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2006-07-24
A cultura dominante na polícia brasileira de resolver problemas à bala vitimou esta semana a biodiversidade brasileira. Duas onças que estavam atacando cães na região metropolitana de Corumbá, no Mato Grosso do Sul, foram alvejadas pela Polícia Ambiental estadual, um braço da PM encarregado de lidar com questões florestais. Uma morreu. A outra, ferida na pata direita dianteira, foi medicada e está se recuperando numa base da aeronáutica em Campo Grande, capital do estado. Em dois meses, deverá estar nos trinques. Mas não será devolvida à natureza.

Seu futuro mais provável é acabar em algum programa de pesquisa com onças em cativeiro mantido pelo Centro Nacional de Predadores do Ibama, localizado em Atibaia, São Paulo. “Se você levar em conta a situação do Pantanal como um todo, onde a população se recuperou nos últimos 20 anos, o impacto da perda desses animais não é crítico”, diz Peter Crawshaw, funcionário do Ibama e um dos maiores especialistas em carnívoros do mundo. “Mas considerando que 60% de seu habitat nessa região já foi desmatado, deixando populações isoladas em fragmentos de mata, e que estão havendo extinções localizadas, uma coisa dessas pode ser devastadora. Se tivesse acontecido em área de Mata Atlântica ou de Caatinga, seria um desastre”.

Em favor dos policiais, é importante deixar claro que as onças, apesar de não terem atacado nenhum ser humano, colocavam em risco a população local. Pelo menos do ponto de vista estatístico. “Cães reagem ao perigo procurando abrigo junto aos seus donos”, diz Crawshaw. “Isso podia trazer as onças para muito perto das pessoas”. O que não quer dizer que atirar fosse a única solução que restava à polícia. Ela poderia ter isolado melhor a área, contribuindo para reduzir os riscos que alguém acabasse ferido, e convocado com maior presteza a ajuda do pessoal do Ibama que sabe como capturar uma onça. Mas a opção preferencial pelo gatilho, aliada à falta de preparo dos policiais em lidar com este tipo de situação, acabou falando mais alto.

Eram 3 horas da madrugada de domingo (16/7), quando a PM de Mato Grosso do Sul recebeu um telefonema dando conta que uma onça havia matado dois cachorros de moradores do bairro Universitário, uma área de expansão recente de Corumbá, onde fica o campus da UFMS. Uma tropa da polícia ambiental foi deslocada para o local, achou pegadas do bicho e resolveu segui-las. Elas terminavam numa gruta encravada nas escarpas de barro que margeiam o rio Paraguai. Apesar das óbvias evidências de que era grande a possibilidade de haver um predador lá dentro, os policiais decidiram que antes de chamar quem entende do assunto – no caso, o Ibama – era preciso se certificar. Mas, cautelosos, decidiram aguardar até o amanhecer.

Abate
Às 6 da manhã, dois homens foram escalados para a missão. Um tinha a tarefa de “meter a cara” na caverna, segundo um sargento que participou da operação, para ter certeza que o bicho estava na toca. O outro ia lhe dar segurança. Quando os olhos do policial encarregado de “investigar” o buraco se cruzaram com os da onça, uma fêmea, ela esturrou e se colocou em posição de ataque. Foi o que bastou para o segundo policial, o da segurança, disparar seu fuzil 765 e matar a bicha. Com o corpo estendido no chão, o major Joílson Santana, chefe da polícia ambiental do estado, não tinha mais como deixar de avisar ao Ibama sobre o problema, que na verdade eram dois porque a essa altura já estava claro que havia uma segunda onça rondando o local.

O órgão deslocou na segunda-feira mesmo uma equipe para Corumbá. Na zona do bairro Universitário freqüentado pelas onças, deitaram armadilhas com iscas vivas dentro. Na quarta-feira, suas duas maiores estrelas em carnívoros – além de Crawshaw, Ronaldo Morato, chefe do Cenap – chegaram à cidade para acompanhar os trabalhos. Morato modificou a disposição das armadilhas e mudou as iscas. Até então, vinham sendo usados leitões. “Mas elas estavam atrás de cachorros e portanto colocamos cachorros nas jaulas, dentro de um compartimento que os mantinha à salvo da onça”, diz ele.

