Entrevista - Moratória para a soja amazônica: “É uma oportunidade histórica que não podemos perder”
2006-07-31
No dia 24 de julho, as indústrias de grãos brasileiras decretaram uma moratória de dois anos para a soja produzida no bioma amazônico. Depois de muita pressão de redes de supermercados e de fast-foods européias e do Greenpeace, as empresas exportadoras da soja brasileira foram obrigadas a sentar à mesa de negociações. Contribuiu fortemente para intensificar as pressões a publicação do relatório do Greenpeace intitulado “Comendo a Amazônia”, que denuncia a crise ambiental na maior floresta do planeta. O documento ajudou a mobilizar a opinião pública internacional e, sobretudo, os consumidores das fast-foods.
Em pouco tempo, a rede McDonald´s recebeu mais de 30 mil e-mails de consumidores exigindo que a empresa parasse de comprar qualquer produto derivado da soja amazônica. O relatório mostrou a ligação direta entre o desmatamento da floresta tropical e a produção de ração de frango para alimentar as aves que serviriam de matéria prima para os sanduíches. A opção do McDonald´s por pressionar a exportadora Cargill para que esta não comprasse mais a soja amazônica logo foi seguida por outras redes da Europa.
A decisão histórica está sendo celebrada por consumidores e entidades civis do mundo todo. O coordenador da campanha da Amazônia do Greenpeace, Paulo Adário, diz nesta entrevista que acredita ter sido uma grande vitória, mas admite temer um grande fracasso. “Agora é a pior parte, porque tem menos visibilidade e é a mais importante”, pondera. A partir de agora, os produtores de soja na Amazônia terão de regularizar as suas terras e respeitar o Código Florestal Brasileiro, que determina a preservação de 80% de cada propriedade na floresta.
Um grupo de trabalho foi criado para coordenar o processo daqui para a frente. Segundo Adário, o papel das ONGs passa a ser essencial nesse momento. “O trabalho mais complicado começa agora. É fundamental que outras ONGs que tenham experiência na implementação de políticas públicas entrem em cena”, diz. Segundo ele, toda a ajuda será necessária para negociar com cada fazendeiro e fazer com que obtenham os títulos das terras e colaborem na produção dos mapas das suas propriedades.
Rets – A indústria de grãos decretou moratória no dia 24 de julho, representando uma grande vitória na busca pela governança na Amazônia. Como foi o caminho até essa decisão?
Paulo Adário - Há cerca de dois anos decidimos como prioridade da organização a luta contra o desmatamento. Estávamos em 2003 e houve nessa época um aumento alarmante do desmatamento. Depois disso, identificamos a soja como um importante fator para isso.
Rets – Por que a soja passou a ser um fator impulsionador do desmatamento?
Paulo Adário - O desmatamento sempre esteve ligado ao avanço da pecuária na floresta. A soja é uma grande commodity global e passou a ter um peso muito grande no Brasil, ocupando áreas que antes eram da pecuária. Cada vez avança mais para dentro da floresta, passando a ter um impacto direto no desmatamento.
Sabemos que em Santarém, entre 2002 e 2004, o desmatamento pulou de 15 mil hectares por ano para 28 mil ha por causa da soja. Evidentemente em Santarém o desmatamento foi potencializado pela Cargill e esse aumento pode não ter sido acompanhado em outros lugares. Mas dá para ter uma idéia geral. Em Mato Grosso, sabemos que a situação é alarmante.
A mídia e a sociedade encararam esse boom como a salvação, como se finalmente tivéssemos achado o nosso nicho de mercado. Mas isso é conseqüência de uma antiga visão de que cada vez mais temos de plantar comomodities agrícolas para exportação. Isso acarretou numa legitimação ideológica do avanço pela floresta.
Rets - Como funciona a indústria da soja hoje no país?
Paulo Adário – Hoje, 60% da exportação da soja está nas mãos de três grandes empresas: ADM, Cargill e Bunge. São multinacionais poderosas. A Cargill, por exemplo, é a maior empresa privada do mundo. Essas três empresas passaram a ter papel importante no financiamento do agronegócio. Elas têm participação em todas as etapas, desde o desmatamento, passando por concessão de crédito para comprar adubo e máquinas e pela venda de sementes, chegando até a compra da produção. Há uma relação de total dependência entre o produtor e essas empresas.
A maior parte da produção de soja é feita em latifúndios. Há poucos pequenos produtores envolvidos no negócio porque é um cultivo ligado à alta tecnologia e à produção em larga escala. No Mato Grosso, por exemplo, mais de 70% da produção está nas mãos de grandes produtores.
Essa indústria tida como moderna gera divisas e brandes benefícios para as trades, mas gera muito pouco emprego. Maior parte dos empregos estão nas pequenas propriedades. Cerca de 45% das propriedades ocupadas com o cultivo de grãos no Brasil estão ocupadas pela soja. Mas a soja gera apenas 5,5% dos empregos no setor. E desses, 90% estão em propriedades familiares.
Rets – Então é uma produção que traz poucos benefícios à população?
Paulo Adário - A produção da soja tem pouco benefício social, promove uma ocupação perversa do solo, adicionando componentes de conflito social, pois áreas que não eram tomadas pela soja passam a ser ocupadas. Isso gera disputas e violência. Há também a ocupação de terras indígenas e a cooptação desses grupos.
Rets - Por que então é um setor tão bem visto pelos brasileiros?
Paulo Adário - Esse setor, que é celebrado pela mídia brasileira como exemplo de modernidade, tem raízes no que há de mais retrógrado no Brasil: trabalho escravo, grilagem, desrespeito ao meio ambiente. A produção de soja se alimenta do passado. O Brasil é competitivo no mercado global justamente porque não respeita a lei e se utiliza de mecanismos perversos.
