Embora a lei ambiental seja clara, indenizar e remanejar pessoas que
vivem dentro de unidades de conservação são operações complicadas. O
Parque Nacional do Jaú (AM), o segundo maior do país, demorou 25 anos
para encontrar uma possível solução: a criação de uma reserva
extrativista em uma área próxima que já era aproveitada para as
atividades de subsistência dos moradores do parque. Os ribeirinhos
negociaram anos com o Ibama e já estavam convencidos de que, mais
cedo ou mais tarde, teriam de sair quando fossem devidamente
indenizados. Mas os esforços para resolver a situação fundiária do
parque começaram a desmoronar depois que políticos interferiram com
conselhos do tipo: “Se vocês lutarem, nem do parque vão ter que sair”.
O caso virou de ponta-cabeça.
A história é cheia de nuances. Quando o parque foi criado, em 1980,
comunidades ribeirinhas já viviam nas margens do rio Unini, que marca
o limite norte da unidade de conservação. Ainda hoje, a maioria mora
na margem direita do rio, que pertence ao parque, mas retira seu
sustento na margem esquerda, onde cultivam mandioca, banana e realizam
atividades de extrativismo de cipós, castanha-da-Amazônia, copaíba e
pesca. Daí veio a idéia de decretar, na margem esquerda, uma reserva
extrativista (resex).
Essa categoria de unidade de conservação admite moradia de populações
tradicionais e permite atividades de subsistência de baixo impacto.
Depois de quatro anos de negociações, o governo federal criou, no mês
passado, a Resex do Rio Unini com nada menos que 800 mil hectares.
Esperava-se que assim o Jaú pudesse começar a se tornar um parque
nacional como manda a lei: destinado apenas à pesquisa científica,
educação ambiental, recreação e turismo ecológico.
Mas não. O próprio Ministério do Meio Ambiente (MMA) reconhece que a
resex não nasceu com o objetivo de transferir as famílias que moram no
parque do Jaú. O argumento é que as áreas da resex são inundáveis,
com pouca terra firme, o que inviabiliza o estabelecimento das
comunidades nas margens. É claro que, em 800 mil hectares, é
improvável que não haja terras próprias para as famílias. Na verdade,
há. Mas segundo José Dionísio da Silva, secretário da Associação dos
Moradores do Rio Unini (Amoru), só é possível chegar a essas áreas mais
distantes por canoas, que conseguem passar pelos igapós em travessias
que duram mais de uma hora.
Proposta em estudo
Diante disso, Virgilio Viana, secretário de Desenvolvimento Sustentável
do Amazonas resolveu interceder a favor dos moradores. Confirmou a
sugestão do prefeito da cidade de Barcelos, de deputados e de advogados
consultados pela associação de moradores e propôs que a área onde as
famílias estão seja anexada à resex recém criada. Dionísio espera até
mais: que uma faixa de 10 quilômetros a partir da margem direita do rio
Unini, o lado do Jaú, deixe de ser parque. Viana levou a idéia ao MMA,
que prontamente começou a estudá-la, enquanto o Ibama no Jaú ficou a
ver navios. Segundo um servidor, eles sequer foram convidados para
participar da reunião que resultou nessa proposta de redução do
parque.
O secretário de Biodiversidade e Florestas do MMA, João Paulo
Capobianco, informa que nos próximos dias será montada uma comissão
composta por técnicos do ministério, do Ibama, do órgão estadual de
meio ambiente do Amazonas e de organizações da sociedade civil para
analisar a questão. “Não existe posição tomada, nem definida. Vamos
verificar se é possível fazer um ajuste e em que condições, porque
circulam informações de que as características físicas da resex não
permitem o remanejamento das famílias”, explica Capobianco. Mas o
secretário enfatiza. “O objetivo não é reduzir a área do parque, mas
estudar de que maneira a situção dos moradores da margem direita pode
ser resolvida”.
O parecer da comissão deve sair entre 60 e 90 dias. E, caso a conclusão
penda para a redução do parque, Capobianco já adiantou que o Jaú pode
ser compensado com a anexação de trechos muito preservados limítrofes
à parte sul da unidade. A intenção é englobar tributários do rio
Carabinani. Segundo o secretário, a proposta final dessa comissão
será apreciada pela ministra e, no caso da desafetação do parque,
precisará ainda passar pelo Congresso Nacional.
Os dois lados
O Parque Nacional do Jaú é uma das unidades de conservação mais bem
consolidadas da Amazônia. Com cerca de 2,2 milhões de hectares, tem
dois flutuantes, uma base em terra firme próxima ao encontro do rio
Jaú com o Negro e um centro de visitantes a 200 quilômetros de Manaus.
