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2006-08-04
Idealizador do Projeto Saúde e Alegria, o médico Eugênio Scannavino aponta os prejuízos que a lavoura da soja tem causado aos moradores de comunidades tradicionais da Amazônia e defende a interrupção imediata do cultivo na região.

Eugênio foi um dos fundadores do Projeto Saúde e Alegria, em 1987. Há quase 20 anos, o projeto utiliza a linguagem do circo associada à cultura regional para melhorar a qualidade de vida mais de 140 comunidades tradicionais na zona rural dos municípios de Santarém, Belterra e Aveiro, no oeste do Pará. A ONG, que começou seu trabalho preocupada apenas com a saúde dessas populações, passou a desenvolver iniciativas que gerassem renda e garantissem o uso sustentável da floresta. Hoje, porém, o projeto enfrenta um grande inimigo: a expansão das plantações de soja que expulsa os moradores e os obriga a migrarem para as cidades.

Sem a floresta - que foi derrubada para ceder espaço ao gado ou à soja - as comunidades que vivem do extrativismo perdem, além da principal fonte de renda, a riqueza de sua cultura. Desde 2003, o avanço do cultivo da soja já derrubou mais de 70 mil quilômetros quadrados de mata, aponta a organização ambientalista Greenpeace. E apenas um quarto desse desmatamento recebeu autorização legal.

"As comunidades têm uma relação muito harmônica com o meio ambiente em que vivem, defendem a floresta. Onde existe população tradicional, a floresta está em pé porque ela é seu meio econômico, social e cultural", defende Eugênio Scannavino Neto, um dos fundadores do Projeto Saúde e Alegria. O trabalho dele na região começou no fim dos anos 80, quando era médico da prefeitura de Santarém e tratava das populações ribeirinhas.

Atualmente, o projeto alcança 29 mil pessoas e comemora o feito de ter ajudado a reduzir a altíssima mortalidade infantil da região, que era de 51,83 por mil crianças nascidas entre 1999 e 2000, quase o dobro da média nacional de 29,6, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No mesmo período, as áreas visitadas pelo Saúde e Alegria já exibiam a média de 27,83 por mil crianças nascidas.

Em entrevista à Repórter Brasil, Eugênio Scannavino fala sobre os prejuízos que a monocultura da soja provoca na região e aponta caminhos alternativos ao modelo agroexportador para proteger as populações tradicionais da Amazônia.

Repórter Brasil - O avanço do agronegócio na Amazônia tem levado benefícios às populações tradicionais?

Eugênio Scannavino - Para a população tradicional não tem trazido nenhum benefício. Pelo contrário, tem trazido muito prejuízo porque as terras das comunidades foram griladas, na sua maioria. Muitas das comunidades desapareceram. A floresta, que estava em pé, e é onde as comunidades sabem viver - com extrativismo, palha, remédios, caça -, ou seja, a fonte de vida delas, sumiu. Então, se não existe mais floresta, não existe mais o modo das comunidades viverem, não existe mais a comunidade. Ela é obrigada a migrar para as cidades e isso aumenta muito a favelização e a pobreza. A lavoura de soja é uma cultura mecanizada, usa grandes extensões e pouca mão-de-obra, portanto também não traz emprego. E o dinheiro, que deveria entrar na cidade, é todo de pessoas que são de fora. No caso de Santarém, que tem uma população amazônica que vive da floresta, a soja foi levada por mato-grossenses, paranaenses, pessoas de fora que invadiram a região e ficaram com essa grana. Essas pessoas derrubaram a mata, pegaram crédito "sujo" para fazer a devastação e hoje estão pedindo mais crédito, porque também ficaram no prejuízo. Nem para os próprios plantadores a soja trouxe benefícios.

RB - E como as comunidades vêem a lavoura da soja nessa região?

ES - Nas comunidades tradicionais, as pessoas são completamente contrárias [à soja]. Na cidade, as opiniões são divididas, porque há a ilusão de que existe um novo ponto de desenvolvimento com a soja. Há três anos, todo mundo era a favor. Hoje, depois do prejuízo ambiental, do prejuízo financeiro e do aumento de pobreza nas cidades, vemos que só se beneficiou quem passeia com carrões e é rico. E é todo mundo de fora. As cidades, como por exemplo Santarém, também já estão percebendo essa realidade.

RB - A lavoura de soja será sempre insustentável na Amazônia? Pode existir algum tipo de produção que não prejudique as comunidades?

