Imagine uma corrida de Fórmula 1 em uma pista esburacada. É o
equivalente a isso que vai acontecer quando velejadores forem disputar
provas dos Jogos Pan-Americanos de 2007 na Baía de Guanabara, no Rio de
Janeiro. Os atletas vão deparar com detritos que emporcalham um dos mais
belos cartões-postais da cidade, como sacos plásticos, pedaços de
isopor, lascas de madeira e outras formas de lixo flutuante - o que
prejudica o desempenho das regatas, tornando-as mais lentas. Resultado
de agressões ambientais diárias sofridas pela baía, que recebe cerca de
20.000 litros de esgoto por segundo, a sujeira no caminho dos
velejadores mostra que o meio ambiente virou um problema a mais para a
já conturbada organização do Pan. De quebra, expõe o fracasso do
Programa de Despoluição da Baía de Guanabara, o mais ambicioso projeto
ambiental que já se tentou no estado. E põe o Rio na singular situação
de cidade litorânea admirada no mundo inteiro mas com restrições à
prática de esportes náuticos.
Mais do que um obstáculo para os atletas, o descaso com o meio ambiente
atrapalha planos para vôos mais ousados do Rio de Janeiro no mundo
esportivo, como o sonho de sediar as Olimpíadas. Nas duas vezes em que a
cidade se candidatou a sede - para os Jogos de 2004 e de 2008 -,
técnicos do Comitê Olímpico Internacional (COI) apontaram a poluição da
Baía de Guanabara, ao lado da criminalidade urbana, como o principal
empecilho à realização das Olimpíadas no Rio. "Ao contrário do que se
pensa, não são os problemas de infra-estrutura que nos derrotam, mas o
meio ambiente e a segurança, considerados pelo COI os dois pontos fracos
da cidade", afirma Axel Grael, irmão dos velejadores Torben e Lars
Grael, que acompanhou o planejamento das duas candidaturas fracassadas
do Rio.
Ele conhece bem quanto o descaso com a natureza prejudica os esportes
náuticos na cidade. Junto com os irmãos, Axel dirige um instituto de
formação de velejadores, com treinamentos diários na Baía de Guanabara.
Acostumados a conviver com a sujeira, os alunos até desenvolveram
macetes para driblar o lixo. Um deles é recuar o barco um pouco antes da
largada para se livrar de sacos plásticos presos à quilha. Outro é
evitar os corredores de detritos que se formam em pontos específicos da
baía devido à ação do vento e ao movimento de marés. Com dribles,
macetes e jeitinho é que não se fará do Rio uma candidata viável a
sediar as Olimpíadas.
As agruras enfrentadas pelos velejadores nas águas da Guanabara seriam
bem menores se os resultados do programa de despoluição não fossem tão
pífios. Iniciado há doze anos, o plano - um megaprojeto de saneamento
voltado para a construção de estações de tratamento de esgoto e a
instalação de redes de água potável - previa investimentos de cerca de
800 milhões de dólares, com recursos do Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID) e do Banco Japonês para Cooperação Internacional
(JBIC), além de contrapartida do governo estadual. Gastou-se mais do que
isso (1 bilhão de dólares), e o resultado até agora é bem abaixo do
esperado: a previsão era tratar pelo menos 58% do esgoto lançado na
baía, mas esse índice hoje não ultrapassa 25%. Para piorar, nem a
primeira fase do programa foi concluída. O atraso é de sete anos. Depois
de remarcada diversas vezes, a data estipulada para a conclusão dos
trabalhos é bem sugestiva para quem acredita em Papai Noel: 25 de
dezembro. O geógrafo Elmo Amador, coordenador da organização
não-governamental Baía Viva, calcula que serão necessários mais de vinte
anos para a baía ser despoluída - se não houver interrupções no
programa, claro.
A Baía de Guanabara não é o único local de provas onde problemas
ambientais criaram transtornos para o Pan. Por causa da poluição nas
lagoas da Barra da Tijuca, a organização do evento acabou optando por
transferir as provas de esqui aquático para a Lagoa Rodrigo de Freitas,
que ainda terá de passar por uma dragagem para abrigar competições. Não
é só o descaso com o meio ambiente que pode tirar o brilho do Pan.
Entraves burocráticos, questionamentos judiciais e intermináveis
discussões entre os órgãos governamentais envolvidos na organização
resultaram num colossal atraso no cronograma de obras. A menos de um ano
do início dos jogos, praticamente todas as arenas esportivas que serão
usadas no Pan estão com as obras atrasadas.
O Estádio João Havelange, por exemplo, só ficará pronto em fevereiro de
2007, quase dois anos depois do previsto. Situação ainda mais crítica é
a do Complexo do Autódromo de Jacarepaguá, parque olímpico que deveria
ser erguido entre fevereiro de 2003 e janeiro de 2005. As obras só
começaram em março deste ano, e para que fiquem prontas a tempo foram
escalados três turnos de operários. Isso sem falar em projetos que nunca
passaram de promessa, como a criação de uma linha de trem, interligada
ao metrô, para transportar passageiros do Aeroporto Internacional do Rio
para a Barra da Tijuca, bairro que vai abrigar a maioria das
competições. Com tanta coisa ainda por fazer, resta às autoridades
envolvidas no projeto dedicar-se a uma modalidade na qual o Brasil é
especialista: corrida contra o tempo.
Mar de sujeira
Em doze anos, o Programa de Despoluição da Baía de Guanabara consumiu
mais de 1 bilhão de dólares em investimentos. Nem a primeira fase do
programa, que deveria ter sido concluída há sete anos, ficou pronta. O
resultado é que a baía recebe, diariamente:
- Resíduos das 12 000 toneladas de lixo depositadas em aterros
sanitários à sua volta
- 465 toneladas de esgoto produzidas pelos dezesseis municípios que a
circundam
- Cerca de 200 toneladas de lixo não coletado, que escoa por valas, rios
e canais poluídos
- 3 toneladas de óleo
- 300 quilos de metais pesados
Fonte: Elmo Amador
Caos olímpico
Problemas de todo tipo cercam os preparativos para o Pan-2007. Falta
menos de um ano para a abertura dos jogos
Cronograma
A obra mais adiantada, a do Estádio João Havelange, deveria ter sido
concluída no segundo trimestre de 2005, mas só estará liberada em
fevereiro do ano que vem
Testes
Teme-se que não haja tempo hábil para realizar eventos-testes antes do
Pan para corrigir eventuais falhas em equipamentos e instalações
Desencontros
Município, estado e União não se entendem sobre as atribuições de cada
um no projeto, o que atrapalha a liberação de recursos para a execução
das obras.
(Por Ronaldo Soares,
Veja, 02/08/2006)