Assim que saí do avião senti um forte cheiro de tuti-fruti e me dei conta que estava nos Estados Unidos. Para um estrangeiro, o primeiro contato com a cultura americana é uma aula prática de democracia, que começa muito antes de chegar aqui. Começa já na fila pra pedir visto no Consulado. Como na democracia do elevador, qualquer que seja a cor, status social ou patente, todos têm que esperar em pé a sua vez. No caso do visto, era esperar para ser chamado pela funcionária inquisidora, protegida atrás de um vidro esverdeado com quase três centímetros de espessura.
Éramos nós, com medo de ter o visto negado, e ela, com medo de bomba, provavelmente. Na hora de decidir sobre o seu visto, o americano parece estar pouco se lixando para aquilo que você é, representa ou o que fez de bom. O que importa é se você fez alguma coisa que eles consideram ruim, e se isso de algum modo vai trazer problemas para eles.
Havia uma jovem advogada na minha frente que trouxe até um assessor para ajudá-la com a papelada e uma pilha de documentos comprobatórios sobre tudo o que ela havia feito na profissão, desde o início da carreira. O currículo completo. Estava nervosa e com medo até do segurança que organizava a fila e orientava as pessoas. Para a maioria dos que ali estavam, desesperados por um visto americano, o cara mandava mais do que a Rainha Vitória no século XIX.
Cheguei em Yellow Spring no domingo à tarde, dia 23 de julho de 2006. Verão em uma típica cidadezinha americana do meio-oeste, encravada no estado de Ohio entre bosques de carvalho, e rodeada por campos de trigo, milho e soja. Na cidade não falta nada que não seja importante para o bem estar e a qualidade de vida da população: hospital, polícia, bombeiro, escola, etc. e todas (sem exceção) as ruas asfaltadas.
Mas o desenvolvimento manteve uma cultura popular de respeito pela natureza. Tem bosques bem conservados, ciclovias, uma lata de lixo por habitante e muitos preferem encher seus garrafões d água na fonte do parque municipal do que comprar no supermercado. Mais em sinal de protesto contra a industrialização da água do que por economia.
Os anúncios comerciais estão cheios dessa preocupação ambiental, além de puxar a sardinha para a própria brasa. Na porta de uma marcenaria estava escrito With all due respect for the progress…but the world could use less plastic (“Com todo o devido respeito ao progresso… mas o mundo poderia usar menos plástico”).
Excentricidades
O motivo de minha visita a essa cidade foi o ensino da Oceanografia. Uma colega americana me convidou para ajudá-la em seu curso de verão sobre Ambientes Marinhos dedicado a alunos de Ciências Biológicas da Antioch College. Trata-se de uma universidade privada fundada em 1854 e mantida por anuidades escolares e doações de fundos privados. A maioria dos cursos são voltados para artes e ciências sociais. O que a destaca das outras universidades no estado de Ohio é o liberalismo-democrático do ambiente universitário e seus alunos excêntricos para os padrões americanos.
Para os nossos padrões, ou pelo menos para o meu próprio padrão, eu diria que eles são mais do que apenas excêntricos. Nunca vi tanto piercing na língua, agulha na bochecha, tatuagem na cabeça e cabelos coloridos, todos juntos em uma mesma escadaria. Todo o comportamento, vestuário e liberdade de expressão (exceto andar nu) são aceitos aqui no campus universitário. Mas com limites, é óbvio, como manda a velha e conservadora sociedade americana. Ai de algum “moikano” engraçadinho que jogar a lata de coca-cola fora do lixo ou dizer em voz alta algum palavrão pior do que calcinha!
Cheguei no domingo, dia 23 de julho, e fui me instalar no alojamento da universidade. Logo na entrada estão as palavras de Horace Mann (1796-1859), advogado, parlamentar, Primeiro Secretário da Educação americano e ex-diretor da Antioch College (1852-1859): Be ashamed to die until you have won some victory for humanity (“Sinta vergonha de morrer antes de ter ganho alguma vitória para a humanidade”). Parece uma missão impossível para a maioria das pessoas.
Mas, pensando bem, são as pequenas atitudes do dia-a-dia que contam ponto. Mesmo uma ajudinha pra lavar a louça para quem detesta, usando o mínimo de água possível, já é alguma coisa. Portanto, mantenha sua consciência limpa e morra em paz!
Depois da experiência democrática da fila do visto vem a noção da pujança e do consumo da sócio-economia americana. Como dizia aquele anúncio na entrada principal do Sawgrass Mall, o maior Shopping Center do mundo, na Flórida: If there isn’t here, it doesn’t exist (“Se não tiver aqui, não existe”).
