A nova vida das árvores mortas da Amazônia
2006-07-26
Nas comunidades ribeirinhas do Tapajós, no Pará, o peixe-boi e o jacarandá ameaçam ter vida longa. Não que tenham abandonado a lista vermelha das espécies em extinção. Por ali, o peixe virou design de bancos feitos em árvores de madeira nobre, mas que estão mortas e caídas pelo chão. Com impacto ambiental zero, o projeto de móveis artesanais de madeira garante renda a famílias que vivem nas margens do afluente do Amazonas e dá sinais de que vale mais a pena manter a floresta em pé. Marisa Cauduro/Valor Banco de cumaru preto e vime, uma das peças das Oficinas Caboclas do Tapajós, garante geração de renda para 89 artesãos ribeirinhos
O que parece em extinção é uma prática do passado e que ajudou a fazer com que árvores como o jacarandá praticamente desaparecessem. Até há 10 anos, o "Regatão", aquele barco que circula pelos rios amazônicos como uma mercearia flutuante, comprava dos ribeirinhos uma tora gigante de jacarandá pelo equivalente a R$ 10. "Hoje uma árvore destas pode render até R$ 6 mil se transformada em peças artesanais", diz o sociólogo Antonio José Mota Bentes. "E a árvore está morta, caída na roça ou na floresta."
O projeto Oficinas Caboclas do Tapajós tem pouco mais de cinco anos, envolve 89 artesãos de seis comunidades e em 2005 garantiu uma renda líquida próxima a R$ 70 mil. É assinado pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, o Ipam, uma organização que há 10 anos pesquisa temáticas ambientais e de desenvolvimento na região. No ano passado foram vendidas 800 peças entre bancos com formato de tartaruga, de jacaré, de raia e outros redondos, com detalhes em palha e cipó ou tábuas para cortar frios. Todas trazem gravada a fogo a marca OCT, as iniciais de Oficinas Caboclas do Tapajós, iniciativa coordenada por Bentes. Antes a ação predatória não produzia nada de bom. Agora, no movimento inverso, ocorre a valorização da floresta com geração de renda e nenhum dano ambiental. "As comunidades percebem isso ou já teriam substituído a floresta por roça", diz o sociólogo, ele mesmo nativo de Arapixuna, uma vila às margens de um afluente do Tapajós, e que conviveu desde cedo com a utilização sem controle da terra em áreas florestais.
Com o dinheiro, as famílias que vivem em Pini já recuperaram o poço artesiano que estava quebrado. As de Nuquini consertaram o gerador de energia. As de Nova Vista, povoado a 12 horas de barco de Santarém, têm dinheiro para as viagens pelo rio. As seis comunidades que fazem parte do projeto distribuem a renda entre os artesãos e em fundos de desenvolvimento comunitário e de preservação. A idéia é que, com o tempo, tomem a rédea da coisa e não precisem mais da consultoria do Ipam.
Nestas vilas vivem, em média, 50 famílias. A mais próxima a Santarém é Surucuá, o que em distâncias amazônicas significa sete horas de barco para chegar a um hospital. Estão distribuídas em duas áreas de conservação nacional - a Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, a Resex, criada em 1998 e com 600 mil hectares, e a Floresta Nacional do Tapajós, a Flona, de 545 mil hectares.
A idéia das oficinas caboclas é recente, mas a semente caiu na década de 70, quando o cenário era o da ocupação desordenada das madeireiras. Em 1999, com a criação da Resex e a retirada das madeireiras da área, começaram a se imaginar estratégias de desenvolvimento rural de base sustentável. O plano era promover ações que não ameaçassem a biodiversidade e fixassem os caboclos à terra. Inverter o processo que culminou nos bolsões de pobreza de Santarém, uma região de 300 mil habitantes onde hoje apenas 29% vivem no campo e 71% na cidade. "Comunidades pequenas desapareceram e vieram se estabelecer na periferia da cidade", diz Bentes. "O que se espera é que o pessoal permaneça no campo com dignidade e qualidade de vida. E que a convivência com a grande agricultura possa se dar de outra forma, sem vencedor e sem vencidos."
O que soa romântico está sendo posto em prática nas margens do rio. O salto nos estudos de manejo dos recursos florestais ocorreu com a ajuda do norte-americano Charles M. Peters, pesquisador do Jardim Botânico de Nova York. Ele é o mentor intelectual de uma metodologia em que se utiliza apenas o incremento anual da floresta. "É assim: se você tem um plantel de 20 galinhas que produzem ao ano cinco galinhas, você só usará as cinco galinhas", simplifica Bentes.
