As populações indígenas de todo o País querem que os projetos de infra-estrutura que
tenham impacto direto ou indireto sobre suas terras sejam suspensos até que elas sejam
ouvidas sobre o assunto. Foi este o recado dado por cerca de 60 lideranças, de 34 etnias e
27 organizações indígenas, reunidas na última quinta-feira (27/7), em uma audiência
pública na Procuradoria-geral da República, em Brasília, para discutir o assunto. Elas
pediram também a lista de todas as obras que afetam seus territórios, a regulamentação do
licenciamento ambiental desses projetos e que daqui em diante os povos indígenas sejam
consultados antes desse licenciamento, do início das obras e mesmo da formulação das
políticas públicas para o setor.
As lideranças afirmam que as populações indígenas não vêm sendo consultadas sobre os
projetos de infra-estrutura que afetam seus territórios. A indignação pela omissão do
Estado diante das reivindicações das comunidades e dos efeitos dessas obras sobre suas
terras deu o tom do encontro. A polêmica construção da Pequena Central Hidrelétrica (PCH)
de Paranatinga II, no rio Kuluene, na região das cabeceiras do Xingu, no Mato Grosso; a
pavimentação da rodovia Cuiabá-Santarém (BR-163), que liga o Mato Grosso ao Pará; a
transposição do rio São Francisco; os projetos das hidrelétricas do rio Madeira, no
Amazonas, de Belo Monte, no Pará, e do Estreito, em Tocantins; e a duplicação da rodovia
BR-101, no Rio Grande do Sul, foram destacados pelos índios como as principais
empreendimentos que já tem ou podem vir a ter fortes impactos sobre suas populações.
Segundo eles, muitas obras já estão em andamento e as compensações por seus impactos
continuam sendo uma promessa. O agravamento de doenças incomuns nas aldeias, mortes por
contaminação de agrotóxicos, prostituição, a destruição de mananciais, a diminuição de
peixes e animais de caça em vários pontos do País também foram denunciados como
conseqüências desses projetos e do avanço da monocultura da soja e do eucalipto sobre as
Terras Indígenas.
"Em todo o Mato Grosso, estão previstas 110 PCHs, seis delas nas cabeceiras do Xingu.
Projetos como estes já tem causado a diminuição de peixes em vários lugares porque impedem
a piracema (migração rio acima para desova)", advertiu Pablo Kamaiurá, morador do Parque
Indígena do Xingu. Ele reconheceu que o País precisa de mais eletricidade para atender o
crescimento da economia, mas insistiu que o Estado precisa investir em estudos sobre o
uso de formas alternativas de energia, como a solar. Pablo também contestou os supostos
benefícios dos projetos hidrelétricos previstos pelo governo não só para os índios, mas
também para toda a população brasileira. "Queremos deixar claro que nossa luta é para
impedir a construção de qualquer barragem em toda a região das nascentes do rio Xingu, que
é uma região fundamental tanto para a segurança alimentar quanto do ponto de vista
cultural e histórico para as populações xinguanas". A PCH Paranatinga II está paralisada
por uma decisão judicial que determinou a anulação e a federalização de seu licenciamento
ambiental (saiba mais).
Com exceção de Luiz Felippe Kunz Júnior, diretor de Licenciamento e Qualidade Ambiental do
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama),
estiveram presentes ao evento funcionários sem poder de decisão da Casa Civil, da Fundação
Nacional do Índio (Funai), dos ministérios de Minas e Energia, dos Transportes, da
Integração Nacional, do Meio Ambiente e da Justiça. Vários deles procuraram minimizar ou
relativizar a responsabilidade de seus órgãos diante do problema discutido na audiência.
Alguns alegaram falta de recursos, pessoal e coordenação da política indigenista nacional
para justificar as deficiências do Poder Público para enfrentar a questão. A desatenção
dada ao encontro pelo governo federal foi motivo de protesto da parte das lideranças
indígenas.
"Hoje, percebemos claramente a violação e o desrespeito aos direitos indígenas e humanos.
Várias pessoas e vários órgãos governamentais têm rasgado a Constituição todos os dias",
criticou Jecinaldo Barbosa Cabral Saterê-Mawé, coordenador-geral da Coordenação das
Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Ele lembrou que os licenciamentos
ambientais da maior parte dos projetos são concedidos sem levar em conta os prejuízos às
comunidades indígenas. "Depois das obras já concluídas, somos chamados a participar de
consultas que têm apenas o objetivo de legitimar um fato consumado". Jecinaldo cobrou uma
intervenção firme da Casa Civil e do Ministério Público Federal (MPF) para obrigar o
governo a apresentar a lista e fazer um amplo diagnóstico de todos os empreendimentos que
impactem as Terras Indígenas no País.
