Ser "celeiro do Brasil" custa caro ao Cerrado
2006-08-16
Enquanto o país bate recordes de produção e exportação de grãos, cursos d´água são contaminados, animais entram em listas de extinção e uma área do tamanho do Estado de Alagoas é desmatada, anualmente, no Cerrado.
Considerado, até a década de 1980, um local de solos pobres e vegetação minguada, o Cerrado vem ganhando importância para dois grupos de interesses distintos. De um lado, os biólogos, pesquisadores e ecologistas, que anunciam descobertas atrás de descobertas sobre a biodiversidade e importância desse bioma dentro dos ecossistemas brasileiros. Do outro, figuram os expoentes do agronegócio, representados principalmente pelos sojicultores que, depois de descobrirem a potencialidade da exploração agrícola da região, vêem o Cerrado como terra vazia a ser conquistada. O que está longe da realidade.
Na queda de braço entre os dois grupos, o poder econômico tem levado vantagem. Segundo o relatório "Estimativas de perda da área do Cerrado brasileiro", lançado pela ONG Conservação Internacional em julho de 2004, o total de soja plantada no Cerrado subiu de 45 mil quilômetros quadrados, em 1995, para 100 mil km² em 2002. A área corresponde ao território do estado de Pernambuco, e significa 5% da área total do Cerrado, que abrange 2 milhões de km².
A expansão da agricultura foi possibilitada pelo uso de fertilizantes e de técnicas de correção de solo, enquanto a vegetação pouco densa e o relevo plano permitiram a rápida ocupação. Diferentemente da Amazônia, onde, após derrubada a floresta, há um período de utilização da terra pela pecuária, o Cerrado pode ser utilizado pela agricultura em menos de um ano após o desmate. "No Cerrado, a ocupação é muito mais rápida, pois a vegetação não oferece empecilhos. O cara coloca um trator e já sai derrubando", conta o zoólogo e pesquisador da Universidade de Brasília, Guarino Colli.
Uma estimativa realizada em 1998 pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) apontou que restam apenas 34,22% das áreas nativas remanescentes do Cerrado. Considerando os números atuais de desmatamento - cerca de 26 mil km² ao ano - e as áreas protegidas (2,2% em unidades de conservação e 2,3% em terras indígenas), a Conservação Internacional estima que o bioma deixe de existir até o ano de 2030.
Apesar da previsão assustadora, há perspectivas ainda piores para o ritmo de destruição. Hoje, o cultivo da soja padece do alto custo do transporte, com rodovias precárias para o escoamento da produção. A pavimentação da rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém), contudo, pode baratear o transporte e tornar mais lucrativo o cultivo do grão, estimulando a abertura de novas áreas de plantio no Cerrado.
Para Sergio Schlesinger, do Fórum Brasileiro de Organizações Não-governamentais (Fbons), o cultivo de monoculturas, como a soja e a cana, é incompatível com a conservação do bioma. "Pela sua natureza, [essas monoculturas] são altalmente destruidoras. Uma colheitadeira de soja, por exemplo, só trabalha em grandes áreas devastadas." Sérgio destaca, ainda, que o pequeno produtor sofre mais com a destruição do meio ambiente e por isso tende a cuidar melhor dele. "As famílias que viviam da agricultura familiar, da silvicultura, estão sendo expulsas. A poluição do solo e das águas obriga as pessoas vizinhas às grande plantações a se mudarem. O grande proprietário não mora no local. Mora na cidade. É um empresário."
De acordo com a bióloga Rosane Bastos, integrante da Rede Cerrado - um grupo de organizações que se juntou para criar projetos de preservação do bioma, há dois pesos e duas medidas no momento de aplicar a legislação ambiental. Enquanto os grandes produtores realizam grandes desmatamentos sem serem incomodados, os pequenos são cobrados por qualquer mudança mínima no ambiente. "Hoje, a lei é muito cobrada do pequeno, que não pode derrubar uma árvore."
