O entendimento de que serviços básicos como educação, saúde, água e saneamento devem permanecer sob responsabilidade e gestão do Estado parece estar cada vez mais critalizado entre especialistas que estudam o fenômeno mundial da pobreza. Terry McKinley, Diretor do Centro Internacional da Pobreza do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (IPC/PNUD), vai além. Ele vê com bons olhos até a vinculação obrigatória de parte dos orçamentos nacionais a um setor fundamental para o combate à desigualdade, mas carente de recursos: abastecimento de água e saneamento básico.
McKinley dirige o órgão ligado à ONU que publicou um recente trabalho sobre o tema - “A privatização e a comercialização dos serviços públicos podem ajudar a cumprir os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODMs)? Uma avaliação”. Na opinião dele, "o setor privado está percebendo que não conseguirá obter maiores lucros com serviços como a água, pois o acesso à água vem sendo reivindicado por cada vez mais pessoas como um direito humano básico".
"As pessoas parecem entender que esse é um serviço público e deveria ser provido pelo Estado e financiado por impostos em geral, e não por taxas dos usuários", completa.
O diretor do Centro Internacional de Pobreza do PNUD concedeu entrevista exclusiva à Agência Carta Maior acerca das conclusões do estudo ao vir para o Brasil para participar do seminário “Pobreza e Desenvolvimento no Contexto da Globalização”, realizado no Rio.
Partindo do todo para comentar o quadro brasileiro, a avaliação do pesquisador é de que “nos países em geral e no Brasil em particular, o Estado deveria fornecer esses serviços e garantir as verbas necessárias para eles. Se você beneficiar cada indivíduo, estará beneficiando a sociedade como um todo”.
Carta Maior – Após a pesquisa do IPC/Pnud a respeito da privatização dos serviços públicos e sua relação com os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio, quais áreas o senhor acredita que devam estar sob responsabilidade do Estado?
Terry McKinley – Acredito que existam diversas áreas de serviços que devem ser mantidos pelo Estado, devido à natureza desses serviços e por eles serem essenciais ao bem-estar social das pessoas. Primeiramente, a educação. A saúde em seguida. Água e saneamento básico também. É melhor deixar esses serviços nas mãos do Estado, porque possuem características basicamente públicas. Se você beneficiar cada indivíduo, estará beneficiando a sociedade como um todo.
CM – No estudo, ficou demonstrado que as companhias privadas investiram o dinheiro delas essencialmente em telecomunicações, com cerca de 70% dos recursos, frente a somente 3% em abastecimento de água e saneamento. Por que isso acontece?
TM – Acredito que existam diversas razões para isso. Provavelmente o setor privado está percebendo que não conseguirá obter maiores lucros com serviços como a água pois o acesso à água vem sendo reivindicado por cada vez mais pessoas como um direito humano básico, as pessoas precisam de água para viver. Temos assistido a diversas manifestações e movimentos que reivindicam este direito à água, de modo que tem sido difícil para uma corporação transnacional que chega a um país, assume os serviços nessa área e depois aumenta as taxas dos usuários pelo acesso à água. Isso tem gerado muita oposição. As pessoas parecem entender que esse é um serviço público e deveria ser provido pelo Estado e financiado por impostos em geral, e não por taxas dos usuários.
CM – No Brasil, temos dotações específicas para a educação e saúde, por exemplo. O senhor acredita que adotar este expediente no caso da água seria uma boa idéia?
TM – Eu acredito que em geral seja bastante interessante adotar esse tipo de mecanismo para os serviços de abastecimento de água e saneamento. No plano internacional, em diversas situações, temos observado que muitos países em desenvolvimento dedicam grande atenção às áreas da educação e saúde, mas não destinam atenção suficiente à infra-estrutura necessária para o abastecimento de água ou para o saneamento por exemplo. Então, uma forma de destacar o problema e de mobilizar os devidos recursos para essas questões pode ser por meio da adoção de recursos específicos nos orçamentos dos países.
