Democracia, Leis e a Gestão Local das APPs Costeiras
2006-08-14
* Por Antonio C. P. Soler, Cíntia Barenho e Eugênia Antunes Dias
Afirmar que ecossistemas associados à Mata Atlântica ao longo da
zona costeira apresentam significativa biodiversidade e beleza própria é, de certa forma, piegas, em se tratando da costa brasileira, mas nem por isso tais meios podem ser ecologicamente desprezíveis. É o caso dos ambientes de
dunas e banhados formadores do complexo estuarino da Laguna dos Patos e a
Lagoa Mirim, no sul do Brasil e ao norte do Uruguai.
Desafortunadamente, da mesma forma não são raras as diversas
externalidades negativas decorrentes de obras e ou atividades econômicas,
que em nada ou infimamente consideram os números da quase absoluta extinção
da Mata Atlântica [1], iniciada nos tempos coloniais (extração do
pau-brasil) e fortemente presente na contemporaneidade (urbanização /
industrialização).
Assim, praias arenosas, dunas costeiras e lagunares, banhados, campos
alagadiços, marismas e matas de restinga, habitats da diversidade faunística
e florística típica fazem parte do conjunto de ambientes degradados ou, o
que é pior, suprimidos da zona costeira.
Enquanto a economia predatória planetária subsistir, oprimindo e degradando,
mormente os países do sul e do leste, cabe à coletividade, localmente, num
esforço prioritário, propor e acompanhar a elaboração e a execução de
políticas públicas ambientais capazes de proteger as remanecências da Mata
Atlântica e seus ecossistemas associados, no caso, as Zonas Úmidas, bem como
de garantir sua recuperação quando degradadas.
No Rio Grande do Sul, o Parque Nacional da Lagoa do Peixe, em 1993, foi
designado Sítio Ramsar, conforme a Convenção de igual nome (Irã / 1971), da
qual o Brasil é signatário (1993), a qual reconhece a importância ecológica
e o valor econômico, cultural, científico e recreativo das zonas úmidas. Não
obstante, diversos outros ambientes costeiros gaúchos poderiam (e deveriam)
assim serem reconhecidos, merecendo, portanto, uma gestão sustentável e um
tratamento legal protetor.
Agrega-se a isso o fato biogeográfico de a zona úmida gaúcha brasileira
conectar-se com o sistema gaúcho uruguaio[2] , formando, na verdade, uma
grande e única região de banhados (humedales) e dunas costeiras, intimamente
ligados aos biomas Mata Atlântica e campos sulinos. Nessas condições está a
Lagoa Mirim, bi-nacional, junto a Estação Ecológica do Taim - Unidade de
Conservação de domínio da União, a qual visa preservar os ecossistemas de
banhados, lagoas e dunas - ameaçadas, principalmente pela expansão da
produção de arroz. Tal área[3] inclusive já foi reconhecida como prioritária
para a conservação, utilização sustentável e repartição dos benefícios da
biodiversidade, pelo ordenamento jurídico brasileiro.[4]
Sem olvidarmos da Constituição Federal, a qual considera a Zona Costeira
como patrimônio nacional, e das demais normas infraconstitucionais federais,
como a Lei nº 7.661, de 16 de maio de 1988, que cria o Plano Nacional de
Gerenciamento Costeiro, destacamos Leis municipais de proteção e de usos
sustentável de tal bioma, resultantes da mobilização social frente aos
sistemas tradicionais legislativos, no qual a natureza ou a consideração da
vida não humana ocupa papel periférico, quando não subjugado e, a
coletividade em geral, pouco ou em nada participa devido ao modelo vigente
de distribuição do poder político.
Em Rio Grande , em razão da ação coletiva, num primeiro momento de
organizações não governamentais ecológicas (ONGs), como o Centro de Estudos
Ambientais ( CEA) [5] e setores da academia, rompeu-se, pelo menos no nível
formal, com anos de prejuízo a biodiversidade pela retirada ilegal de areia
do cordão de dunas costeiras e áreas adjacentes, promovida pelo Poder
Público local e empresas privadas. Por força de tal reivindicação civil, foi
discutida pela comunidade, aprovada pela Câmara de Vereadores e sancionada
pelo prefeito municipal a Lei nº 5.261, de 18 de setembro de 1998, que
considera as dunas e o conjunto ecológico que formam, patrimônio ambiental,
cultural e paisagístico do município do Rio Grande e dá outras providências.
