Doha: meio ambiente versus agronegócio
2006-08-11
A discussão acerca da abertura dos mercados dos países desenvolvidos aos produtos agrícolas dos países em desenvolvimento volta e meia vem à tona, principalmente quando há negociações multilaterais ligadas à rodada de Doha, relativas à diminuição de subsídios governamentais a setores produtivos. Mas antes do fracasso (da perspectiva de quem queria o fim dos subsídios, principalmente os agrícolas em países desenvolvidos), que novamente ocorreu, foi publicado um estudo pela Universidade de Manchester, encomendado pela Comissão Européia, que colocou mais um tempero na discussão. O estudo afirma que a abertura do mercado da União Européia aos produtos agrícolas de países sul-americanos pode acarretar um aumento de problemas ambientais nestes últimos.
Deixando de lado a possível motivação política do estudo, aspecto levantado por autoridades brasileiras e que não pretendo analisar aqui, suas conclusões fazem sentido e eu iria ainda mais longe. No caso do Brasil, além de problemas ambientais, a abertura dos mercados americano e europeu aos nossos produtos agrícolas traria também muito poucos benefícios sócio-econômicos.
Vejamos. No lado de cá do globo, quem seria beneficiado com tal abertura? Inicialmente, seriam aqueles setores do agronegócio que estão mais bem estruturados e que já são exportadores ativos: carne (bovina, suína e de aves), soja, laranja e açúcar e álcool. No caso de suínos e aves, o aumento se daria na produção confinada, e tais animais serão alimentados principalmente com soja e milho.
O que nos leva diretamente ao caso da soja. A expansão desta cultura ocorre em boa parte no arco do desmatamento da Amazônia, sendo apontada, junto com o gado, como uma das causas das absurdas taxas de desmatamento na região. A sojicultura também avança a passos largos sobre o cerrado, desmatando vastas extensões deste ecossistema, principalmente nos estados do Mato Grosso, Maranhão, Tocantins e no oeste da Bahia. Todos sabem que a recente expansão da produção bovina tem ocorrido boa parte também na Amazônia, contribuindo sinergeticamente com a soja para o desmatamento na região.
Como a extensão de terra necessária para produzir um quilo de carne é muito maior que a necessária para produzir um quilo de produto vegetal, a expansão da pecuária é a que tem maior potencial de desmatamento por aumento de volume exportado.
E os tão propalados benefícios sociais e econômicos do acordo? Ora, qualquer calouro de economia sabe que quanto menor o valor agregado de um produto, menor o número de empregos que gera. E os produtos agrícolas estão entre aqueles com menor valor agregado. Pior, boa parte das culturas mencionadas são altamente tecnificadas, e necessitam de muito pouca mão-de-obra. A geração de empregos, quando comparada a outras atividades, é pífia. E a expansão também não servirá para a fixação do homem no campo e nem para a expansão da agricultura familiar, pois sem qualquer sombra de dúvida ocorrerá em moldes de grandes propriedades (ou médias, mas com poucos intermediários que concentram o processamento básico e a exportação).
Para completar, a expansão de agricultura monocultora, latifundiária e tecnificada para algumas regiões leva à aquisição de pequenas propriedades a preços relativamente baixos, sendo que os agricultores acabam por migrar do campo e a engrossar a massa de excluídos nas cidades quando o dinheiro da venda invariavelmente termina.
De qualquer forma, é claro que os números da balança comercial seriam mais favoráveis, ótimos para a propaganda de quem quer que esteja no governo. Mas e a sociedade como um todo, ganha? No caso da soja, tida como uma das vedetes do nosso agronegócio, muito se fala de toneladas de produção e pouco sobre o destino do lucro. O fato é que todas as maiores empresas exportadoras e/ou processadoras de soja são estrangeiras (Cargill, Bunge, ADM, Coinbra, entre outras). Então, uma parcela significativa dos lucros com as exportações na verdade retorna ao exterior. E quase não se considera que a nossa balança de pagamentos, que é a conta real de tudo que entrou menos tudo o que saiu, é muito menor que a sua irmã comercial, mais famosa.
Quanto ao setor sucro-alcooleiro, é público e notório que ele é controlado por um punhado de usineiros, e a produção também é bastante concentradora, e novamente o lucro acaba em poucas mãos. Apesar do número de produtores ser alto na produção de carne bovina, os intermediários da cadeia, que são os frigoríficos, são poucos, e são eles os responsáveis pelas exportações. E aqui já há um claro movimento do aumento da participação de empresas estrangeiras no país.
Novamente o dinheiro vai entrar por uma porta e depois acabar saindo por outra. As empresas exportadoras dos setores suinícola e avícola também são em número extremamente reduzido, e o produtor, por sua vez, normalmente possui uma margem de lucro bastante apertada. Em todos os casos vemos um padrão semelhante: tendência à concentração, ao aumento no tamanho das propriedades produtoras e em varios setores a invasão de empresas estrangeiras, com a consequente remessa de lucros.
Por fim, há um ponto bastante polêmico, mas que deveria entrar em qualquer discussão séria, se estivermos realmente preocupados com o futuro de nosso planeta. Com a inevitável crise de combustíveis e de energia que se aproxima cada vez mais, deveria estar ocorrendo um movimento global no sentido de se diminuir o comércio de longa distancia e de se fomentar ao máximo a auto-suficiência, já que a movimentação de bens é uma fonte voraz de consumo de combustíveis.
Em resumo, optar por defender a liberalização cada vez maior do comércio mundial e focar esta defesa no acesso de nossos produtos agrícolas aos mercados dos países desenvolvidos, como tem sido a política do governo, significa duas coisas. Primeiro um desconhecimento absoluto das consequências ambientais negativas que podem advir ou, pior, o descaso com elas. Segundo, uma opção clara por um modelo de desenvolvimento agrícola focado no grande agronegócio. Nenhuma novidade em se tratando daqueles que tem dominado o poder por aqui até hoje.
(Por Rogério Grassetto Teixeira da Cunha, biólogo, doutor em Comportamento Animal pela Universidade de Saint Andrews, 10/08/2006).