CM – Quais são os problemas centrais apontados no estudo sobre como os serviços essenciais estão sendo oferecidos aos cidadãos brasileiros?
TM – Acredito que em termos dos serviços públicos, no Brasil, o problema óbvio é que muitas pessoas enfrentam problemas relacionados às enormes desigualdades verificadas no país, que possuem raízes profundas na sociedade como um todo. E isso é um fato, essas pessoas não possuem acesso à renda, a empregos, aos serviços públicos. Nesse sentido, você precisa também de um rápido e intenso crescimento econômico e precisa gerar empregos, pois do contrário a prestação de serviços públicos e a provisão dos programas de transferência de renda não se sustentarão. Sem os empregos [e os conseqüentes impostos gerados por eles], você não terá recursos públicos suficientes para um Estado baseado no rendimento das pessoas sustentar esse tipo de serviços e programas de proteção social.
CM – Na sua avaliação, existem áreas no Brasil que se encontram sob responsabilidade de corporações e deveriam retornar para a alçada do Estado? Por exemplo os serviços de fornecimento de energia elétrica e água, ou as telecomunicações?
TM – No geral, muitas nações privatizaram as telecomunicações devido à natureza tecnológica avançada do setor, cujo desenvolvimento estava disponível no âmbito internacional, sem que fosse acessível em muitos países. Mas na maioria dos outros setores, especialmente nos países de economias médias, que possuem significativa capacidade estatal, não há razão para que o Estado não seja o responsável por oferecer os serviços básicos, como educação, saúde, água, saneamento e alguma forma fundamental de energia, como a elétrica.
Então, nos países em geral e no Brasil em particular, o Estado deveria fornecer esses serviços e garantir as verbas necessárias para ele. E fazer isso sem sobretaxar os usuários de modo a garantir lucros às companhias, que é o que acontece quando os serviços são privatizados. Quando isso é feito, as pessoas mais pobres da sociedade simplesmente não conseguem ter acesso a esses serviços pois são muito caros para elas.
CM – Em todo o cenário dos países estudados, quais apresentam os melhores resultados na combinação entre Estado e corporações para assegurar o oferecimento dos serviços essenciais para os cidadãos? Você teria bons exemplos para apontar?
TM – Nós estudamos vários casos na África, onde muitos países possuem renda própria muito baixa, e os orçamentos também são muito baixos. Eu apontaria como um exemplo o caso da Namíbia, que muitas pessoas não devem conhecer, e que possui um trabalho muito interessante de organização do fornecimento dos serviços públicos por meio dos orçamentos dos três níveis de governo, saindo do federal até chegar ao local e trabalhando sob uma ótica descentraliza de provisão desses serviços. Este é um belo exemplo na África de como o Estado pode prover os serviços básicos como água, saúde e educação. E um caso de verdadeiro sucesso desses serviços por meio do financiamento público.
CM – Após o seminário e após as informações acumuladas no estudo, poderíamos apontar uma relação direta entre os problemas verificados e a disciplina fiscal nos moldes em que se dá hoje?
TM – Junto à questão de se pregar a disciplina fiscal, o que os defensores dessa lógica fazem basicamente é tratar os cidadãos como consumidores dos serviços públicos. Eles buscam garantir que a conta de boa parte desses serviços públicos recaia diretamente sobre os cidadãos, por meio do pagamento de taxas. Mesmo que, em alguns casos, eles busquem ampliar o acesso para as pessoas pobres, isso simplesmente não funciona porque não é possível para elas pagarem essas taxas e ter acesso a tais serviços. Então o que realmente acontece é que a disciplina fiscal de que o Consenso de Washington falava significa que se você buscar transferir o fardo dessas taxas sobre os cidadãos mais pobres eles não terão condições de acessar esses serviços públicos.
(Por Antonio Biondi,
Carta Maior, 17/08/2006)