Pampa sofrerá ruptura cultural com introdução de monocultura de árvores, afirma professor da Ufrgs
2006-08-17
Para o geógrafo, professor do Departamento de Geografia da UFRGS,
Roberto Verdum, muito está se falando dos impactos ambientais causados
pelo plantio de pinus e eucaliptos em áreas como o pampa.São Leopoldo,
RS - Estamos falando muito da intervenção dessas monoculturas na água,
nos campos, mas estamos esquecendo de falar da ruptura cultural que
vai ocorrer fortemente nesta área. Este é um custo ambiental difícil
de mensurar", completa o pesquisador Verdum.
Nesta entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, o professor diz
que, com a introdução de árvores exóticas, surge uma nova era.
Entretanto, ainda não conhecemos e nem compreendemos suficientemente o
bioma pampa, portanto não temos como conhecer os impactos desse projeto
econômico que o Brasil segue. Verdum afirma: "A Stora Enzo está
comprando propriedade em um lugar rico em recursos hídricos, vamos dar
uma água de alta qualidade para produzir eucaliptos?".
O professor é mestre em Geografia e Gestão do Território pela
Université de Toulouse Le Mirail, também é doutor pela mesma
universidade, abordando o tema Arenização no Rio Grande do Sul,
municípios de São Francisco de Assis e Manuel Viana, 1997. É autor,
entre outros livros, de Rio Grande do Sul - paisagens e territórios em
transformação. Porto Alegre: UFRGS, 2004 e RIMA - Relatório de Impacto
Ambiental, legislação, elaboração e resultados. 4. ed. Porto Alegre:
UFRGS, 2002.
IHU On-Line – Quais são as delimitações geográfica dos pampas? E o que
vem mudando na geografia dos campos sulinos?
Roberto Verdum – Os pampas passam pelo Rio Grande do Sul, parte da
Argentina e do Uruguai. Podemos pensar que já ocorreram mudanças desde
a época da colonização portuguesa e aí uma ligação muito próxima com as missões jesuíticas quando essa área era central para a atividade de pecuária. A partir do século XVII, com a própria desestruturação dessas missões, uma parte deste gado que circulava pelo Estado foi sendo apropriado, e claro, com a intenção da própria coroa portuguesa de tentar demarcar suas fronteiras com a colônia espanhola, começaram, então, a ser distribuídas as sesmarias. A atividade de pecuária foi introduzida com a migração e com a própria desestruturação das comunidades indígenas. No momento em que há definição dessas fronteiras entre a coroa espanhola e a portuguesa é que começa a estabelecer-se esta estrutura fundiária que nós herdamos até hoje, médias e grandes propriedades com mais de 500 hectares. Esta estrutura é tão forte que ela representa um espaço geográfico aqui no Estado reconhecido como Metade Sul que se diferencia pela estrutura fundiária. Essa região era, efetivamente, de atividade de pecuária, com a introdução da soja a partir dos anos 1960 no norte do Estado e a sua expansão para o
Sul, o pampa gaúcho começou a ter atividades ligadas à agricultura,
essencialmente, monoculturas de trigo e soja. Se pegarmos dados
relativos ao senso agrícola, percebemos que a partir dos anos 1960 tem
uma entrada muito grande desse tipo de produção, que é a expansão
dessas monoculturas com uma demanda favorável no mercado mundial.
Notamos que há uma ruptura da matriz produtiva, ou seja, não é o
pecuarista que vai produzir soja e trigo, ele arrenda suas terras para
os produtores que virão com seus maquinários introduzir essas
monoculturas.
IHU On-Line - O que mudou com a introdução de cultivos de plantios de
árvores exóticas (principalmente pinus e eucaliptos), com fins de
produção de celulose e madeira no Estado?
Roberto Verdum – Com a introdução de árvores exóticas, surge uma nova
era que estamos visualizando agora, mas é um projeto que já vem sendo
pensado desde o final dos anos 1980. Inclusive, existem trabalhos que
já projetavam que essa seria a grande matriz produtiva do Estado. O
que estamos vendo hoje é algo que já existia, há tempos, uma referência
aos interesses empresariais e científicos. O que temos que sinalizar
dentro do debate é que infelizmente conhecemos muito pouco do que
representa o pampa, visto que tradicionalmente sempre ficou associado
à atividade pecuária, que de certa forma sempre se colocou como uma
atividade que não alteraria o ecossistema do bioma. Na verdade,
sabemos que as práticas ligadas a esta atividade, principalmente a
queimada como uma forma de renovação do pasto altera a biodiversidade,
os nutrientes do próprio solo, ou seja, já com a pecuária pode-se
dizer que já existem alterações no ecossistema do pampa. Com a
introdução das monoculturas, o processo em algumas áreas, como já está
sendo identificado, de erosão hídrica e os areais se expandiram, muito
em função da própria mecanização em solos muito frágeis e que
desecandearam e aumentaram processos, que são naturais e que se
aceleraram devido à forma agressiva de como essas monoculturas foram
desenvolvidas.