As investigações da Polícia Federal corroboram com a afirmação da bióloga. Em junho de 2005, um conjunto de ações batizado de Operação Curupira prendeu o então secretário estadual do Meio Ambiente do Mato Grosso, Moacir Pires, acusado de envolvimento num esquema de extração ilegal de madeira. A descoberta do esquema levou à extinção da Fundação Estadual do Meio Ambiente (Fema), órgão que fiscalizava a derrubada de matas no estado.
Sinais de exaustão
Não são poucos os indícios de que já se passou da hora de ter uma discussão séria sobre uma exploração racional do Cerrado. Além dos dados da alta destruição da vegetação nativa, a perda do solo e a invasão de vegetais estranhos ao bioma dão sinais de que não é apenas o desmatamento que pode causar perdas irreversíveis à região, inclusive com prejuízos para os fazendeiros que fazem uso dela.
A rápida degradação do solo é um exemplo disso. De acordo relatório da Conservação Internacional, o plantio tradicional da soja, como é feito no Cerrado, causa a perda de cerca de 25 toneladas de solo por hectare ao ano. Caso fossem aplicadas técnicas de conservação, como a aragem mínima, o número poderia ser reduzido a 3 toneladas por ano. Para Rosane Bastos, a improdutividade pode impulsionar a destruição de outros ecossistemas: "se os grandes produtores ficarem sem solo, vão subir para a Amazônia", prevê.
Problema semelhante acontece com a pecuária. Metade dos pastos plantados - cerca de 250.000 km² - estão degradados, com pouca cobertura vegetal, plantas não comestíveis e cupinzeiros. Com alimentação escassa, cai o número máximo de animais por hectare, aumentando a área total voltada à pecuária.
Para aumentar o pasto, plantaram-se capins estrangeiros, que ressecam e transformam-se em um combustível altamente inflamável. Apesar do ecossistema do Cerrado ser adaptado a queimadas anuais, a combustão desse capim causa um fogo de temperatura mais alta que as usuais, matando as plantas nativas.
Patinho feio
Apesar de ocupar 21% do território brasileiro, o Cerrado acabou ficando de lado na discussão da necessidade de preservação ambiental. Estudiosos do bioma afirmam que o desprezo pode ter acontecido por causa da cobertura vegetal mais rarefeita e a concorrência com outros biomas exuberantes, como a Amazônia e a Mata Atlântica. "Isso começa desde a comunidade internacional. Um estrangeiro, em geral, não sabe nem que o Cerrado existe", aponta Guarino Colli.
Um dos grandes sintomas do abandono do ecossistema é o número de Unidades de Conservação. Atualmente, apenas 2,2% do bioma está protegido pelo governo. Somando-se às áreas particulares, como as Reservas Particulares do Patrimônio Natural, o número alcança 4,4%.
De acordo com Fabiana Aquino, pesquisadora da Embrapa Cerrados, com poucas áreas de proteção, muitas espécies de animais e vegetais que ocorrem somente em alguns lugares do Cerrado correm o risco de desaparecer rapidamente. "Estima-se que 20% das espécies ameaçadas ou endêmicas não ocorram nas áreas legalmente protegidas. Ou seja, é necessário que outras áreas fora das Unidades de Conservação sejam preservadas para que, a fauna e flora do Cerrado persistam em longo prazo", alerta.
O baixo número de UCs também impede a ocorrência de Corredores de Biodiversidade - redes de parques, reservas e áreas privadas próximas uma das outras que impedem o isolamento das florestas, garantindo a sobrevivência do maior número de espécies e o equilíbrio dos ecossistemas. Grandes predadores, como a onça, dependem de áreas como essas para viver.
