Sob um calor amazônico, Dimitrius Arhondonis, 66 anos, sua Santidade Ecumênica Bartolomeu I, o patriarca grego de Constantinopla (hoje, Istambul), chefe religioso de 250 milhões de cristãos ortodoxos, percorreu as trilhas do Parque Nacional do Jaú, no Rio Negro, durante duas horas, interessadíssimo na biodiversidade da floresta. Suou muito, mas não era para menos. Vestia duas batinas, uma branca como roupa íntima, e outra externa, negra - o rasso -, ambas de mangas compridas, fechadas até o pescoço, mais o chapéu de bispo - o kalimafil.
Durante sete dias em julho, Bartolomeu I presidiu, em Manaus, o Simpósio Amazônia Fonte da Vida, organizado pela Igreja Cristã Ortodoxa com o objetivo de ressaltar a importância da Amazônia para o planeta. Além dele, 200 líderes religiosos, cientistas, ambientalistas e jornalistas do mundo inteiro participaram de debates a bordo do navio-hotel Ibero Star, viajando pelo Rio Negro.
Em 1991, quando assumiu a primazia entre os arcebispos ortodoxos, Bartolomeu I abraçou a defesa do ambiente como plataforma, focando a preservação da água, rios e mares. Sua organização já promoveu seminários nos Mares Egeu (1995), Negro (1997), Adriático (2002), Báltico (2003) e no Rio Danúbio (1999). O próximo será no Ártico.
Bartolomeu I e outros defensores da Amazônia, contudo, têm um fantasma a exorcizar a curto prazo: a pavimentação da estrada BR-163, a Cuiabá-Santarém, que vai abrir o Oeste do Pará às migrações e ao agronegócio, ameaça repetir o cenário criado pela BR-364 em Rondônia, na década de 80. A rodovia atraiu 1 milhão de migrantes, multiplicou conflitos sociais e induziu o desmatamento de 30% de Rondônia em dez anos.
Duas décadas depois, o governo mobilizou 23 ministérios para elaborar o Plano BR-163 Sustentável, concluído em junho, e evitar um novo desastre. No momento, as obras de asfaltamento da BR-163 estão avançando no Mato-Grosso, tocadas pelo governo estadual, entre Guarantã do Norte e a divisa do Pará. Os 865 quilômetros no Pará até Santarém custarão R$ 1,1 bilhão. O governo federal quer financiar a obra com uma Parceria Público Privada (PPP) e concluí-la em três anos. O problema - como os estudiosos sabem - é que as fronteiras econômicas são pouco controláveis.
Assim, após uma semana de conferências, os especialistas reunidos no simpósio chegaram a três conclusões: a Amazônia precisa de uma nova política de desenvolvimento baseada na sustentação, o Brasil deve cobrar pelos serviços ambientais prestados pelas suas florestas, e a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica deve elaborar uma política latino-americana para as mudanças climáticas que afetarão o continente.
Junto com os gregos, e assegurando o caráter ecumênico do encontro, vieram o representante do papa Bento XVI, cardeal basco Roger Etchegaray, presidente do Conselho de Justiça e Paz do Vaticano, e os bispos católicos, ortodoxos e protestantes de Antioquia (Síria), Bodo (Noruega), Liverpool (Reino Unido), Buenos Aires, São Paulo e Manaus. Líderes indígenas brasileiros, dirigentes do governo e de ONGs também participaram.
No terceiro dia de simpósio, os participantes voaram de Manaus para Santarém para percorrer de ônibus os 70 quilômetros finais da estrada no Pará. Enfrentaram atoleiros e viram vastas plantações de soja em florestas derrubadas e concentração de silos.
Entre os cientistas que comeram poeira na região o mais famoso era o botânico inglês Sir Ian Ghillean Prance, ex-diretor do Royal Kew Botanic Gardens e ex-diretor do Jardim Botânico de Nova York. Prance vê a tarefa de orientar o desenvolvimento como um vasto desafio. "O plano da BR-163 é um grande avanço para os países com florestas tropicais a proteger e um modelo para outras estradas, mas sou cético sobre os resultados diante da óbvia falta de fiscalização", afirma. "Toda estrada que vi na Amazônia foi invadida, a floresta destruída e a biodiversidade dilapidada. Espero que na BR-163, ao menos a Serra do Cachimbo, rica de espécies endêmicas, seja preservada", acrescenta Prance.