Pinus e eucaliptos<>br>
Não temos um conhecimento muito claro do potencial do pampa, pois o
nosso olhar de preservação ambiental é muito voltado para os
ecossistemas florestais e pouco para os ecossistemas campestres. Não
faz muito tempo, uma aluna terminou uma dissertação do Mestrado, aqui
na Geografia da UFRGS, e, num espaço de quase seis hectares onde
trabalhamos no município de São Francisco de Assis, ela ultrapassou um
número de 140 espécies reconhecidas e ainda não catalogadas como
espécies de gramíneas, inclusive encontramos uma espécie considerada
há mais de 100 anos extinta nos campos do Rio Grande do Sul. Este
trabalho está sendo uma referência porque identifica toda uma
associação de gramíneas e a sua importância da biodiversidade. Porque
não temos muito conhecimento, é questionável a entrada de uma planta
exótica, que não sabemos muito bem como esta se comporta em grande
extensão, claro que eucaliptos na região do pampa já existem desde o
início do século XX até como suporte para a atividade de pecuária na
forma de capões, mas agora é outra forma de exploração dos eucaliptos
que é em grandes áreas.
Água de alta qualidade
Quanto a possíveis impactos, não sabemos o que representa a introdução
de uma planta exótica nas gramíneas, o que observamos também é um
trabalho de balanço hídrico, pois sabemos que existe um grande
potencial de água nesta região, inclusive onde a Stora Enzo está
comprando propriedade. A água, colocada como um elemento extremamente
importante para vida e para as próprias atividades agropecuárias, é de
alta qualidade, temos análises químicas e físicas que comprovam isso,
e vai servir para o crescimento dos eucaliptos, e essa é uma reflexão
que temos que fazer: vamos dar uma água de alta qualidade para produzir
eucaliptos? E depois, fazendo outra análise: existem períodos de
escassez hídrica, embora não tenhamos uma estação seca definida, mas
temos vários períodos de seca e que certamente afetam o próprio plantio
de eucaliptos em determinada fase, a não ser que se utilize a
irrigação, o que já ocorreu com a Votorantim em 2004 e 2005, quando
tivemos dois verões extremamente secos. Como são árvores de alto
crescimento, a demanda de água vai ser importante e maior. Com certeza,
a introdução dessas monoculturas afetará o manancial hídrico.
Conhecimento das empresas
Não saberia dizer a que tipo de material os técnicos da Stora Enzo
tiveram acesso. Mas se sabe que esta área da qual a Stora Enzo está se
apropriando, fica no chamado Aqüífero Guarani e, com certeza, essa
informação eles têm. É uma área enorme e de grande potencial. Os
técnicos da empresa sabiam que é uma área extremamente rica de água.
IHU On-Line - A Souza Cruz recebeu dia 19 de julho da RainForest
Alliance um certificado por manejar as suas áreas florestais de
acordo com rigorosos padrões sociais, ambientais e econômicos
definidos pelo Forest Stewardship Council (FSC) - entidade de
referência internacional na certificação do bom manejo florestal - e
também pelo seu trabalho de preservação ambiental e produção de
eucaliptos em suas duas fazendas no sul do País. O senhor concorda com
esse prêmio? É possível empresas como a Souza Cruz, a Aracruz e a
Votorantim, por exemplo, terem uma responsabilidade sustentável? Esse
tipo de certificação não é uma incoerência?
Roberto Verdum – Estou recebendo essa informação agora por você e eu
não teria informações para concordar ou discordar do prêmio recebido
pela Souza Cruz. Sem querer questionar quem está dando este prêmio,
ou certificação, podemos refletir em que contexto esta certificação
está sendo dada, ou seja, posso dar uma certificação por um viés
produtivo, considerando determinadas ações que a empresa faz para
tentar amenizar os impactos ambientais. E falo em impactos ambientais
em um sentido amplo, não só pelas mudanças no ecossistema, mas também
mudanças sociais e culturais. Como não tenho conhecimento da
certificação, gostaria de saber quais são os padrões que estão sendo
buscados para a empresa receber esta certificação, e quem está dando
esta certificação? Claro que podemos ter instituições de reconhecimento
internacional com um viés definido e que, baseadas neste viés, elas
concedem certificados.
Desenvolvimento sustentável
O que representa desenvolvimento sustentável? Se pensássemos em tornar
Porto Alegre um município sustentável, para que isso ocorresse
teríamos que fazer uma série de ações, que nos remeteriam à própria
capacidade de gestão, por exemplo, não temos petróleo para
auto-sustentar a frota porto-alegrense, então temos que repensar o
transporte coletivo. Coloco isso como um exemplo simples para
pensarmos as ações de determinadas empresas que se projetam como sendo
sustentáveis. Isso cai numa generalidade que é discutível. Se pensarmos
na alta sustentabilidade dos pampas, a introdução de eucaliptos já é
uma incoerência da sustentabilidade das empresas. O que precisamos em
primeiro lugar é conhecer e compreender essa riqueza campestre, pois
somos cegos em relação a esse ecossistema, e introduzirmos práticas
que aparentemente conhecemos. Impactos acerca da introdução dessas
monoculturas já existem em vários trabalhos, inclusive com
manifestações de comunidades na Austrália e na Europa, por exemplo.