Não bastasse a pequena área destinada à proteção ambiental no Cerrado, o governador do Tocantins, Marcelo Miranda (PSDB), aprovou em abril de 2005 uma lei que reduz em 81% o território da Área de Proteção Ambiental da Ilha do Bananal/Cantão. A reserva tinha 1,7 milhões de hectares, que seriam diminuídos para cerca de 185 mil.
Na época, Miranda alegou que a redução atendia a pedidos de comunidades da região, que ficaram com seu sustento comprometido. O Ministério Público Federal (MPF) do Tocantins, contudo, entendeu que o intuito da lei era favorecer o agronegócio, e seria prejudicial ao meio ambiente. Com uma ação impetrada na Justiça Federal, o MPF conseguiu impedir que a legislação entrasse em vigor.
Outros planos
Na última quarta-feira, uma comissão especial da Câmara dos Deputados aprovou um projeto de projeto de emenda constitucional (PEC) que dá ao Cerrado e a Caatinga o status de patrimônio nacional. A medida agora precisa passar pelo plenário da casa e pelo Senado e, se aprovada, permitirá que se criem regras de proteção para esses ecossistemas em locais que estão fora de unidades de conservação. Regras semelhantes existem para Amazônia, onde só é permitido desmatar 20% das propriedades. No Cerrado, a conta é inversa: 80% da cobertura vegetal pode ser retirada. A PEC estava emperrada há 11 anos, quando foi proposta pelos deputados Gervásio Oliveira (PMDB-AP) e Pedro Wilson (PT-GO).
Para a Rosane Bastos, o projeto de desenvolvimento que conta com o Cerrado apenas como terra a ser explorada é o que determina a sua destruição. "A visão do Cerrado como um celeiro do Brasil tem determinado essa falta de políticas e essa ação predatória da soja, cana, milho, algodão e pecuária". Guarino Colli concorda com a colega, e destaca os olhos mais voltados à balança comercial do que ao meio ambiente: "O Brasil depende muito da exportação de grãos. Por isso, o governo não está nem aí para o que acontece com o Cerrado".
Valorização tardia
O ritmo acelerado de destruição do ecossistema fez com que estudiosos e organizações voltassem os olhos para o segundo maior bioma brasileiro. Hoje, o Cerrado ocupa o posto de savana que tem mais biodiversidade no mundo, à frente até mesmo das suas equivalentes africanas.
De acordo com uma classificação elaborada pela Conservação Internacional, o Cerrado é um dos 34 hotspots mundiais, como são identificadas as regiões naturais mais biodiversas e ameaçadas do planeta, ou seja, local rico em espécies endêmicas (que só ocorrem na região) e elevado grau de ameaça. O Fundo Mundial para a Vida Silvestre (WWF) o classifica como uma das ecorregiões mais importantes do planeta.
Enquanto se descobre a biodiversidade, números da Fundação Biodiversitas mostram que até 2003 havia pelo menos 65 espécies animais que dependiam do bioma e estavam em risco de extinção. Entre elas figuram o Lobo Guará, a Jaguatirica, a Ariranha, o Tatu Canastra e o Tamanduá Bandeira. A principal causa da morte desses animais é a perda do seu habitat natural. Apesar do número alto, Colli afirma que ele é subdimensionado. "O Cerrado está mal representado nas listas de espécies de extinção Ainda temos um conhecimento restrito sobre a distribuição das espécies no Cerrado", explica.
Os recursos hídricos do Cerrado são outra questão preocupante para os pesquisadores. Hoje, a região já padece da contaminação dos rios, causada principalmente pelo alto uso de agrotóxicos e insumos agrícolas para a correção dos solos pobres e ácidos. Como o Cerrado é um grande centro dispersor de água para as três principais bacias brasileiras (Tocantins-Amazônica, Paranaíba-Paraná e São Francisco), os problemas ambientais que o afetam podem desencadear efeitos negativos por quase todo o país.
(Por Iberê Thenório, 24 Horas News-MT, 15/08/2006)
http://www.24horasnews.com.br/index.php?mat=187416