Política fragmentada
O subprocurador Eugênio Aragão, integrante da 6ª Câmara do MPF (de Índios e Minorias),
lembrou que a política indigenista nacional está hoje fragmentada em uma série de programas
fragmentados por diversos órgãos e ministérios, o que também impediria uma ação integrada
adequada para o tratamento do problema dos impactos das obras de infra-estrutura. "Temos
de exigir uma política pública unificada para o setor, com um órgão executivo e um
orçamento unificado que possa incluir a opinião dos índios na formulação das ações do
governo na área de infra-estrutura", defendeu. Aragão defendeu que a Funai seja
transformada na secretaria-executiva do futuro Conselho Nacional de Política Indigenista,
cuja criação e estrutura estão sendo discutidas entre o governo e o movimento indígena. O
subprocurador comprometeu-se a centralizar o trabalho de consolidar a lista com todos os
projetos de infra-estrutura que afetem as TIs e cobrar o encaminhamento das reivindicações
dos índios.
"Temos insistido na necessidade de criarmos um fórum adequado para discutir o problema e
concordamos que precisamos aprofundar o reconhecimento dos direitos indígenas, mas devo
lembrar que o País precisa ampliar sua capacidade de geração de energia elétrica",
justificou Márcia Camargo, coordenadora do Núcleo Estratégico de Gestão Socioambiental do
Ministério de Minas e Energia. Ela lembrou também que a legislação para o licenciamento
de obras localizadas fora das TIs, mas que tenham impactos sobre elas, ainda precisa ser
regulamentada e que isso vem dificultando a resolução do problema. "Estamos conversando
com o Ibama e a Funai para apresentar uma proposta sobre o assunto".
A audiência fez parte da programação do Seminário de Articulação Nacional do Movimento
Indígena, promovido pela Coiab e pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), de
25 a 29 de julho, em Brasília, e foi intermediada pela 6ª Câmara do MPF. O evento
pretendeu fazer uma análise sobre o impacto de grandes empreendimentos econômicos nas
Terras Indígenas e discutir as normas e procedimentos vigentes sobre o tema hoje, entre
outros assuntos, como educação e saúde indígenas, articulação do movimento indígena e
controle social da política indigenista brasileira. Uma carta assinada pelos participantes
da audiência foi encaminhada aos representantes do governo expressando a preocupação dos
povos indígenas com os projetos de infra-estrutura, seus impactos sobre as Terras
Indígenas e a ausência de consultas. (leia o texto na íntegra abaixo).
Carta dos povos indígenas ao Governo brasileiro
Nós, representantes de Povos e Organizações Indígenas de distintas regiões do país,
participantes do Seminário de Articulação Nacional do Movimento Indígena; realizado em
Brasília no período de 25 a 29 de julho de 2006, no qual analisamos os empreendimentos
governamentais que impactam Terras Indígenas, vimos por meio desta carta apresentar ao
Governo Brasileiro as seguintes considerações e reivindicações:
Nos preocupa o aumento vertiginoso de propostas de projetos de infra-estrutura,
desenvolvimento e integração regional, principalmente de asfaltamento e construção de
estradas, hidrovias, hidrelétricas e linhas de transmissão que provocam impactos diretos e
indiretos na vida dos Povos Indígenas, causando conflitos sócio-ambientais e maior
pressão sobre os recursos naturais das Terras Indígenas.
Este quadro de impactos é agravado pelo fato de a maioria destes empreendimentos serem
planejados e implementados ignorando a presença dos Povos Indígenas, e sem qualquer
consulta previa e informada a esses Povos e Comunidades Indígenas afetadas, em desrespeito
aos direitos indígenas assegurados na Constituição Federal e na Convenção 169, da
Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Lembramos que a Constituição Federal estabelece que empreendimentos em Terras Indígenas só
poderão ser efetivados se forem de relevante interesse da União, previstos em Lei
Complementar e se tiverem autorização do Congresso Nacional precedidos de audiência pública
com os Povos e comunidades indígenas afetadas.
A Constituição Federal garante aos Povos Indígenas um tratamento diferenciado, portanto
exigimos urgentemente a regulamentação de mecanismos específicos para o licenciamento de
empreendimentos que causem impacto em terras indígenas.
Exigimos ainda que o Governo Federal apresente imediatamente, para a Articulação dos Povos
Indígenas do Brasil (APIB) a relação de todos os empreendimentos de infra-estrutura e
desenvolvimento em planejamento ou implementação que afetam diretamente ou indiretamente
todas as Terras Indígenas do Brasil, bem como os procedimentos que estão sendo adotados
com vistas a assegurar os direitos constitucionais e originários dos Povos Indígenas.
Nós lideranças indígenas não admitiremos a continuidade desses processos de planejamento e
implementação de empreendimentos e estamos unidos e prontos para reagir na defesa de
nossos direitos, nossa cultura e nossos Territórios.
Brasília, 27 de julho de 2006.
(Por Oswaldo Braga de Souza, do Instituto SocioAmbiental, disponível em
Ecoagência, 31/07/2006)