O que é mais lógico, fácil e provavelmente mais indicado em todos os sentidos, mudar o
arcabouço legislativo municipal que rege a ocupação urbana ou alijar um mega-projeto
arquitetônico que além de um impacto ambiental insuportável, provocaria a grave
desvalorização de milhares de imóveis da região pretendida e, devido sua grandeza exagerada,
a inevitável privatização do por-do-sol sobre o Guaíba numa grande área ? Suscito a
pergunta a propósito do projeto urbanístico denominado Pontal do Estaleiro e discorro
sobre o tema na primeira pessoa, em forma de artigo, primeiro porque me é mais cômodo e,
por segundo, porque me sinto credenciado para tanto. É que fui aplaudido por minha
intervenção na reunião expositiva do projeto, realizada na noite de quarta –feira (26/07,
no Clube Jangadeiros, quando perguntei qual o motivo para construir espigões à beira do
Guaíba?
Não tive maior afinidade com o Estaleiro Só, mas como velho portoalegrense me orgulhava da
sua existência, porque se constituía numa ligação produtiva da cidade, entre a comunidade
e o lago. Além disso, nele trabalhou o engenheiro Amaury Braga, que foi meu contemporâneo
no Grupo Escolar Pedro I e nas peladas pelas calçadas da rua Santiago Dantas, na década
de 50 uma das últimas do bairro Glória. Ao lembrar desta época, recordo que meu falecido
pai, o enfermeiro José Becker Filho, que trabalhou 25 anos no HPS, teve que recuar um
mínimo de quatro metros do muro fronteiro para construir a casa na qual me criei, em
obediência ao Plano Diretor, para um provável e futuro alargamento da rua. O qual, eu, já
envelhecido, não vislumbro ver ocorrer ainda em vida. Aliás, a quadra da rua ganhou asfalto
sobre os paralelepípedos, para a passagem de uma linha de ônibus e caminhões com
alimentos, mas não ganhou até hoje uma placa sequer de sinalização de trânsito.
Mas, o estaleiro faliu, em mais um exemplo trágico desta política ecologicamente suicida
implantada no país de prioridade e monopólio do rodoviarismo, em detrimento do transporte
ferroviário e náutico. E o terreno que ocupava, de 6,2 hectares, por várias vezes foi
oferecido em leilão judicial ao longo dos últimos anos. Até que recentemente, uma empresa
paranaense arrematou a área para, de acordo com o Plano Diretor, construir ali equipamentos
de lazer.
Para surpresa dos amantes da paisagem da orla, surge uma proposta de projeto arquitetônico
com destinação de pequena faixa para lazer e ciclovia e uma dezena de enormes edifícios
para shopping, hotel, restaurantes, apartamentos, enfim:
- Um elefante branco, definiu meu filho, Márcio, sócio do Jangadeiros e que me convidou
para a reunião de quinta-feira.
- Um elefante só, não, uma manada, pretendi corrigí-lo...
Acontece que o autor do mega-projeto, arq. Jorge Debiagi reconheceu que ele fatalmente
provocará a desvalorização de milhares de moradias da região, basicamente bairro Cristal,
por criar uma enorme muralha entre toda aquela área residencial e o Guaíba. Ele também
reconheceu que a concepção do projeto assim como está, exigirá modificações na atual
legislação de ocupação urbana, tanto na questão da altura elevada dos prédios como,
principalmente, na questão das centenas de apartamentos previstos, pois o Plano Diretor
não permite a construção de moradia junto à orla. Ele alegou que a introdução de moradias
se justificaria para dar segurança à área total. O que não se sustenta, até pelo exemplo
do Centro de Porto Alegre, onde moram pelo menos 30 mil famílias que não têm outra
alternativa e se constitui, segundo todos os levantamentos da Polícia, em área de alto
risco. Sobretudo à noite, quando não há policiamento e só um dos serviços públicos
municipais funciona, o do recolhimento de lixo.
O único ganho aparente que a execução do projeto provocaria seria no âmbito
econômico-social, diante dos empregos que geraria para sua construção e, posteriormente,
pelas atividades de prestação de serviço que porventura viessem a ser oferecidos. O
arquiteto chegou a usar o exemplo da uma padaria, que proporcionaria a oferta de pão
quentinho para os freqüentadores do lugar. Como se a Zona Sul carecesse deste serviço.
Também foi citada a marina integrante do projeto como fator propulsor do Turismo Náutico.
Ora, eu lembraria que a administração municipal anterior, ao invés de incentivar os três
clube náuticos existentes na Zona Sul – todos com exemplar infra-estrutura e que não
escondem as dificuldades de manutenção, devido o enxugamento do quadro social ativo e
pagante – optou por construir uma nova marina na extremidade sul do porto de cunho social,
para fomentar o esporte náutico entre jovens carentes. Como não criou uma alternativa
financeira para uma atividade de custos elevadíssimos, temos hoje uma marina nova e
abandonada, sem contar na frustração daqueles que poderiam ter sido beneficiados com bolsas
de cursos de navegação nas escolas dos clubes existentes, conforme lembrou meu filho,
Márcio, que já atuou na Escola Barra Limpa, do Clube Jangadeiros.
Aliás, em nenhum momento a gente teve qualquer informação sobre uma pesquisa de mercado
quanto à necessidade dos serviços previstos e sobre uma garantia do resultado do
empreendimento. Como ele vincula a moradia aos serviços, quem garante que só sejam
construídos e vendidos os apartamentos ?
Mas, a questão fundamental diz respeito ao meio ambiente. Questionado sobre os dejetos que
o empreendimento acrescentaria ao já problemático saneamento na área, o arquiteto garantiu
que um empreendimento desta ordem tem resposta para todos os problemas. Mas, não respondeu
satisfatoriamente a uma questão levantada pela respresentante da Agapan na reunião
expositiva. Se o mega-projeto não abriria um precedente para tornar a Orla do Guaíba uma
nova Camboriú ? Talvez não respondesse, também, a uma provocação que meu filho me sugeriu:
"quantos abaixo-assinados serão necessários para a desistência da construção deste
elefante-branco ?" Provocação que me levou à reflexão de que, enquanto os empreendedores
e seus tecnocratas vão buscar mudanças na legislação para erguer uma torre dentro de uma
caixinha, os moradores da Zona Sul, os preservacionistas, os amantes da cidade e
admiradores do por-do-sol portoalegrense precisam agir, se unir e se mobilizar. Sonhei até
com um nome para a campanha, o qual submeto e ofereço aos companheiros de luta pela
qualidade de vida na cidade: Movimento Guaíba Livre.
(Por Sérgio Becker,
Ecoagência, 29/07/2006)