Por Lúcio Flávio Pinto *
Eles multiplicam seu patrimônio à custa de uma região indefesa e mal-informada sobre sua própria riqueza. São os megalatifundiários, alguns dos quais se dizem donos de autênticos países, que poderiam comandar pessoalmente, se existissem. Mas são "fantasmas", manobrados por pessoas inescrupulosas, que se aproveitam de um Estado inerte.Israel Marques Cajaí era um ilustre desconhecido no país até comunicar à justiça eleitoral de São Paulo o valor do seu patrimônio como candidato a deputado federal pelo PTB: a bagatela de 4,3 bilhões de reais. Subitamente, alçou o topo dos homens mais ricos do Brasil e conquistou o primeiro lugar entre os políticos mais bafejados pela fortuna a disputar a eleição deste ano.
Além de bens em Estados do sul, Cajaí declarou como sua uma fazenda de 87 mil hectares no Amapá. Seu valor: um bilhão de reais. Dá a estratosférica média de R$ 11,5 mil por hectare. Se pudesse comprar do Estado do Pará um lote desse mesmo tamanho em Altamira, por exemplo, ele não gastaria mais do que quatro milhões de reais, conforme a tabela de preços da Covate (a Comissão de Avaliação de Terras do Estado). Já uma gleba máxima de alienação pelo poder público sem consulta ao Senado, de 2,5 mil hectares, sairia por apenas R$ 115 mil.
Por que, então, atingiu um preço tão alto o imóvel de Cajaí? Singelamente, o candidato petebista (partido fundado por Getúlio Vargas para representar o trabalhador desvalido) admitiu que o imóvel, como os demais de sua relação, foi comprado por uma quantia incomparavelmente menor, mesmo se atualizada pelos melhores índices possíveis.
Chegou a tanto porque a recalculou levando em consideração o potencial dos seus recursos naturais, incluindo a biodiversidade. A cobertura vegetal, quando avaliada por tabela baseada nos indicadores do Banco Mundial, que consideram fatores como a absorção de gás carbônico (o "seqüestro de carbono"), atinge "valores estratosféricos", disse o político, que também se identifica como ambientalista e possui um escritório de arquitetura em São Paulo.
Modesto, não aceitou o título de "o candidato mais rico do Brasil". Mas não deixou de se creditar o mérito de ser aquele profissional "que tem coragem de declarar isto com toda a clareza, e que é o verdadeiro".
De fato, algumas pessoas ou corporações mais perspicazes, inteligentes, sagazes, audaciosas ou inescrupulosas deram ou estão dando o "pulo do gato" sobre o patrimônio natural da Amazônia. Passaram por cima de grãos, fibras, madeira sólida ou minérios e começaram a trabalhar com cotas de seqüestro de carbono ou proteção de áreas privatizadas, como as RPPNs (Reservas Particulares de Proteção Natural). Ao discurso preservacionista, de manutenção da jungle selvagem, juntaram o avanço sobre um mercado internacional que já reserva vários bilhões de dólares para esse tipo de destinação.
A fantasia do candidato paulista a deputado federal consiste em abstrair o investimento necessário para tornar consistente a idéia, desde a infraestrutura de suporte até a geração de conhecimento científico e tecnológico adequado. Também abstrai a condição legal dessas áreas, que são transferidas do domínio público para o particular por um passe de mágica.
Esse movimento parece ser tão surpreendente que deixa estáticas e omissas as autoridades incumbidas de verificar se realmente a transferência foi legal. Ou, como invariavelmente acontece, tudo não passa de uma grilagem, rústica ou engenhosamente concebida e perpetrada. Nesse terreno, fértil às piratarias, o poder público está sempre sujeito ao choque de surpresas desagradáveis. E a sociedade a um constante processo de erosão, que só a empobrece, comprometendo as possibilidades de um futuro mais favorável.
Se por uma "reavaliação acurada", a partir de instrumentos de mensuração muito mais sensíveis, extraídos das planilhas do Banco Mundial, o político paulista tornou seu um patrimônio fundiário do tamanho de R$ 1 bilhão no Amapá, o igualmente desconhecido Jovelino Nunes Batista se apropriou de nove milhões de hectares por uma simples alquimia cartorária em São Félix do Xingu. Nesse caso, se usasse a trena criada pelo arquiteto Cajaí para avaliar seu mundo particular, Jovelino podia colocar na sua declaração patrimonial um valor superior a 100 bilhões de reais. Ou seja: deixaria Bill Gates para trás, comendo chips.
É uma hipótese maluca e absurda, mas não intangível. Jovelino já repassou para centenas de compradores lotes desse imenso latifúndio (a hipérbole é necessária), sem se importar com o "detalhe" de que a área excede, em mais de 500 mil hectares (um "troco" fundiário para esses piratas), o tamanho do município que a abriga. São Félix do Xingu possui "apenas" 8,5 milhões (menos da metade da extensão de Altamira, o maior município do Pará e quiçá do mundo, com 16 milhões de hectares).
Tudo indica que Jovelino pertence à galeria de celebridades inaugurada por Carlos Medeiros, em cujo nome foi montada grilagem de 12 milhões de hectares no Pará, em nove municípios paraenses. Com outro detalhe "irrelevante": Medeiros não existe. Sua identidade foi montada pela quadrilha de grileiros que o maneja como estandarte. Dois deles (os líderes) já morreram - e, por incrível que possa parecer, de morte natural, apesar de circunstâncias em desfavor dessa crença no caso de um deles, Marinho Gomes de Figueiredo (cujo corpo foi encontrado no quarto de um hotel, ao lado de uma pasta com conteúdo documental explosivo, envolvendo algumas figuras supostamente notáveis, conforme as classificaria certo colunista social da terra).