Outra norma local de igual caráter é a Lei Municipal de Pelotas nº 4392, de
05 de julho de 1999, a qual declarou como Área de Interesse Ecoturístico a
Orla da Laguna dos Patos, visando "a salubridade, conforto, segurança e a
proteção ambiental; o fomento do ecoturístico; o desenvolvimento
sustentável, para as presentes e futuras gerações; a preservação,
conservação e a restauração do ambiente, da paisagem natural e do patrimônio
cultural; a prática de lazer e da recreação; e o fortalecimento da economia
local".
Entretanto a essas e outras leis de natureza semelhante só serão um
instrumento de defesa ambiental, em existindo capacidade e compromisso de
sua aplicação por parte do Poder Público, acompanhada de perto pela
coletividade por instrumentos típicos da democracia direta, como os
conselhos ambientais, fóruns e audiências públicas.
Outrossim, a gestão ambiental participativa para ser eficaz, mais do que
financiamento público para execução de projetos e políticas, prescinde de
transparência e informação adequada, bem como de espaços básicos, não
somente formais, de participação. Não obstante, as deliberações daí oriundas
devem ser imperativas na implementação das políticas ambientais, sob pena de
o Poder Público, em não o fazendo, atentar frontalmente contra o exercício
da democracia direta.
Contudo, nos municípios da região em tela, o nível de acompanhamento da
coletividade é perigosamente baixo para o resguardo dos direitos difusos.
Não raro, os gestores ambientais são, política e/ou financeiramente,
dependentes indiretos, bem como diretos de empreendedores, comprometendo a
legalidade e aniquilando a legitimidade atos administrativos ambientais.
Imperioso se faz combater, num primeiro momento, a inobservância da lei
ambiental por empreendedores e pelos próprios órgãos ambientais, com um
acompanhamento mais imediato do Ministério Público, diminuindo o uso abusivo
dos Termos de Ajustamento de Conduta, encontrando concomitantemente um
Judiciário com maior sensibilidade constitucional ambiental e coletiva.
Mas isso só não basta. A coletividade deve seguir (e porque não dirigir) a
gestão ambiental com dados, com acesso efetivo à informação ambiental, o que
hoje ainda é um direito vazio da população.
Sem tais precauções, a aplicação das leis ambientais, base para a
sustentabilidade, não será viabilizada, por mais que as mesmas contenham
mecanismos de vanguarda na proteção da biodiversidade e dos interesses
coletivos.
* Antonio C. P. Soler é coordenador do Centro de Estudos Ambientais de
Pelotas (CEA) representante do FBOMS na Comissão do Programa Nacional de
Áreas Protegidas e professor da Cadeira de Direito Ambiental da Universidade
do Rio Grande (FURG).
* Cíntia Barenho é membro do CEA, mestranda em Educação Ambiental /
FURG.
* Eugênia Antunes Dias é membro do CEA, mestranda em Ciências Sociais /
Instituto de Sociologia e Política (ISP) / Universidade Federal de Pelotas (
UFPel).
Notas
[1] Como sabemos, só restam 7% da cobertura original da Mata Atlântica.
[2] Em 1984 foi declarado como Sítio Ramsar, o Banhado Del Este, nas
províncias de Rocha e Trienta y Tres, no Uruguai.
[3] Merecem destaque os trabalhos desenvolvidos pelo Programa Mar de Dentro,
do governo do Estado do RS, durante os anos de 1999 e 2000, os quais
apontaram diversas páreas para receberam regime legal protetor, como os
banhados da Lagoa Pequena em Pelotas, e as dunas costeiras em Rio Grande
(Região Hidrográfica Litorânea).
[4] Decreto 5092/04 e Portaria MMA 126/04.
[5] O CEA elaborou a minuta de projeto de lei, a qual acabou, quase sem
alterações, por se tornar a Lei Municipal 5261, de 18 de setembro de 1998,
que considera as dunas e o conjunto ecológico que formam, patrimônio
ambiental, cultural e paisagístico do município do rio grande e dá outras
providências.