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cerrado passivos do agronegócio
2006-08-15

Com extensão de dois milhões de km² e ocupando um quarto do território nacional, o Cerrado é o segundo maior bioma brasileiro. Sua área total alcança 11 estados do país (Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Piauí, Ceará, Tocantins, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Distrito Federal) e ainda tem presença em outros cinco (Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, Amapá). Mas ele é, acima de tudo, um bioma em grande perigo. Segundo o professor do Departamento de Zoologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Brasília (UnB) Jader Marinho Filho, se não forem tomadas providências imediatas, o Cerrado pode desaparecer por completo em apenas 30 anos.

Isso acontece porque, nos últimos 50 anos, 80% da cobertura original do Cerrado foram desmatadas. Os 20% restantes estão sob ameaça diante da expansão do agronegócio ligado à soja. “Nosso presidente está feliz, acreditando que o Brasil será o grande exportador de biodiesel para o mundo. Vamos detonar o resto do Cerrado para plantar soja e mamona”, lamenta o pesquisador. Ele alerta que, no entanto, o bioma deveria ser protegido e aberto para a pesquisa científica. “O Cerrado tem mais de 11 mil espécies de plantas e é um dos conjuntos de flora do mundo para o qual mais se conhecem aplicações médicas. Temos de vender serviços e não commodities”, afirma ele.

Unidades de Conservação
A atuação da UnB na pesquisa sobre o Cerrado remonta à década de 1960, quando a então pesquisadora, e hoje Professora Emérita da UnB, Maria Lea Salgado-Labouriau publicou o primeiro catálogo de pólens das espécies do bioma (veja lateral). A contribuição da universidade é tão importante que foi de um encontro nacional realizado na instituição, em 1998, que saíram as diretrizes sobre ações prioritárias para conservação da biodiversidade do Cerrado e do Pantanal, válidas até hoje e formalmente utilizadas pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA).

Além disso, a universidade guarda algumas das principais coleções científicas específicas sobre o Cerrado. A de Marinho, sobre mamíferos, tem cerca de 3,5 mil exemplares. O herbário da UnB tem mais de 200 mil amostras de plantas e a coleção de répteis chega a 30 mil unidades. Na análise de Marinho, o caminho da mudança para o Cerrado está na incorporação do meio ambiente em todas as esferas de planejamento e execução das políticas públicas e ações do Estado e, especialmente, na ampliação da malha de unidades de conservação para preservar as áreas que ainda guardam extensões contínuas do bioma. Confira essa e outras opiniões do pesquisador na entrevista exclusiva concedida à UnB Agência:

UnB AGÊNCIA – Qual a importância do Cerrado para o país?

JADER MARINHO – É um bioma que tem mais de 11 mil espécies de plantas, um absurdo de riqueza biológica que só existe no Brasil. Temos um potencial mal conhecido imenso e que estamos, literalmente, cortando pela raiz antes de usá-lo. Estamos substituindo essa variedade toda por cinco espécies: soja, milho, milheto, algodão e arroz. Todas culturas exóticas. Nosso presidente está feliz, acreditando que o Brasil será o grande exportador de biodiesel para o mundo. Vamos detonar o resto do Cerrado para plantar soja e mamona. O agronegócio está aí e representa um dos principais mecanismos para o Brasil conseguir o superávit primário em suas contas. Não é nada desprezível. Mas precisamos encontrar uma maneira de conciliar isso e o desenvolvimento com a conservação da natureza. Ao invés de vender commodities, vendamos serviços, que são muito mais caros, têm maior valor agregado e trazem mais riquezas.

Qual seria a melhor estratégia?