Na verdade, o impacto da soja em Santarém já aconteceu e o Plano BR-163 Sustentável visa controlar sua escalada previsível. Os solos ricos em fósforo da região, que oferecem economia de fertilizantes para soja, arroz, milho e cacau, e o moderno terminal de embarque de grãos construído pela Cargill no porto de águas profundas da cidade - um investimento de US$ 20 milhões, contribuem para atrair novos investidores.
Com o asfaltamento, a estrada abrirá uma rota de exportação para a soja mato-grossense, pelo Rio Amazonas até o Atlântico, mais econômica do que pelo Sul. O plano do governo, além de realizar o zoneamento econômico-ecológico da região, cria unidades de conservação e um distrito florestal para projetos de manejo de madeira; incrementa a reforma agrária; expande programas sociais como o Luz para Todos e o Bolsa-Família e abre postos da Polícia Rodoviária e do Ibama.
Em 2001, a fiscalização era inoperante quando o anúncio da pavimentação da estrada atraiu sojicultores gaúchos, paranaenses e mato-grossenses à região. "Em 2003, o desmatamento ao longo da BR-163 pulou de 110 quilômetros² por ano para 280 quilômetros²", diz Daniel Cohenca, analista do Ibama que estudou a economia da soja em minúcias.
Segundo o especialista, a monocultura mecanizada gera desmatamentos diretos e indiretos, esses pela aquisição de pastagens de fazendeiros empurrados para áreas florestais mais remotas, rapidamente convertidas em pasto, freqüentemente em terras devolutas. A limitação da derrubada de florestas em 20% da área das propriedades, segundo determina o Código Florestal, é pouco obedecida na região.
A monocultura mecanizada desalojou posseiros que praticavam agricultura de subsistência, algumas vezes com violência, e provocou êxodo rural para a periferia de Santarém. Criou poucos empregos no campo, pois a mecanização demanda apenas 1 trabalhador para cada 167 hectares. Na prática, os grandes fazendeiros empurraram os pequenos. "Em 2004, o preço do hectare perto da estrada subiu de R$ 50 para R$ 1,5 mil", diz Cohenca. Com a atual valorização do real e a conseqüente queda do preço da soja, a frente de desmatamento arrefeceu. Mas a terra continua barata em Santarém. No Paraná, um hectare plano custa R$ 19 mil. Com o asfalto e o barateamento do transporte a soja voltará a ser competitiva na região.
A rodovia, entretanto, gera esperança até para suas vítimas. "Essa estrada vai trazer muitos benefícios para os grandes e poucos para nós. Mas pelo menos seguraram o atropelamento", disse no simpósio a agricultora Ivete Bastos, presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Santarém, ameaçada de morte por grileiros. "O Plano BR-163 Sustentável investiu um pouco no município, criou unidades de conservação e distribuiu Bolsas-Família. Mas a injustiça continua. Os que destroem a natureza, queimam casas e mandam matar lideranças, como a irmã Dorothy Stang, são os que mais vão lucrar com a estrada", afirma.
A BR-163 fomenta muitos sonhos. Com 260 mil habitantes, Santarém pode ser a capital do Estado do Tapajós, desmembrado do Pará. "Muita coisa vai mudar", diz Adinor Batista, presidente do Sindicato Rural que reúne fazendeiros, madeireiros e sojicultores. Batista sonha com a instalação de uma empresa esmagadora de soja para industrializar o agronegócio na região. Seu sindicato apóia o plano BR-163 Sustentável, mas quer expandir a soja nos 550 mil hectares de florestas degradadas da região. "O extrativismo não basta para alimentar esse povo. Somos sem-transporte, sem-abastecimento, sem-emprego, sem-indústria e sem-renda. Essa estrada significa progresso para a Amazônia. Mas os ambientalistas não pensam em produção", afirma.
As mudanças de Santarém repercutem em São Paulo e em Londres. Depois de muitos confrontos com a diocese católica, com os trabalhadores rurais e com a Greenpeace - que em maio abordou o porto da Cargill com o navio Artic Sunrise - as companhias de grãos e fertilizantes anunciaram, esta semana, uma moratória de dois anos para a comercialização de soja proveniente de novos desmatamentos na Amazônia.
(Por Ricardo Arnt,
Valor Online, 01/08/2006)