Royalties do petróleo viram cana-de-açúcar no norte fluminense
2006-07-26
O norte fluminense, uma das mais antigas regiões produtores de cana do Brasil, assiste ao bom momento da indústria sucroalcooleira no país sem aproveitar, no mesmo ritmo de outras áreas, o ciclo de alta dos preços de açúcar e álcool. Para não deixar passar a chance, produtores e municípios do Rio ligados à cana buscam saídas para enfrentar a baixa produtividade por hectare e uma oferta insuficiente para atender às oito usinas em operação no Estado, várias delas surgidas no fim do século XIX, ainda no Império
Uma das ações que ganham força entre prefeituras do norte fluminense é o lançamento de políticas de fomento ao cultivo de cana sustentadas pelo dinheiro dos royalties do petróleo. Quissamã e Campos dos Goytacazes já têm programas do gênero. Cabo Frio começa a estudar a possibilidade de usar parte dos royalties do petróleo para criar um fundo de financiamento ao setor agroindustrial, e Carapebus, município vizinho a Quissamã, pretende retomar em 2007 seu programa de incentivo ao plantio de cana tendo como fonte o dinheiro dos royalties.
"Outras regiões produtoras de cana saíram na frente, mas o Rio está investindo. A situação é melhor do que era há três anos e há potencial de crescimento", diz Alberto Mofati, secretário da Agricultura do Estado. Ele afirma que o preço da terra para cana, no Rio, é até três vezes mais baixo que em outras áreas. Outra vantagem é a proximidade do centro de consumo. Segundo fontes do setor, hoje a oferta de açúcar e álcool do Rio é suficiente para atender menos de 20% do consumo estadual.
Neste mês, Campos dos Goytacazes, que responde por 60% da área de cana colhida no Estado, regulamentou decreto que cria o Fundo de Desenvolvimento da Cana-de-Açúcar (Fundecana), pelo qual a prefeitura disponibilizará em 2006 aos produtores R$ 5 milhões com juros fixos de 6% ao ano. Cada produtor pode tomar emprestado até R$ 50 mil com dois anos de carência e três anos para pagar. "Se o produtor quitar as parcelas em dia, recebe os juros de volta", diz Luiz Eduardo Crespo, presidente da Associação Fluminense dos Produtores de Cana (Asflucan).
A entidade vai gerir o fundo junto com o Fundecam (Fundo de Desenvolvimento de Campos) e o Banco do Brasil repassará os recursos. "Em quatro anos pretendemos investir R$ 25 milhões para aumentar a produção de cana", afirma Luiz Mário Concebida, secretário de Petróleo e Energia de Campos dos Goytacazes.
Frederico Paes, presidente da Cooperativa Agroindustrial do Estado do Rio de Janeiro (Coagro), uma antiga usina que foi assumida pelos produtores, diz que o agricultor precisa de financiamento a custo compatível, mas considera a iniciativa do Fundecana insuficiente: "R$ 5 milhões por ano é pouco", diz. A Coagro tem capacidade para moer 900 mil toneladas de cana por ano, mas processará 600 mil toneladas na safra 2006/07 - ociosidade de 33%. Do total, a Coagro produzirá 850 mil sacas de 50 quilos de açúcar e 20 milhões de litros de álcool hidratado. O açúcar da Coagro é vendido no norte do Estado e na região metropolitana do Rio, mas não entra na capital pois o açúcar de São Paulo é mais barato.
"Campos e toda a região [norte fluminense] estão ficando à parte do boom verificado na indústria canavieira", diz Paes. Para ele, antes de abrir novas usinas no Estado é preciso aumentar a produção e expandir a área plantada com cana para eliminar a ociosidade das usinas existentes. "O importante é ter um programa de plantio e aumentar a produtividade. Se isso não ocorrer, vai abrir uma nova usina e fechar duas [em operação]", acrescenta Luiz Eduardo Crespo, da Asflucan.
Hoje a falta de matéria-prima em Campos - onde estão cinco das oito usinas do Rio - e em outros municípios do norte faz as empresas da região trabalharem com ociosidade média de 30% na moagem de cana e de 40% na produção de álcool e de açúcar. Os dados constam do Diagnóstico da Cadeia Produtiva de Cana do Rio de Janeiro, elaborado pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e publicado este ano.
A escassez na oferta de cana também dificulta a instalação de novas destilarias de álcool e engenhos de açúcar no pólo fluminense. Enquanto dezenas de usinas de álcool e açúcar estão em construção no país, o Rio vive de promessas e expectativas. Não que empresas deixem o Rio fora dos planos, mas até hoje nenhum projeto saiu do papel. Em Campos, existe um projeto da empresa El Cana para uma usina para moer 1 milhão de toneladas de cana por ano em projeto integrado de plantio de 4,5 mil hectares, mas há no setor quem duvide que o projeto vá sair.