Se explorarmos esses recursos, em médio e longo prazo, poderemos ter muito mais vantagens financeiras do que o agronegócio traz hoje. Se apostarmos 10 ou 20 anos em pesquisas sobre a biodiversidade do Cerrado, não exploraremos poucas espécies. O Brasil já deu exemplo disso. Ainda no governo militar, o país criou a Embrapa, destinou recursos para formar pesquisadores e sustentar estudos de ponta. Isso nos colocou na linha de frente do agronegócio mundial e foi mantido em todos os governos que vieram depois, inclusive no atual. A flora do Cerrado é um dos conjuntos vegetais do mundo para o qual se conhece o maior número de aplicações médicas. As populações locais a usam para dezenas de coisas. O chá de quebra-pedra serve mesmo para problema renal. Imagine pesquisa científica sobre isso. Cerca de 50% das espécies de plantas do Cerrado só existem aqui.

Qual é o nível de risco a que o Cerrado está exposto hoje?

O Cerrado é o bioma mais ameaçado do Brasil. Muito mais do que a Amazônia, que hoje não é mundialmente reconhecida como em alto risco. Ela é sexy, chama atenção por ser a maior floresta tropical e conter a maior biodiversidade mundial. Não há dúvida quanto a isso. Mas ela caminha para ter 20% de sua cobertura total em unidades de conservação. No Cerrado, esse índice é de 3%. Além disso, a taxa de desmatamento é muito maior. A conversão em larga escala do Cerrado em áreas agrícolas ou associadas à atividade humana tem menos de 50 anos. Nesse período, já reduzimos e transformamos definitivamente 80% de sua cobertura original. Só sobraram 20%. Nenhum outro bioma passou por isso nessa rapidez. A Mata Atlântica está em situação gravíssima, tem apenas 5% de sua cobertura original. Mas isso aconteceu em 500 anos. Em apenas 50, derrubamos 80% do Cerrado.

O Cerrado corre risco de extinção? Em quanto tempo?

Sim, e caminha a passos largos para isso. As estimativas apontam que, em 30 anos, ele pode estar completamente exterminado. Por isso, é considerado um hot spot para conservação no mundo, está entre as 20 áreas mais importantes. Apesar de ser uma formação do tipo savana e de guardar semelhanças com a africana e a australiana, nenhuma delas é tão rica e diversa quanto o que temos aqui no Brasil central. Mas nem nós estamos preocupados com o Cerrado. Se olharmos o capítulo de meio ambiente da constituição brasileira, veremos claramente que a Amazônia, a Mata Atlântica, o Pantanal, a Serra do Mar e a Zona Costeira são patrimônios nacionais. O Cerrado não está lá porque é para derrubar. O lobby ruralista não deixou colocá-lo também nessa condição.

Apresentado há 11 anos, o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 115 - que eleva o Cerrado e a Caatinga à condição de Patrimônio Nacional - foi aprovado no dia 2 de agosto por uma comissão da Câmara dos Deputados. Agora a proposta segue para apreciação, em dois turnos, no plenário da casa. Isso é um bom sinal?

Pode ser um primeiro passo, mas também pode ser apenas alguma coisa no papel como tantas outras leis e aspectos legais do país. Temos muitas leis boas para um monte de coisas, mas aplicá-las é outra história. Claramente, isso representa um avanço. Mas o fato de estar no Congresso Nacional há 11 anos já mostra que não é um tema tão prioritário assim. Se levarmos em conta os dados que temos e se a aprovação final tomar outros 11 anos, restará muito pouco para nos orgulharmos. E se levar 20 anos, talvez nem Cerrado haja mais.

O governo conhece essas informações sobre os riscos que o Cerrado corre?

Em alguma medida, sim. O Ministério do Meio Ambiente (MMA) tem esses dados ou parte deles. Há técnicos qualificados para lidar com isso. Falta um projeto nacional em relação à questão ambiental como um todo. Temos problemas gravíssimos e o meio ambiente ainda é considerado um entrave ao progresso. Governos brasileiros ainda não se deram conta de que a questão ambiental é hoje um tema chave no mundo e que não se faz desenvolvimento sem sérias preocupações e ações conseqüentes em relação ao ambiente. Isso não é problema só do Brasil, mas temos a maior biodiversidade do planeta. Se alguém tem tudo a perder nesse campo, somos nós. Uma em cada seis espécies do mundo ocorre no Brasil. Temos um sexto da biodiversidade mundial. Nós somos o Bill Gates da biodiversidade mundial. Somos nós que temos de cuidar do nosso patrimônio. )

A soja é a maior inimiga do Cerrado?