Rets - Que fatores influenciaram o crescimento da indústria da soja no Brasil?
Paulo Adário - O boom da soja se deve a três fatores principais: a vaca louca, o Brasil ser um dos poucos países com grande extensão de terra, além de água e sol em abundância e ainda tem a fronteira agrícola em expansão através da derrubada da floresta. Os EUA por exemplo só conseguem aumentar a produção através do aumento da produtividade, porque não tem mais como expandir as plantações.
A soja começa no Brasil nos anos 70 e 80 e, em 2000, já invade a Amazônia. A Embrapa teve papel fundamental nisso através da pesquisa de novas espécies cultiváveis nos nossos biomas, como o cerrado. A partir daí o país se capitalizou para isso.
Temos mão-de-obra barata, quando não escrava, ausência do Estado para fazer cumprir a lei e um modelo econômico absurdo que agrava as injustiças sociais, além do desrespeito ambiental. Tudo isso junto nos torna competitivos.
Rets – Como foi o trabalho de pesquisa para a confecção do relatório “Comendo a Amazônia”?
Paulo Adário - Pesquisamos a cadeia do grão até a prateleira do supermercado na Europa. A maior parte vai para a ração do gado e do frango. Exportamos, na verdade, proteína sob a forma de farelo de soja. Desde a doença da vaca louca, os rebanhos da Europa passaram a se alimentar de proteína vegetal, e não mais de animal.
Procuramos mostrar toda a cadeia produtiva da soja. Procuramos onde tinha trabalho escravo, desmatamento ilegal, desrespeitos à lei ligados às grandes exportadoras. Aí fomos à Europa ver pra onde ia a soja. Até que chegamos aos fast-foods. Mostramos para as pessoas que quando estão comendo um sanduíche estão comendo a Amazônia, na verdade. No óleo, no biscoito, na carne bovina e principalmente na carne de frango.
Essa complexidade da cadeia produtiva precisava ser mostrada ao consumidor. O McDonald´s tem um compromisso de não comprar carne produzida em floresta tropical. Entretanto comprava soja produzida lá. Mas eles entenderam a responsabilidade que tinham e rapidamente nos chamaram para conversar e pressionaram a Cargill dizendo que não queriam ter envolvimento nessa história. Outras redes de supermercados e fast-foods também começaram a entrar na história e a fazer pressão.
Rets – Que outras ações vocês promoveram?
Paulo Adário - Enquanto isso por aqui fazíamos ações na floresta, colocamos faixa na floresta devastada, fomos ao porto protestar contra a Cargill, fomos presos. Expusemos tudo, a responsabilidade das empresas exportadoras, fizemos ações e sentamos para conversar. Propusemos uma série de medidas para dar uma alternativa aos produtores que já estavam na floresta.
Rets – Qual foi a proposta do Greenpeace para as exportadoras?
Paulo Adário - Exigimos uma moratória até que se tivesse uma governança instalada na Amazônia. Mas as trades não queriam se comprometer com uma moratória não datada e aceitaram uma de dois anos.
Rets – O que é preciso fazer agora?
Paulo Adário – Para alcançar essa governabilidade, há questões centrais. Hoje, as propriedades que estão dentro do bioma amazônico não podem mais desmatar. Precisamos de mapas mais finos para delimitar exatamente essa fronteira. Há áreas dentro de fazendas que podem e outras que não podem ser desmatadas.
Os fazendeiros têm de ter o título da terra e têm de respeitar o Código Florestal Brasileiro, que permite desmatar até 20% da propriedade; nas áreas protegidas não se pode nem tocar. Precisamos ter mapas das propriedades com indicações das áreas de preservação permanentes, como nascentes e encostas, áreas de uso e de reserva legal.
Muitos fazendeiros não têm nem o título porque a propriedade é grilada. Esse conjunto de problemas torna a fase de implementação do acordo crucial. Colocar as empresas, super competitivas entre si, à mesa para conversar foi um parto. Mas o trabalho mais complicado começa agora. É fundamental que outras ONGs que tenham experiência na implementação de políticas públicas entrem em cena. Precisamos negociar com todos os fazendeiros para que obtenham os títulos e produzam os mapas. Para isso propusemos a criação de um grupo de trabalho formado pela sociedade, exportadores, produtores, ONGs e governo.
Rets – Como tem sido a participação do governo nesse processo?
Paulo Adário - O governo vem acompanhando de longe até agora. Estávamos num jogo complicado com as trades em que nenhuma informação podia vazar, pois são extremamente competitivas. Por isso, relutamos muito em trazer o governo para a discussão. Achamos melhor costurar bem a história antes para depois sentar com o governo.
Rets – Quais são as suas expectativas agora?
Paulo Adário - Agora é a pior parte porque tem menos visibilidade e é a mais importante. É uma grande vitória que pode se tornar uma grande derrota se nada for feito em dois anos. É uma oportunidade histórica que não podemos perder.
Hoje há 1,15 milhão de hectares de soja dentro do bioma amazônico. O que equivale a 2 milhões de campos de futebol. O bioma todo tem 350 milhões de hectares. Parece que é uma pequena destruição se pensarmos no total, mas isso nos mostra que temos de agir agora para não deixarmos que aconteça o mesmo que houve no Cerrado.
Essa é a hora, porque o desmatamento da Amazônia provoca uma grande comoção mundial e as empresas têm de pensar na sua imagem. O investimento na Amazônia ainda não é tão grande se compararmos ao total de investimentos no país. Não vai valer a pena para as empresas colocar sua imagem em jogo.
(Por Luísa Gockel, RITS - Rede de Informações para o Terceiro Setor, 28/07/2006)
http://www.rits.org.br/