Mas até o primeiro concurso do Ibama de 2002, apenas dois vigilantes
terceirizados e o chefe do Ibama na unidade cuidavam do parque. Agora,
são cinco analistas ambientais, mais seis vigias. Melhorou, mas ainda
é pouco para o tamanho e a importância que tem para conservação dos
ecossistemas e espécies ameaçadas, como a jacareatinga, a tartaruga da
Amazônia, tracará, jacaré-açu, gavião real, uacari-preto, ariranha,
gato-maracajá e onça pintada.
Conforme explica a analista ambiental Mariana Leitão, chefe substituta
do parque, apesar da existirem moradias espalhadas por toda extensão
do rio Unini, as áreas ocupadas estão em bom estado de conservação. Na
área desde 2002, ela conta que existem duas comunidades na área da
resex, seis dentro do parque e mais uma na reserva estadual de
desenvolvimento sustentável, vizinha ao Jaú. Todas na beira do Unini.
Somadas, aproximadamente mil pessoas dependem diretamente dos recursos
do rio.
Na opinião de Arnaldo Carneiro, ecólogo do Instituto Nacional de
Pesquisas da Amazônia (Inpa), essa é uma briga que as populações
merecem levar se não puderem se mudar para um lugar melhor. Para ele,
não se trata de ser a favor da redução da unidade de conservação, mas
do investimento em um trabalho de mobilização social de longo prazo
que culmine na saída, aos poucos, das populações de dentro do parque –
como o que tem sido conduzido pela Fundação Vitória Amazônica (FVA)
há 16 anos.
O pesquisador explica que um estudo do Inpa no final da década de 70
fundamentou a iniciativa do governo federal de proteger toda bacia do
rio Jaú em uma única unidade de conservação, devido à importância
ecológica da área, com especial atenção à diversidade de pássaros. Os
critérios para demarcação foram balizados pelos contornos naturais da
região, que até extrapolam os limites na bacia, segundo explica
Carneiro. Por esse motivo, mesmo com essa possibilidade de perda da
margem direita do rio Unini, não haveria impacto significativo na
conservação do parque. “Ao respeitar os contornos naturais, a famílias
que viviam ali foram englobadas. Esse é um problema comum às unidades
de conservação, que nós temos que aprender a resolver”, diz Carneiro.
Nessa discussão, embora não veja grandes perdas ao conceder também a
margem direita do rio aos ribeirinhos, Carneiro teme o risco da
abertura de um precedente para diminuir outras unidades de conservação
de uso restrito. “Pode ser perigoso, mas é um precedente que já foi
aberto”, conta. O ecólogo lembra que recentemente a Estação Ecológica
da Terra do Meio, no Pará, perdeu um pedaço de sua área justamente
pelo mesmo motivo, quando foi criada a Reserva Extrativista Iriri,
também no mês passado. Mariana, do Ibama, concorda. E receia que a
redução do parque permita a sua retalhação. “Existem comunidades no
coração do parque, no rio Jaú. Já pensou se eles quiserem transformar
suas áreas em reservas extrativistas também?”, questiona Mariana.
Ação na Justiça
Enquanto essa situação não se define, o Ibama é obrigado a assegurar
o direito da terra às comunidades. O relacionamento com os ribeirinhos
é amistoso. Atualmente os moradores compõem a maior parte do conselho
consultivo do parque, em fase de consolidação. Não era assim no
passado. Circula na região a história de ex-moradores que sairam e não
foram indenizados. Hoje, eles moram no município de Novo Airão e
solicitaram ao Ministério Público Federal em 2004 a abertura de uma
ação civil pública contra o Ibama, acusando o instituto de tê-los
expulsado sem indenização.
As condições em que esses ex-moradores deixaram o parque ainda não
estão claras e o caso não foi julgado. Mas por causa dessa ação, todo
mês a Justiça exige do Ibama relatórios para provar que o instituto
está trabalhando pela regularização fundiária. “Precisamos de dinheiro,
mas já fomos sinalizados com uma ajuda do Programa de Areas Protegidas
da Amazônia (Arpa)”, informa a chefe substituta do parque.
A Fundação Vitória Amazônica, que foi contratada para realizar o plano
de manejo da unidade, nega que tenha participado dessa ação contra o
Ibama. “Fomos apenas consultados pelo Ministério Público porque temos
um levantamento das comunidades”, defende Ana Cristina Ramos de
Oliveira, secretária executiva adjunta da FVA.
Com a resex criada, a associação de moradores iria se concentrar para
unificar as comunidades do Unini e discutir como fariam para sair do
parque. “Mas como vimos que há possibilidade de ficar, vamos nos
fortalecer por essa proposta, para melhorar a nossa qualidade de vida”,
explica Dionísio, representante dos moradores do Jaú.
(Por Andreia Fanzeres,
O Eco, 22/07/2006)