisição de Alimentos do governo federal, que lhes garante 400 mil reais por ano. A ação compra a produção e distribui os alimentos a entidades sociais. “Mais contratos do programa com produtores de outros cinco municípios estão em fase de aprovação. Também fazemos parte do projeto municipal de compra de alimentos orgânicos para a merenda escolar”, conta Kleber.
Os números são prósperos, mas as cooperativas ainda enfrentam muitas dificuldades para conseguir crédito, vender seus produtos ou receber assistência técnica. São recentes as políticas desenvolvidas pelos governos para incentivar o segmento. “Nossa luta é para que aumentem os recursos do programa federal para as cooperativas, que ainda são insuficientes. Queremos cerca de 40 milhões de reais para incentivar as cooperativas, mas hoje temos 3 milhões de reais”, afirma José Ferreira, presidente da recém-criada União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária (Unicafes). Segundo o representante do Ministério de Desenvolvimento Agrária, foram liberados nos últimos três anos 35 milhões de reais em créditos para as cooperativas. “Também canalizamos nossos recursos para a organização e capacitação desses empreendimentos”, aponta Peraci.
Estudo elaborado a pedido do governo federal concluiu que a produção dos assentamentos rurais beneficiou a vida local, elevando a condição dos trabalhadores rurais (ampliando acesso à educação e à habitação, por exemplo), além de ter diversificado a produção agropecuária e ampliado a oferta de alimentos. A pesquisa concluiu ainda que o cultivo de diversos produtos em áreas que antes se dedicavam apenas à monocultura ou à pecuária extensiva gerou efeitos positivos também sobre o meio ambiente.
O levantamento “Impactos regionais da reforma agrária” avaliou, entre 2000 e 2001, assentamentos nas regiões da Zona Canavieira Nordestina, Ceará, Sudeste do Pará, Sul da Bahia, Oeste de Santa Catarina e o entorno do Distrito Federal, e foi organizado por professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Questão nacional
Apesar do bom desempenho econômico, o estímulo aos pequenos e médios produtores rurais é encarado como uma vertente social da política agrária. A reforma agrária é um exemplo disso. “A política de desenvolvimento do país não deve ser resumida apenas à questão econômica, embora essa seja a tendência de muitos analistas. A reforma agrária não trata de um problema apenas do mundo rural. Além da violência no campo, da violência urbana, dos índices de desemprego, o meio ambiente é hoje um dos fatores que atualiza a reforma agrária e a recoloca como uma questão nacional”, sintetiza a socióloga e professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Leonilde de Medeiros.
Para o o pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da FGV-RJ, Marcelo Grynspan, a criação dos assentamentos rurais é uma alternativa à mão-de-obra expulsa do campo que não pode ser absorvida pela economia dos grandes centros urbanos. “Até as décadas de 60 e 70 a reforma agrária era vista como uma medida fundamental para o desenvolvimento do país. Mas hoje já se viu que o país se desenvolve sem essa reforma - o que não diminui a importância da luta. Mas a questão é que tipo de desenvolvimento se quer para o país. Por isso, acho que a defesa da reforma agrária hoje tem muito mais um sentido de justiça social”, analisa.
“Já se identificou no latifúndio a origem de boa parte das nossas mazelas sociais. Mas hoje há a visão de que a grande propriedade é baseada no agronegócio, que é o sustentáculo da nossa economia. Acho difícil que seja feita no Brasil uma reforma agrária que mexa de forma profunda na situação fundiária do Brasil”, complementa o professor, referindo-se à política econômica brasileira dependente das divisas arrecadadas com as exportações de produtos agrícolas, como algodão, soja, e celulose, em sua maioria vinculados ao agronegócio.
A face moderna da agricultura comercial omite, porém, o alto índice de improdutividade das terras – estocadas à espera da especulação imobiliária. Além do poder financeiro, a concentração de terras também garante poder político e impede a execução de uma reforma agrária que eliminasse a figura do latifúndio ou limitasse o tamanho das propriedades rurais no país.
Mais de 214 milhões de hectares de terras – quase metade da área agriculturável do Brasil - estão divididos entre apenas 112 mil propriedades, aponta levantamento realizado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). E ainda: mais da metade das grandes propriedades rurais são consideradas improdutivas. Ou seja, 58 mil (51%) latifúndios improdutivos abocanham aproximadamente 133 milhões de hectares. As regiões que concentram as maiores porcentagens de propriedades improdutivas são: Centro-Oeste (30% das grandes propriedades), Norte (21,6%) e Nordeste (20,9%).
Mais atenção
As políticas públicas destinadas a ampliar exclusivamente a produção familiar começaram a ser aplicadas mais fortemente somente na década de 90. O Programa Nacional para Agricultura Familiar (Pronaf) foi criado em 1996 e é a principal linha de financiamento para o setor, oferecendo créditos para custeio da produção e compra de máquinas, entre outros. Contudo, os recursos ainda não são proporcionais à importância econômica de pequenas e médias propriedades.
O plano de Safra 2006/2007 lançado no primeiro semestre deste ano, por exemplo, destinou R$ 50 bilhões aos grandes proprietários, enquanto os pequenos ficaram com R$ 10 bilhões. Ainda assim, esse é o maior volume de recursos já reservado ao segmento. Representante do Ministério de Desenvolvimento Agrário, Caio França, argumenta que já foram feitos 1,7 milhão de contratos de financiamento e que os créditos são oferecidos a juros muito baixos, o que, segundo ele, coloca o pequeno produtor em vantagem em relação aos recursos oferecidos aos ruralistas.
“Desde 96, as taxas de juros oferecidas aos pequenos produtores são baixas ou negativas, ou seja, estão abaixo da inflação. Essas taxas de juros não são oferecidas aos grandes produtores. A comparação simples entre os valores oculta uma diferença muito grande”, diz. Ele afirma ainda que nos últimos quatro anos os créditos alcançaram produtores das cinco regiões do país, uma vez que antes a região Sul recebia a maior parte desses recursos.
A grande maioria dos pequenos agricultores, porém, consegue produzir apenas para a própria subsistência. “Temos uma longa caminhada para universalizar o acesso ao crédito. A maior parte desses agricultores familiares não recebe recurso, assistência técnica. O Pronaf tem que crescer muito ainda na região Norte, Nordeste e nos setores mais pobres da agricultura familiar”, reconhece França. São casos em que o agricultor não tem informações suficientes sobre o programa ou não consegue apresentar todos os documentos exigidios pelo banco para começar a receber os recursos, por exemplo.
Em julho, foi sancionada a primeira lei que reconhece a agricultura familiar como setor produtivo. A medida é importante porque poderá regulamentar programas que já destinavam recursos aos pequenos produtores. Além disso, pescadores, extrativistas e aqüicultores passaram a ser reconhecidos como agricultores familiares.
A agricultura empresarial, braço mais forte no campo brasileiro, há décadas recebe financiamento público e incentivos fiscais para se expandir e avançar sobre as fronteiras agrícolas. Ganha ainda mais poder à medida que se coloca como motor do crescimento brasileiro. A agricultura familiar, por sua vez, se organiza e reivindica mais recursos públicos – incentivos que estejam à altura do seu papel no desenvolvimento do país. Mas as políticas para o segundo setor têm andado a passos mais lentos.
(Fabiana Vezzali,
Repórter Brasil, 18/08/2006)