Fui instalado em um quarto bem confortável no primeiro andar do alojamento, com duas mesas modernas, telefone e tomada pra internet. Uma cama de molas que literalmente me fagocitou todas as noites em que estive hospedado aqui, de tão mole que era. Cinco toalhas de banho também cheirando a tuti-fruti, rolos enormes de papel higiênico e frascos gigantescos de detergente e desinfetante no banheiro à minha disposição. Tudo em duplicata. Aqui tudo é exageradamente grande e abundante pra não correr o risco de faltar.
O mar americano
O curso começava na 3a feira, dia 25 de julho. Após as primeiras vivências práticas de democracia, consumismo e biodiversidade universitária, eu já estava curioso em saber como seria participar da formação acadêmica americana em Oceanografia. E também saber por que alunos do interior de Ohio, que nem mar têm, estavam sacrificando suas férias de verão para assistir um curso sobre Oceanografia e saber mais sobre a vida marinha.
Logo descobri: 1) não tinham dinheiro sobrando para viajar, 2) não arranjaram nenhum emprego de férias que aliviasse as contas e 3) queriam aproveitar o período que estavam na universidade (que é paga) para aprender algo mais. E o mar estava entre as opções profissionais do futuro de alguns deles.
A história americana está muito ligada ao mar (como a nossa) e o povo americano tem uma curiosidade nata sobre tudo o que diz respeito ao mar. Isso foi certamente herdado dos ingleses, seus colonizadores. Mas não é só por isso. Nós também fomos colonizados por habilidosos navegadores portugueses que também saíram por aí dominando o mundo afora através dos mares e, no entanto, para o brasileiro em geral a palavra “mar” ainda lembra litoral, como já mencionei em artigo anterior.
A geografia americana também contribui. Os EUA são o país com a maior diversidade de habitats marinhos do mundo. É banhado pelo Oceano Atlântico tropical e temperado na costa Leste, pelo Oceano Pacífico tropical e temperado na costa Oeste e no Havaí, e pelo Oceano Ártico e Mar de Bering nas costas do Alasca. Ou seja, eles têm domínios costeiros em quase todas as latitudes do Hemisfério Norte. Desde praias arenosas, recifes de corais, estuários e manguezais na Florida e Golfo do México, até costões rochosos na costa Oeste e colônias de focas, morsas e belugas no Ártico entre o gelo marinho. Por enquanto, a hegemonia dos mares é, sem dúvida, também americana. Que ninguém duvide disso.
Recursos marinhos aqui são considerados em sua forma mais abrangente. Além da própria pesca, quase tudo que é ligado ao mar pode ser um recurso importante para a economia costeira. Um peixe de aquário, uma onda perfeita para surf, um estuário sem poluição, uma lagoa tropical com água transparente, um museu marítimo e até um pequeno restaurante de frutos do mar, todos têm um valor intrínseco agregado. São patrimônios cuidados com tanto carinho que me deixa envergonhado de ver que também temos quase tudo isso e não damos o devido valor.
Além da pesca industrial, artesanal e da maricultura, os recursos do mar atendem à indústria dos esportes, do turismo e do lazer. Os esportes náuticos são uma potência na economia costeira de vários estados. Só a indústria de construção naval para barcos recreacionais e de motores náuticos movimenta milhões de dólares, mais do que o PIB de muitos países costeiros. Existem centenas (eu disse centenas!) de aquários públicos e privados que educam e geram renda e emprego para milhões de americanos. Isso sem falar da indústria tecnológica americana que atende à indústria militar e o setor energético. Existem milhares de plataformas de petróleo no Golfo do México e nas costas da Califórnia. Muitas delas estão virando recifes artificiais depois de obsoletas, transformando-se em reservas marinhas e gerando mais renda e emprego para o setor ecoturístico.
Interesse nos estudos
Hoje em dia, os americanos são os que mais apóiam a ciência oceanográfica com recursos materiais e humanos. Portanto, os alunos tinham muito interesse em saber tudo o que fosse possível sobre o mar, sua vida e seus recursos. Ao todo eram sete alunos sentados em volta de uma mesa enorme. Todos me olhando com aquela curiosidade indiferente do americano adaptado ao seu modo de fazer as coisas. A didática usada pela minha colega americana é bem diferente dos shows de multimídia que acreditamos serem úteis como ferramentas de ensino, mas que podem nivelar por baixo. Sem a maquiagem do PowerPoint, a aula torna-se muito mais dinâmica do que em aulas exclusivamente expositivas.