No momento, sim, por representar a agricultura mecanizada, de larga escala e alta produtividade. Mas essa mesma agricultura que degrada pode ser aquela que, junto com o esforço conservacionista, preservará. Inclusive para obter ganho de produtividade. Porque mantendo a diversidade biológica do bioma, mantemos os predadores das pragas (e gastamos menos em defensivos), mantemos os processos da natureza em ordem (e perdemos menos com erosão, catástrofes climáticas). Falamos de soja como se fosse algo que pudesse se perpetuar por 300 anos. Mantidos os cenários atuais, talvez em 20 ou 30 anos não se consiga plantar mais nada no Brasil central. Temos de planejar agora para usufruir disso no futuro. Se tirarmos o Cerrado e sua cobertura vegetal talvez nem água tenhamos para irrigar essas lavouras. Talvez alteremos definitivamente os ciclos de chuva.

Quais são os maiores inimigos do Cerrado?

A ignorância! Precisamos conhecer melhor o bioma. Isso não é culpa nossa (dos cientistas) e sim da falta de políticas nacionais relacionadas à questão ambiental como um todo. O que falo para o Cerrado vale para a Mata Atlântica, a Amazônia, a “pobrezinha” da Caatinga ou o Pantanal. Estamos destruindo nosso ambiente em ritmo muito acelerado. O não uso do conhecimento já existente para tomada de decisão também é um erro grave. A informação existe e é deliberadamente ignorada. Os políticos tomam decisões sem consultar dados científicos. Temos uma comunidade de pesquisadores pujante e ativa. O país investiu muito nisso. Mas e aí? Não usamos a informação que vem disso. Geramos dados que são solenemente ignorados porque o compromisso dos políticos é mesquinho, pequeno, preocupado com o votinho de cada eleição. A ignorância é um problema sério!

O que se pode fazer para mudar a situação?

Incorporar a dimensão ambiental a todo e qualquer processo de planejamento, desde o início. Não se faz uma hidrelétrica e depois se concerta o problema. Temos de evitá-lo desde o projeto. Isso custa caro? Sim! Mas o que sai mais caro: não errar ou corrigir o erro depois? Precisamos ter visão de futuro e ter estratégias, não apenas tapar buraco ou apagar incêndios aqui e ali. Programas de três ou cinco anos são bobagens. Temos de pensar o que o Brasil quer ser daqui a 20 anos e em como construiremos essa base hoje. E não podemos deixar o meio ambiente de fora. Esse é nosso maior patrimônio e precisa ser incluído em todas as esferas de planejamento e execução.

E imediatamente?

Ampliar a malha de unidades de conservação. Localizar as maiores extensões contínuas de Cerrado e estabelecer grandes áreas de proteção que nos permitam manter todos os processos ecológicos da natureza. Não se consegue isso numa extensão de terra do tamanho do Parque Nacional de Brasília. Consegue-se, sim, em grandes extensões de território. Precisamos de um grande esforço de conservação onde ainda há Cerrado. Não podemos mais derrubá-lo para plantar soja. Podemos trabalhar e aproveitar as áreas já devastadas e abandonadas. Temos de declarar a moratória de derrubada do Cerrado: não se desmata mais! Com 20% da cobertura sobrando, temos de conservar, e bem, tudo. Detonamos quatro quintos do que tínhamos e usamos isso mal.
(Por André Augusto Castro, UnB - Universidade de Brasília, 11/08/2006)
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