Na semana em que o Valor percorreu 1,2 mil quilômetros no norte fluminense, foi possível testemunhar o encontro de um grupo de executivos de uma empresa americana com o secretário de Desenvolvimento Econômico de Quissamã, Haroldo Carneiro da Silva. "Já conversaram conosco grupos dos EUA, Suíça e Mato Grosso", diz Silva. "Na hora que tivermos uma usina em Quissamã, os produtores serão estimulados a plantar mais", diz Wellington Costa, que tem 260 hectares plantados com cana no município.
Em 2002, Quissamã lançou o projeto de revitalização canavieira pelo qual a prefeitura aportou R$ 5,3 milhões dos royalties para o plantio. Os recursos permitiram o plantio de 2,3 mil hectares pertencentes à antiga Usina de Quissamã pela Cooperativa Mista dos Produtores Rurais local.
Os produtores contavam com a reabertura da usina, o que não aconteceu. "O município precisa de uma usina para moer toda a cana produzida localmente", reforça Norman Steiner, presidente da Cooperativa de Quissamã. Nesta safra, a cooperativa está vendendo toda a produção para a Agrisa, usina de Cabo Frio, que é capaz de esmagar 600 mil toneladas de cana por safra. Por falta de matéria-prima em Cabo Frio e arredores, a Agrisa busca cana em Quissamã (135 quilômetros de distância), subsidiando parte do frete.
"Até 2012 o plano é dobrar a capacidade de moagem da usina", diz Gilberto Giacommini, gerente agrícola da Agrisa. O planejamento inclui parcerias com produtores locais. Mas será preciso esperar para saber se o Rio conseguirá se transformar num pólo competitivo: "Campos está na lanterninha da indústria canavieira do país", atesta Aristóteles Cardoso, diretor superintendente da Usina Santa Cruz, de Campos, controlada pelo grupo José Pessoa.
Quissamã espera usina prometida por J. Pessoa
Na porta de entrada da antiga Usina de Quissamã, primeiro engenho central de açúcar da América Latina, inaugurado em 1887, lê-se a inscrição: Dulce Laboris Premium. A usina, um esqueleto de ferros e chaminés, fechou em 2003 e o doce sabor do trabalho inscrito na epígrafe do velho prédio transformou-se em decepção para produtores e trabalhadores locais. Iniciou-se então um esforço capitaneado pela prefeitura para recuperar a indústria canavieira do município, mas a volta à operação da usina, anunciada mais de uma vez, está hoje cercada de dúvidas.
A origem do dilemma de Quissamã remonta a janeiro de 2003, quando o grupo do empresário pernambucano José Pessoa arrendou 8 mil hectares de terra da usina de Quissamã para o plantio de cana, e se comprometeu a recuperar a usina para uma moagem-teste em 2004. A Empresas JP adiou os planos e hoje, em Quissamã, muitos duvidam se o grupo vai mesmo investir na usina.
O problema é que ao arrendar as terras, onde produz cana para abastecer parte da demanda da usina Santa Cruz, de sua propriedade, em Campos dos Goytacazes, a 65 quilômetros de distância, o grupo marcou posição e dificultou a entrada de outras empresas interessadas em investir em destilaria de álcool no município. Sobraram só terras pulverizadas para o cultivo de cana.
Francisco Pessoa de Queiroz Neto, diretor superintendente de operações da Empresas JP, diz que o grupo estuda a possibilidade montar uma usina em Quissamã ou no Mato Grosso do Sul. Mas afirma que primeiro será preciso aumentar a oferta de cana para resolver o problema de ociosidade da unidade do grupo em Campos. "Assumimos compromisso (de investir em usina em Quissamã), mas não vamos fazer loucura", diz Pessoa. O grupo já construiu oito usinas de produção de açúcar e álcool espalhadas por São Paulo, Rio, Minas, Mato Grosso do Sul e Sergipe.
Haroldo Carneiro da Silva, secretário de Desenvolvimento Econômico de Quissamã, minimiza o problema causado pelo arrendamento da Empresas JP. Ele diz que grupos que procuraram a cidade para investir em destilaria queriam ter produção própria de cana, mas mais recentemente surgiram empresas interessadas em terceirizar a produção, o que facilitaria elevar a oferta de cana já que muitos produtores converteram canaviais em pastagem que poderiam ser reconvertidas para cana.