Os alunos lêem e discutem em classe as definições e conceitos contidos nos capítulos dos livros textos. Uma forma agradável de se aprender. A primeira aula foi sobre a origem dos mares, a tectônica de placas e a geografia marinha recente. Os alunos já sabiam que esses seriam os temas introdutórios e já haviam lido os textos básicos em casa. A exigência da leitura é, óbviamente, torná-los aptos à discussão em classe. Ninguém pode ficar boiando em relação ao que está sendo dito. Todos prestam atenção e participam. Raras vezes se dispersam em conversas paralelas, mas por pouco tempo.
O professor está ali para orientar o diálogo e manter o rumo da discussão na direção do tema da aula. Usa giz, vídeos em DVD, internet e eventualmente PowerPoint. Com todos os recursos didáticos, cada qual usado de acordo com a necessidade, nenhum conceito fica sem definição e nenhuma pergunta fica sem uma resposta que satisfaça a compreensão de todos.
O liberalismo-democrático em sala de aula é constante. Ao mesmo tempo em que aprendem, eles comem. E muito! A mesa é um amontoado de marmitas plásticas, frutas e sanduíches mordidos e deixados sobre papel alumínio entre livros, cadernos e anotações. Comem e discutem o tema. Alguns tiram os sapatos e andam descalços pela sala de aula. Vão até o microscópio e observam espículas calcáreas e silicosas de esponjas, e as carapaças de diatomáceas. Ajoelhados no chão com as lâminas de microscópio em uma mão e a maçã na outra, conversam sobre as estruturas celulares dos organismos marinhos que acabaram de ler e discutir ao redor da mesa.
Sentem-se como se estivessem em casa. Ficam à vontade sem perder o respeito pelo professor ou o interesse pela matéria. Não estão ali pra brincar, já que é com a ajuda de empréstimos bancários que eles pagam todo o mês a quantia equivalente ao meu salário na UFPR para a contabilidade universitária. No final da aula saem um pouco mais endividados, bem alimentados e sabendo muito bem a matéria. E assim foi todo o curso, parte realizado nos laboratórios da Antioch College em Yellow Spring, e uma semana inteira de observações de campo no Belle Baruch Institute for Marine and Coastal Sciences da Universidade da Carolina do Sul. Confesso que eu aprendi tanto quanto eles.
Realidade brasileira
No Brasil não daria pra fazer melhor com 30 alunos em sala de aula. Mas um meio termo é possível. A nossa realidade é muito diferente. Dou aula há pelo menos 20 anos em cursos de Biologia e Oceanografia da UFPR, em todos os níveis acadêmicos. Por falta de infra-estrutura suficiente, sou obrigado a usar o tradicional método francês de aula expositiva. É comum alunos bocejando desinteressados numa manhã de segunda feira. Especialmente quando o método de ensino não colabora. A luz apagada para realçar as cores do multimídia é um convite irresistível para dormir. Uma tortura para o aluno e uma frustração para o professor que passou o fim de semana preparando a aula com tantas imagens coloridas e truques de movimento, crente que iria arrasar na classe.
O Brasil tem oito cursos de Oceanografia, uma pseudo-ciência que engloba praticamente todas as ciências exatas aplicadas ao mar. Um desafio ousado de ensino em nível de graduação, haja visto a multidisciplinaridade do tema. Pense em uma graduação em “Continentologia” para se ter uma idéia de quanto é complexo o ensino em Oceanografia sem ter muita infra-estrutura laboratorial e contando com recursos didáticos limitados a livros, giz e agora multimídia.
Giz e multimídia não são problema, mas poucos são os livros textos de qualidade em língua portuguesa, com exemplos regionais. Apenas dois desses cursos têm navios próprios com laboratórios flutuantes e bases avançadas para treinamentos e cursos práticos. Nossos alunos são cada vez mais ensinados apenas com shows de PowerPoint, quase sempre com figuras e esquemas copiados dos livros americanos, uma forma de compensar talvez a falta de recursos para aulas práticas.
É o que o giz sempre fez quando nós ainda sabíamos dar aula. Hoje, nós, educadores das ciências do mar, estamos adquirindo mais habilidade de esconder nossas limitações didáticas com shows de cor e movimento de setinhas. Cada vez mais discutimos menos com os alunos, desestimulando-os a aprender com nosso método digital e unidirecional de transmitir informações. Na verdade ambos, aluno e professor, estão desaprendendo a aprender.
Em escala global, a política ambiental americana deixa muito a desejar. Não me surpreende pelo nível de consumo de energia e bens materiais em todos os rincões dessa sociedade. Mas na escala local de uma pequena cidade do interior de Ohio são inúmeros os exemplos de respeito pela natureza, educação e métodos liberais de ensino a serem seguidos. E isso só se percebe quando se está aqui, cheirando tuti-fruti e vivenciando a democracia diária nas ruas e na sala de aula de uma universidade americana.
(O Eco, 05/08/2006)