Transformando galinhas em árvores, a estratégia é deixar o estoque da floresta intacto e só mexer no que a mata produz anualmente. Os estudos indicam que a floresta cresce uns 100 metros cúbicos por ano, o que é muita madeira. Cada comunidade pode manejar 200 hectares por ano de floresta, mas só 40 hectares ao ano serão utilizados neste sistema novo de manejo, pesquisado cuidadosamente pelos técnicos do Ipam. E assim sucessivamente, num ciclo que permite à mata respirar e se reconstituir.
Isto tudo no futuro. Por ora, as OCTs só usam madeira morta e os planos de manejo das comunidades aguardam o ok do Ibama, embora alguns já tenham sido aprovados. Mas planos demoram para sair do papel e as comunidades tinham pressa em fazer algo. Deste processo nasceram, em 2000, as oficinas caboclas, primeiro em Surucuá e Nuquini. O Ipam convidou um marceneiro de Belém a ensinar o ofício aos caboclos da região e assim surgiram os bancos de cumaru preto, macaúba vermelha, preciosa, sucupira amarela.
As políticas públicas não conseguem chegar às pontas da Amazônia, mas as ações de varejo das ongs se reprouzem. A experiência das OCTs tem inspirado modelos pela região. Há dois anos, artesãos do Tapajós foram convidados a dar uma oficina no Acre, na reserva Chico Mendes. "O modelo do Antonio é inovador porque trabalha nas reservas e usa a madeira do chão", registra François Otondo, coordenadora de comunicação da Ashoka, uma organização que premia ações no setor social, tem sede em Washington, atua em 60 países e há 20 anos está no Brasil. "O modelo das oficinas caboclas pode ser implantado em qualquer reserva extrativista, não tem impacto ambiental mas forte efeito social", continua ela. "É um trabalho que atua na cultura da região, na auto-estima dos envolvidos e traz como proposta a sustentabilidade destas comunidades. Antes dele não havia nenhum projeto assim." Por isto, Antonio Bentes tornou-se um dos 250 "fellows" da Ashoka no Brasil. A iniciativa apóia empreendedores que tenham idéias novas e criativas, de perfil ético e que causem impacto social. O processo de seleção é rígido, leva oito meses e já identificou 1.700 "fellows" no mundo.
O próximo passo das OCT é levar o projeto a outras povoações ribeirinhas e vender as peças à Europa e aos Estados Unidos. "Estamos levantando custos e logística", diz Bentes. Mas os móveis artesanais amazônicos já estão nas vitrines do Sudeste. "Fiz uma viagem para a região do Tapajós e me apaixonei pelos bancos", diz Cida Matioli, uma das sócias da Verde Rama Plantas e Jardins, loja instalada em uma casa do arquiteto modernista Villanova Artigas, no Campo Belo, em São Paulo. "Conhecemos as comunidades onde os bancos são feitos, vimos a marcenaria, o pessoal trabalhando. O banco peixe-boi é o meu preferido", continua. Na loja, bancos peixe-boi, jacaré e tucunaré, em tucupira, são vendidos a R$ 290.
Os bancos-tartaruga são exclusividade da Tok&Stok, custam R$ 298 e estão nas 26 lojas da rede. Ali há vários banquinhos OCT à venda, redondos, pequenos, retangulares, todos em madeira nobre, com preços que começam em R$ 112 e sempre trazem uma etiqueta sobre o projeto. "São produtos que têm um diferencial. Queremos mostrar de onde eles vêm, que é longe pra caramba", diz Ademir Bueno, gerente de design e tendências da Tok&Stok. A aceitação é boa: em dois anos foram vendidas cerca de 500 peças das oficinas caboclas do Tapajós.
Para alcançar as lojas bacanas do Rio e de São Paulo, os banquinhos têm que transpor outro obstáculo além da distância. A relação com o tempo do mercado comprador tem planilhas, estoques e prazos. É bem diferente da relação com o tempo do mercado produtor, onde fazer móveis vem junto com pescar, trabalhar na roça e nadar no rio. "Como lidar com estes tempos diferentes?", pergunta-se Bentes. "Este projeto de geração de renda não pode suprimir as outras atividades das comunidades, não pode engolir seu sistema de vida." Por isso mesmo, um dos êxitos das OCT é a cautela em ampliar a produção, sem ameaças ao ambiente e sem estressar a rotina de quem vive às margens do Tapajós. O ritmo deste trabalho, quem dá, é a mata. (A repórter e a fotógrafa ao Tapajós a convite da Matueté e da TAM)
(Por Daniela Chiaretti, Valor Online, 25/07/2006)
http://www.valoronline.com.br/