ES - A soja nunca será sustentável. O bioma amazônico é feito para outras coisas. A madeira é uma atividade econômica bacana, lucrativa, que pode ser sustentável, a agrofloresta, a produção de frutas, o ecoturismo. Já temos hoje na Amazônia quase uma Inglaterra de pastos abandonados, que foram abertos e depois largados, porque [a pecuária] não é uma atividade lucrativa. E agora vem a soja, que devastou mais ainda, pôs fogo na floresta. A idéia é que não haja soja no bioma amazônico. Esta soja que já está plantada dificilmente terá mercado no futuro porque é uma soja de origem muito "suja": as terras são ilegais, toda a base é ilegal. É difícil que os compradores lá fora queiram sujar o nome, comprando uma soja de origem suspeita.

RB- Falamos da migração para as cidades. Esse fenômeno é cultural e está relacionado também aos jovens ou há essa relação com o agronegócio?

ES - Na Amazônia como um todo, o êxodo rural se dá muito entre os jovens que não têm perspectiva de desenvolvimento econômico com a floresta, com os modos tradicionais. Falta incentivo do governo, falta crédito. Existe também uma pressão sobre o meio ambiente, ou seja, as comunidades não conseguem mais viver como antigamente. Então, têm que encontrar novas maneiras de viver, e [isso] é cada mais difícil. Além disso, o ensino acaba no nível fundamental e é preciso sair para cursar o secundário, que não tem nas comunidades. Então, eles vão para a cidade também em busca de complementação da educação. Outro fator é a pressão da globalização, que desvaloriza a cultura deles, a tradicional, e valoriza uma cultura urbana. Os jovens saem muito em função desses aspectos. Com o advento da soja, não só os jovens, mas comunidades inteiras migraram para as cidades. Venderam ou entregaram a terra, ou foram expulsos.

RB- Qual é a solução para conviver com o chamado "mundo globalizado", sem deixar de lado a tradição dessas populações?

ES - Ninguém é contra os benefícios da globalização, mas a gente tem que trazer a questão para essas comunidades, dando a elas capacidade de manejar esses "mundos". Elas já têm uma relação muito harmônica com o meio ambiente em que vivem, defendem a floresta. Onde existe população tradicional, a floresta está em pé, porque ela é seu meio econômico, social e cultural. O problema é que ela está isolada, não tem nenhum tipo de acesso à informações, à saúde. O trabalho ali é dar condições de cidadania a essas pessoas. São coisas muito simples: cloro para colocar na água e acabar com a mortalidade por diarréia, vacinação, cuidados básicos de higiene, saneamento. Também é preciso qualificar os professores, para que eles compreendam melhor o mundo externo e tragam as informações de uma maneira melhor a esses jovens; desenvolver ações econômicas, como microcrédito, pequenos empreendimentos, viveiros de mudas, agrofloresta, artesanato, beneficiamento de madeira - fazer móveis com a madeira caída na floresta -, jóias da floresta, óleos essenciais, criação de pequenos animais. Enfim, existem muitas opções econômicas. O problema é que o governo tem que estar presente para levar essas capacidades a essas comunidades. E isso não acontece.

RB- Há mobilização contra o crescimento do cultivo de soja na região?

ES - Existe um movimento enorme. Tem o Grupo de Trabalho Amazônico [composto por mais de 600 ONGs da Amazônia], o grupo da BR 163 [Cuiabá-Santarém], que envolve várias organizações da região, tem o Fórum de Defesa da Amazônia, em Santarém, que abarca vários movimentos sociais. E existe uma grande mobilização de várias entidades nacionais, movimentos locais, de comunidades que estão lutando para barrar esse avanço da soja. E a gente tem o apoio internacional também, das organizações maiores.

RB - Se o processo continuar no mesmo ritmo de hoje, o que vai acontecer com essas comunidades?

ES - Elas vão acabar! Isso não pode continuar. A Amazônia já está sendo destruída. Quando você desmata 100 hectares, na verdade você altera mil hectares da floresta que estão em volta. A taxa de desmatamento hoje não representa o total do que foi desmatado, mas o corte raso que foi feito. A Amazônia já está toda mexida: começa a ter mudanças climáticas, desertificação. O desmatamento leva à desertificação do terreno vizinho, da floresta ao lado. E aí podemos entrar num processo irreversível, o que vai alterar climaticamente o mundo todo também. A situação é muito grave. Já há sinais de alteração climática e desertificação por desmatamento da Amazônia na área de influência do bioma, que vai da Patagônia até Miami. O Brasil é um dos quatro maiores emissores de gás carbônico por queima de floresta, e não porque somos industrializados. E isso é vergonhoso.
(Por Beatriz Camargo, Repórter Brasil, 04/08/2006)

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