Quando assumiu há quase dois anos a presidência do Tribunal de Justiça do Estado, criando expectativas favoráveis, um dos primeiros atos do desembargador Milton Nobre foi determinar a tabeliães, escrivães e magistrados que não despachassem matérias de interesse do fictício Carlos Medeiros sem comunicá-lo antes. Ao que parece, porém, a medida foi inócua, como outras, porque os advogados que usam essa ferramenta (na verdade, uma gazua) para abrir os registros imobiliários aos seus desejos não foram intimados a apresentar o cliente ilustre e invisível, sob pena da severa punição cabível ao caso. Medeiros deve continuar levitando por aí, sempre se manifestando através dos seus "procuradores".
O golpe para materializar hectares aos milhares ou milhões é simples. Por algum impedimento ótico mais forte, os oficiais de registro imobiliário não se apercebem da quantidade de zeros que inscrevem nos assentamentos, descritos com uma simplicidade inacreditável, mesmo quando abrangem uma enormidade de terras, como no caso da "propriedade" de Jovelino, dentro da qual couberam 18 aldeias indígenas com seus seis mil habitantes.
Maria do Socorro Souza, muito famosa tabeliã do cartório extra-judicial de São Félix, foi afastada do cargo e submetida a inquérito, por ato da corregedora-geral de justiça do interior em exercício, desembargadora Maria Helena Ferreira, a partir de uma correição realizada pelo juiz José Torquato de Alencar, que se declarou escandalizado com as fraudes praticadas. A desembargadora nomeou logo um interventor para responder pelo cartório, que se transformara numa autêntica usina de títulos de terras.
Já no mês passado a titular da Corregedoria, desembargadora Osmarina Nery, baixou provimento determinando o bloqueio de todas as áreas rurais registradas acima do limite constitucional, de 2,5 mil hectares por imóvel, para tentar enfrentar diretamente essa grave questão fundiária no Pará.
A Corregedoria se converteu numa ponta de lança contra a apropriação indébita do patrimônio fundiário do Estado, mas suas iniciativas parecem não estar se estendendo ao exercício da tutela jurisdicional estatal. Magistrados acabam decidindo contra essa orientação e deixando de dar-lhe conseqüência, ignorando os procedimentos administrativos de seus pares. É o que pode explicar a falta de resultados concretos ou definitivos na luta contra uma das maiores grilagens de todos os tempos, praticada pela Construtora C. R. Almeida no Xingu, com pretensão sobre uma área entre 5 milhões e 7 milhões de hectares.
Depois de 12 anos de investidas do Iterpa (Instituto de Terras do Pará), de providências da Corregedoria e de atos da justiça federal, nada impede que o empresário Cecílio do Rego Almeida considere esse universo como seu e o valorize internacionalmente usando a régua e o compasso do seu colega de latifúndio. Com a diferença de que Cecílio, contrariamente a Cajaí, não é candidato na próxima eleição. O que o desobriga de declarar um patrimônio particular de bilhões e bilhões de reais.
O almoxarifado de riquezas da Amazônia, entretanto, continua exposto a piratarias de todos os tipos, algumas praticadas sem qualquer disfarce (mas também com pouco alcance) e outras que se protegem com a aparência de legalidade e ainda se valem da justiça para punir os que o desmascaram.
Essa sofisticação, porém, não exime os piratas de recorrer à criminalidade. Os indícios de tal cumplicidade estão periodicamente aparecendo através de quadrilhas que roubam as antigas ATPFs (Autorizações para Transporte de Produto Florestal), como a Polícia Federal descobriu novamente em Marabá, na quinzena passada, com a suspeita de participação ou conivência de funcionários do próprio Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Ou já manipulando o novo documento, criado para substituir as antigas e já desmoralizadas ATPFs, como foi constatado em Mato Grosso.
Numa região exposta ao saque dos bandidos, como a Amazônia, o despreparo do poder público para estar à altura dos seus desafios e das investidas dos piratas e seus aliados é um estímulo aos ciclos constantes de malversação e destruição do bem público. E nada indica que essa desembalada corrida vá diminuir.
No último fim de semana, por exemplo, o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, de São José dos Campos/SP) registrou 230 focos de calor detectados por satélites. O Pará, que na semana anterior fora o segundo colocado, assumiu a hegemonia das queimadas, com 49 pontos de fogo. Mato Grosso, que vinha liderando desde o início da temporada de verão, acumulando 4 mil focos de calor no ano e abrigando 83 focos uma semana antes, ficou com 43 no último weekend de devastação.
As queimadas estão proibidas no Estado vizinho desde o dia 15 e assim ficarão até 15 de outubro, quando recomeça a chover. Mas quem se preocupa com essas regras inúteis? O verão está apenas começando e no ano passado Mato Grosso registrou mais de 32 mil queimadas em seu território, que geralmente serve também de catapulta para a fronteira amazônica ao norte (é assim que a soja está se expandindo para o Pará).
Afinal, os Jovelinos, Cecílios e Medeiros precisam aumentar seus patrimônios, mesmo que à nossa custa, nós, que permanecemos de braços cruzados, embasbacados, ou não sabemos como transformar em algo para valer nosso excesso de boa intenção e de retórica fanfarrona.
E assim caminha a Amazônia: pelo andar da carruagem, para o fim.
* Lúcio Flávio Pinto é jornalista
(Adital, 31/07/2006)
http://www.adital.org.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=23742