Pensamos muito sobre o ponto de vista da ruptura de um ecossistema,
mas o que não projetamos são todos os outros complicadores vindos com
essa ruptura. Ou seja, mal conhecemos os pampas e já estão sendo
implantados outros processos que não têm um estudo do ecossistema do
pampa.
Metade sul. Uma aberração geográfica
IHU On-Line – Como o senhor vê a atuação do governo nestas questões
ambientais? Qual seria o maior desafio?
Roberto Verdum – Até que ponto o governo, que é algo geral, assim como
falamos no Estado, deve ser visto como uma coisa única? Conversando
com colegas que trabalham no governo, eles também estão questionando
esse tipo de modelo que está se projetando no Rio Grande do Sul.
Acredito que estamos sendo convencidos da importância, pois primeiro
não falamos nada dessa aberração geográfica de criar uma metade sul e
uma metade norte, do ponto de vista geográfico é uma aberração essa
dicotomia. Depois se criou a idéia de que a metade sul é pobre, então
há uma série de mecanismos políticos e administrativos que acabam
conduzindo-nos a achar que realmente a metade sul é muito pobre e
temos que introduzir empresas que levem riqueza para essa metade pobre.
O governo, por meio de programas de incentivo, faz uma opção e nós,
de certa forma, aceitamos esse tipo de projeto. Dentro do próprio
governo, há pessoas contra e outras favoráveis, muitas vezes por causa
do viés econômico e com isso pode trazer possíveis soluções para
problemas sociais. O que eu penso é que nós temos pouco conhecimento
dessa biodiversidade que poderia ser mais bem aproveitada a médio e a
longo prazo.
IHU On-Line – Qual deveria ser a posição dos geógrafos diante das
dinâmicas socioambientais no Brasil?
Roberto Verdum – Esta é uma outra lacuna que vem sendo preenchida
lentamente. Uma lacuna de pensar o Brasil como um território cheio de
diversidade. São poucos os trabalhos não só na área de geografia, mas
em outras áreas do conhecimento, que consideram esta unidade
territorial para fazer análises tanto da natureza como das dinâmicas
sociais. Estamos trabalhando nesta escala. Para teres uma idéia, o
último livro de geografia do Rio Grande do Sul foi produzido há 35
anos. Em 2004, fizemos o lançamento de um livro que procurava dar uma
outra dinâmica socioambiental do Estado, localizando os principais
pólos econômicos e os possíveis impactos ambientais associados a ele.
Iniciei um trabalho no ano passado, colocando como está o Brasil hoje
em dinâmicas socioeconômicas e ambientais. Percebemos que, no Brasil,
até os anos 1970, os impactos estavam situados na matriz do mundo
rural, e a partir dos anos 1970, criamos e recriamos novos impactos
ambientais relacionados à urbanidade. Todos os ecossistemas
diferenciados, como a mata atlântica, pantanal, pampas, sertão, enfim,
todos eles foram alterados ao longo da nossa história de ocupação de
território. Sabemos muito pouco sobre esses ecossistemas e suas
dinâmicas, tanto é que fazemos intervenções e só vamos ver os
problemas depois. E temos também muita pressa de acompanhar modelos
econômicos que podem ser bons e também muito ruins nas dinâmicas
desses ecossistemas. As reproduções de modelos que são aplicados em
outros países não são favoráveis no chamado mundo tropical, enfim. O
grande problema ainda é o desconhecimento. Tem muito trabalho ainda, a
demanda nas universidades está aumentando assim como a interface com
outras instituições.
IHU On-Line – Para o senhor, o que significa viver no pampa?
Roberto Verdum – Eu descobri o pampa com uma colega natural de Quaraí
e muito do que aprendi foi no diálogo que tive na minha formação com
ela. Foi a partir do final dos anos 1980 que comecei a estudar e viver
a realidade do pampa. E cada vez que vou, aprendo mais. Tenho muito a
aprender com o pampa, não só do ponto de vista científico, mas também
cultural. Falamos muito da intervenção dessas monoculturas (pinus e
eucaliptos) na água, nos campos, mas esquecemos de falar da ruptura
cultural que vai ocorrer fortemente nesta área. Este é um custo
ambiental difícil de mensurar. Para mim, viver no pampa é pensar esta
integração de construção da presença humana com um ecossistema muito
interessante. No futuro, seremos cobrados mais uma vez, por
determinadas opções que tomamos por causa da cegueira que possuímos em
relação a este ecossistema.
(Revista On Line, 16/08/2006)
http://www.unisinos.br/ihu/boletim/edicoes/boletim00190.doc