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2006-08-15
Em seu acanhado consultório no Hospital “Menino Jesus”, no município de Itaituba, no oeste paraense, a mais de mil quilômetros de Belém, a médica pediatra Amélia Ayako Kamogui de Araújo, 50 anos, mantém uma rotina espartana. Ex-secretária municipal de Saúde, essa paranaense formada na década de 80 pela Universidade de Londrina, com curso de especialização em doenças tropicais concluído no Núcleo de Medicina Tropical da Universidade Federal do Pará, coleta sangue do cordão umbilical das crianças recém-nascidas naquela maternidade há mais de três anos.

Os dados colhidos até agora se revelam dramáticos: em mais de 1,5 mil mulheres e igual número de recém-nascidos, os teores de mercúrio encontrados no sangue de mais de 95% dos investigados são maiores do que os máximos tolerados pela Organização Mundial de Saúde (OMS). O receio dos pesquisadores é que entre as populações garimpeiras e ribeirinhas do rio Tapajós, principalmente nos municípios de Itaituba e Jacareacanga, surjam casos do “Mal de Minamata”, uma doença provocada pela ingestão de metilmercúrio que atingiu centenas de pessoas na baía de Minamata, no Japão, na década de 50, onde crianças nasceram com má formação congênita e registraram-se mais de mil óbitos.

Amélia trabalha como voluntária num ambicioso megaprojeto desenvolvido pelo Instituto Evandro Chagas (IEC), centro de excelência em doenças tropicais da Amazônia, com sede em Belém. A dissertação do curso de mestrado de Amélia Ayako, em andamento, versa sobre o tema “Prevalência de má-formação congênita em recém-nascidos em Itaituba”. “Entre os 3,5 mil meninos e meninas nascidos em 2004, após a análise de ficha por ficha, constatamos crianças com níveis elevados de mercúrio no organismo”, afirma Amélia. “Não encontramos, porém, nenhum paciente com quadro clínico de contaminação pela doença de Minamata”, disse.

Foi detectado, no entanto, na investigação feita por Amélia Ayako entre todos os pacientes pesquisados, uma porcentagem maior de anomalias em mulheres grávidas que vieram de áreas de garimpo. Além do sangue do cordão umbilical, vem sendo feita também coleta da placenta e do cabelo de mulheres, crianças, ribeirinhos e garimpeiros em várias localidades às margens do rio Tapajós e afluentes para se determinar o nível de contaminação por mercúrio nas populações afetadas.

A maranhense Raimunda do Socorro Silva Pinheiro tem 26 anos e acompanhou o marido na grande aventura de sua vida. Deixou Codó, no interior maranhense, em busca da fortuna nos garimpos do Tapajós, em Itaituba, onde há mais de 50 anos funciona a maior e mais produtiva reserva garimpeira do Brasil. Pouco mais de três anos depois de se embrenhar pela rodovia Transgarimpeira, que corta a reserva, em busca do lendário Eldorado, Raimunda já esqueceu os sonhos de riqueza.

A realidade, dura, se impôs. Carregando no colo o filho E.M.P.C, de três anos, a garimpeira maranhense ficou sabendo que seu menino é uma entre as mais de mil crianças investigadas pelo Instituto Evandro Chagas que apresentaram, ao nascer, elevados teores de mercúrio no sangue, conforme comprovado em coleta do sangue retirado do cordão umbilical durante o parto. “Felizmente a doutora disse que meu filho não tem sintomas da doença do mercúrio”, festejou.

Investigação
Desde o ano 2000, pesquisadores do Instituto Evandro Chagas, liderados pela biomédica Elizabeth Santos, atualmente na direção geral do centro de pesquisa, investigam a contaminação por mercúrio em seres humanos na região de influência do rio Tapajós. O local foi escolhido a dedo: desde o final da década de 50, do século passado, funciona na região a reserva garimpeira do Tapajós, a maior do Brasil. Cálculos do Departamento Nacional da Produção Mineral (DNPM) apontam para a utilização de mais de 800 toneladas de mercúrio nos garimpos do Tapajós.

As pesquisas que vêm sendo realizadas no Tapajós procuram avaliar a influência da poluição ambiental gerada pelo uso do mercúrio na atividade garimpeira sobre a saúde das populações humanas expostas, usando como indicador epidemiológico a presença de mercúrio em recém-nascidos de mães residentes na área de risco, excluindo, em caso de doença, a possibilidade da presença de outros agentes teratogênicos como os da rubéola, citomegalovírus, sífilis e toxoplasmose por ocasião do nascimento.

“Os níveis de mercúrio encontrados em mães e recém-nascidos caracterizam um quadro de exposição que vem sendo observado em populações da região, com teores médios acima dos limites da normalidade e em alguns casos acima do limite de tolerância biológica, segundo os parâmetros internacionais”, afirma Elizabeth.

Estudo científico quer saber o que evita o aparecimento de doenças
Secretário Especial do Meio Ambiente no governo Fernando Collor, o ambientalista gaúcho José Lutzenberguer, já falecido, alertou durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92) que o uso de mercúrio nos rios da Amazônia era uma bomba de efeito retardado que, mais cedo ou mais tarde, explodiria.

Essa boma de efeito retardado anunciada por Lutzenberguer é o principal alvo das pesquisas que vêm sendo realizadas com mercúrio na Amazônia, principalmente no rio Tapajós.

“A gente busca uma explicação para saber por que teores alterados de mercúrio no organismo não estão causando doenças”, afirma Elizabeth Santos, diretora do Instituto Evandro Chagas e responsável pelas mais aprofundadas pesquisas sobre contaminação por mercúrio em humanos na Amazônia neste século. Elizabeth revela que os pesquisadores do instituto adotaram duas linhas de investigação no caso do mercúrio: uma, através de pesquisa sobre a contaminação por mercúrio através da alimentação e, dois, por genética individual.

“Precisamos saber se a alimentação na região amazônica influencia para que o mercúrio não efetive sua atividade tóxica”, ressalta a diretora do “Evandro Chagas”, em Belém.

Teores
Conhecer os teores de mercúrio e metilmercúrio em recém-nascidos de mães residentes nas áreas de risco de contaminação por mercúrio no Vale do Tapajós e cuja forma de contaminação materna se processa através da ingestão de peixes - que é uma via de alcance amplo, envolvendo as populações ribeirinhas, inclusive as indígenas - é informação considerada fundamental e que até hoje continua faltando entre os inúmeros estudos desenvolvidos na região de influência do rio Tapajós e da reserva garimpeira.

“A vida pré-natal é considerada muito sensível à ação de substâncias tóxicas e as diversas ou continuadas exposições que a mãe venha a sofrer no decorrer da gestação resultam no acúmulo do produto dessas substâncias no feto e podem produzir danos da mais variada gravidade, se caracterizando como doença congênita”, ressalta Elizabeth.

Ela destaca que “todas as crianças pesquisadas nas maternidades de Itaituba apresentavam teores de mercúrio significativos”. Até 8 ppm (parte por milhão) os teores são considerados normais. De 8,1 ppm a 30 ppm são considerados toleráveis. “Trinta 30 ppm é o limite de tolerância biológica admitido pela Organização Mundial de Saúde (OMS)”, ensina Elizabeth, destacando que foram encontrados teores superiores a 30 ppm em dezenas de adultos e crianças pesquisados que, no entanto, continuavam sem sintomas da doença.
(Por Ronaldo Brasiliense, O Liberal-PA, 13/08/2006)
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