Um dos maiores mistérios da evolução humana é a domesticação dos
animais. A teoria mais aceita afirma que o homem começou a dominar e a
confinar porcos, ovelhas, cavalos e bois há aproximadamente 10 000 anos.
Num processo que durou milhares de anos, o ser humano selecionou os
animais segundo seu tamanho e sua capacidade de reprodução, visando
principalmente à sua alimentação. Experiências realizadas na Rússia, que
só recentemente começaram a ser conhecidas no Ocidente, mostram que esse
capítulo da história pode ter sido bem diferente.
Baseados em dois
longos estudos com colônias de ratos e de raposas, cientistas russos
chegaram à conclusão de que talvez o homem não tenha se esforçado tanto
para adestrar os animais. Tudo o que precisou fazer foi conviver com os
que toleravam sua presença. Desse convívio harmonioso, novas raças
surgiram e deram origem aos animais que conhecemos hoje.
A tese de que o homem não comandou o processo de domesticação de animais
foi testada pelo geneticista russo Dmitry Belyaev, do Instituto de
Citologia e Genética de Novosibirsk, hoje um complexo de prédios rodeado
por uma floresta de pinheiros na Sibéria. Belyaev e seu irmão, também
geneticista, basearam suas pesquisas nas teorias do austríaco Gregor
Mendel, o monge que primeiro desvendou as regras da hereditariedade.
Considerado o pai da genética moderna, Mendel tinha sido condenado pelo
"czar" da biologia soviética, Trofim Lysenko. Na visão estreita desse
ucraniano, ainda eram válidas as idéias do naturalista Jean-Baptiste
Lamarck. Este último, um francês do início do século XIX, desmoralizado
pela teoria da evolução de Darwin, sustentava que as características
adquiridas durante a vida por um animal eram transmitidas aos
descendentes.
Lysenko acreditava que qualquer planta cultivada em certas
condições produziria centeio. É o mesmo que dizer que um cão criado no
mato dá à luz raposas. Em 1948, o ditador Joseph Stalin praticamente
colocou a genética de Mendel fora da lei, e cientistas foram presos e
executados. O irmão de Dmitry Belyaev morreu num campo de concentração.
Dmitry conseguiu continuar suas pesquisas genéticas, quase em segredo,
na Sibéria.
Belyaev procurou simular a domesticação das espécies ocorrida no
passado. Numa população de ratos, selecionou os menos arredios ao
contato humano e fez com que eles gerassem descendentes, sem submetê-los
a nenhum tratamento. Os ratos agressivos foram isolados em outro grupo.
A cada geração o pesquisador repetia o processo, trocando os animais de
colônia de acordo com o temperamento demonstrado.
Demorou apenas
sessenta gerações – ou quinze anos – para surgir uma espécie de ratos
pacíficos e sem medo dos seres humanos. Quando um visitante entra no
biotério, os bichinhos apressam-se em baixar a cabeça para receber um
afago. Em outra pesquisa, Belyaev selecionou raposas prateadas, uma
subespécie da raposa européia, e repetiu com elas o procedimento feito
com os ratos. Apenas oito gerações depois, muitas das que nasciam no
grupo dócil poderiam ser facilmente adotadas como bicho de estimação. As
raposas domésticas uivam baixinho, abanam o rabo e compreendem o
significado de muitos gestos humanos. Em apenas quarenta anos, as
ariscas raposas siberianas tornaram-se incrivelmente parecidas com os
cachorros.
Sob o aspecto físico, as raposas também passaram a apresentar certas
características que ajudam a separar os animais domésticos de seus
antepassados selvagens. O rabo curvo, por exemplo, é encontrado também
nos porcos. As orelhas caídas, em gatos, cavalos, ovelhas e bois. O pêlo
com manchas brancas, por sua vez, é uma característica generalizada das
espécies domesticadas. Alguns dos ratos siberianos estão sendo estudados
em Leipzig, na Alemanha. O objetivo dos alemães é encontrar um gene ou
um grupo deles presente nos animais domesticados e que possa explicar
esses traços comuns a várias espécies.
Segundo alguns estudiosos
(Belyaev morreu em 1985), a composição do sistema nervoso periférico e
do sistema endócrino seria alterada por um gene ainda na formação do
embrião. "Belyaev não apenas mostrou que a domesticação pode ocorrer
muito rapidamente como também tem uma base genética comum a muitos, se
não a todos, animais já domesticados", disse a VEJA o americano Tecumseh
Fitch, especialista em comportamento animal da Universidade de St.
Andrews, na Escócia.
O entusiasmo com as pesquisas na Sibéria levou especialistas a cogitar
que os mesmos genes estariam presentes em humanos. A tese, pouco
convencional, surgiu depois que o antropólogo inglês Richard Wrangham,
da Universidade Harvard, propôs que os seres humanos seriam primatas que
se autodomesticaram. Ao longo da civilização, os indivíduos agressivos
foram condenados ao ostracismo, enquanto os que conviveram
harmoniosamente com os demais seguiram adiante. Mesmo sem ter provocado
orelhas caídas ou manchas brancas, a presença desse gene no ser humano
poderia dar uma importante contribuição para o entendimento de nossa
evolução.
(Por Duda Teixeira,
Veja, 02/08/2006)