Norman Steiner, presidente da Cooperativa Mista dos Produtores Rurais de Quissamã, diz que existe projeto da entidade para instalar uma destilaria no município. Seria uma unidade feita em parceria com o setor privado para processar 300 mil toneladas de cana por ano, um investimento de cerca R$ 7 milhões.
Hoje Quissamã e dois municípios vizinhos (Conceição do Macabu e Carapebus) produzem cerca de 800 mil toneladas de cana-de-açúcar por safra, volume que poderia chegar a 2,5 milhões de toneladas/ano com o uso de tecnologia, diz Silva. Ele afirma que no passado recente esses municípios tinham três usinas que, juntas, tinham capacidade de moer quase 1,5 milhão de toneladas por ano.
"Não admitimos ficar fora deste boom", afirma Silva, referindo-se ao crescimento da demanda por álcool no mundo. Há dois motivos para o argumento de Silva: um vem do passado, da tradição do município na produção de cana, e outro aponta para o futuro e refere-se à necessidade de criar alternativas para que a cidade não fique dependente da riqueza do petróleo.
Em 2005, Quissamã recebeu cerca de R$ 50 milhões em royalties da produção de petróleo. O dinheiro dos royalties permitiu ao município investir em infra-estrutura, saúde e educação e atenuou a crise resultante do fechamento da Usina Quissamã. O prefeito do município, Armando Carneiro, irmão de Haroldo, esteve em Aberdeen, na Escócia, para conhecer a experiência de uma região cuja produção de petróleo começou a declinar. "Temos de criar alternativas econômicas para o luxo que hoje o petróleo nos dá", diz.
Um dos projetos de Quissamã é investir na criação de ZENs (Zonas Especiais de Negócios) em que o município cede gratuitamente áreas com infra-estrutura para a instalação de empresas. Quatro empresas estão se instalando na primeira ZEN: um laticínio, um produtor de açúcar mascavo, uma metalúrgica que faz equipamentos para a indústria de cana e uma empresa chinesa que constrói gasoduto.
Atraso eleva potencial de crescimento
A técnica de corte da cana aplicada pelos 250 trabalhadores do Vale do Jequitinhonha surpreendeu produtores de Quissamã. Os safristas mineiros, contratados pela Agroindustrial São João (Agrisa), de Cabo Frio, cortam a cana "na braçada", decepando um punhado de plantas de um só golpe.
A "braçada", usual no país, levou um produtor de Quissamã, desconhecedor da técnica, a reclamar com o gerente agrícola da Agrisa, Gilberto Giacommini, por temer que sua cana recebesse deságio na hora da compra pela usina. O produtor argumentava que o certo era cortar uma cana por vez. A Agrisa esmagará 280 mil toneladas de cana na safra 2006/07, das quais 140 mil toneladas serão compradas de Quissamã, a 135 quilômetros da usina.
O episódio é uma mostra do atraso do setor sucroalcooleiro no Rio em relação a outras regiões do país. O Diagnóstico da Cadeia Produtiva da Cana-de-açúcar, patrocinado pela Federação da Agricultura, Pecuária e Pesca do Estado e pelo Sebrae/RJ, com elaboração da Universidade Federal Rural do Estado do Rio, comprova os problemas.
Publicado este ano, o estudo indica que o norte fluminense tem potencial para produzir o dobro de cana do que produz. Estima-se que a atual safra fique em 4 milhões de toneladas. A produção do Estado caiu por redução da área plantada em função da descapitalização do setor nos últimos anos (infra-estrutura e capacidade financeira das usinas).
Fontes do mercado argumentam que a prática da intermediação na comercialização de cana tem sido ruim para as finanças das usinas de Campos dos Goytacazes. Isto porque poucos intermediários concentram grande volume de venda de cana, aumentando o poder de fogo frente às usinas. Segundo o diagnóstico, pequenos produtores (até 300 toneladas/ano cada) representam 87% dos fornecedores de cana no Rio, mas respondem por 20% da produção da matéria-prima.
A produtividade média de cana, no Rio, é de 58 toneladas por hectare, considerando usinas e produtores. Mas ao analisar os produtores de forma isolada, a média cai para 52. Na década de 1970, eram 23 usinas no Estado. Hoje são oito. "É fundamental aumentar a produção e a produtividade de cana com assistência técnica", diz Ivan Morgado, da Universidade Federal Rural, que participou da equipe que elaborou o diagnóstico e também pede aporte na manutenção dos canais de irrigação e drenagem em Campos.
(Por Francisco Góes, Valor Online, 25/07/2006)
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