Os funcionários do Ibama colocaram girais – plataformas de observação – na área onde os bichos tinham sido avistados e usaram uma esturradeira, um instrumento que imita o urro de onças, para aumentar as chances de atraí-los de volta ao local. As mudanças deram certo logo no dia seguinte. Na manhã de quinta, o chefe do Cenap ouviu um barulho de porta de armadilha se fechando. Pegou um rifle carregado com um dardo anestésico e seguiu na direção do som, com um policial armado logo atrás. Avistaram o bicho e se postaram a uns 15 metros dele, distância que os especialistas consideram segura o suficiente para evitar o seu bote. “A onça tinha ficado do lado de fora, mas ainda estava tentando alcançar o cachorro”.

Morato estava colocando a onça na sua alça de mira quando o animal percebeu a movimentação e fez um ataque falso – um movimento brusco com o corpo cuja função é simplesmente a de tentar colocar um predador em potencial para correr. “Não havia como ela pudesse realmente nos atacar. Estávamos longe”, diz ele. Mas o policial não sabia disso. Aliás, ele não sabia muito sobre onças. “Diante dela, você não pode demonstrar medo”. E há meios comprovados de se evitar pacificamente o seu bote, como gritar ou bater palmas para assustá-la, o que naquela situação nem era o caso. O PM levou a sério o blefe e antes que Morato pudesse colocá-la para dormir, disparou seu fuzil. Felizmente, ele não acertou inteiramente o centro do alvo.

Pouca alternativa
A bala atingiu o animal, um macho, na pata direita e além de rasgar sua carne, a quebrou. Ele entrou numa toca, onde Morato finalmente conseguiu anestesiá-lo. Desacordado, foi levado para uma clínica veterinária na cidade, onde recebeu os primeiros socorros, e depois deslocado para o hospital veterinário da Uniderp, em Campo Grande, melhor equipado para atender casos de fratura. De lá foi enviado para a base aérea. Morato diz que esse tipo de confronto entre humanos e predadores tende a crescer no futuro. “O desmatamento e o crescimento de cidades sobre áreas que até recentemente ainda eram de floresta torna isso inevitável”, explica.

No caso que aconteceu em Corumbá, as cheias do Pantanal só contribuíram para empurrar as duas onças para mais perto ainda dos homens. Em favor delas, diga-se que as pessoas é que não deviam estar onde estavam. O local onde os dois animais foram alvejados, às margens do rio Paraguai, é pela letra da lei uma área de preservação permanente. Não poderia haver ninguém lá. No entanto, conta o major Joílson, da Polícia Ambiental, ela já está densamente habitada por população de baixa renda. “Há muito lixo espalhado no local, o que também ajuda a atrair os animais”, diz Morato. O bairro Universitário, portanto, virou uma região suscetível a conflitos entre a fauna animal e a fauna humana. Mas a polícia não se preparou para administrá-lo.

“Na concepção dessas polícias de meio ambiente ou florestais dos estados, a melhor maneira de resolver esse problema é matar o animal”, diz Crawshaw. Talvez porque esta seja a única alternativa que lhes resta. Não são treinados para encarar esse tipo de situação e tampouco dispõe de equipamento adequado. Mas não podem ser considerados culpados. Morato lembra que eles enfrentam com pouco ou nenhum treino uma situação criada pelo desmatamento e pela falta de planejamento da ocupação urbana no Brasil. “Nós deixamos a coisa ficar assim e também não estamos preparados para manejar da melhor maneira possível episódios como esse”.

Nem mesmo o Ibama tem uma estrutura adequada para responder a esse tipo de emergência. Pessoal qualificado não lhe falta. O órgão tem dez pessoas capazes de encarar uma onça com o menor risco possível para o animal. Mas a maioria delas está concentrada na região Sudeste, o que nem sempre lhes permite chegar até uma zona de conflito antes que alguém decida apertar um gatinho. Diante disso, é muito provável que as onças vão continuar pagando com a vida a ousadia de se aproximarem de seres humanos.
(Por Manoel Francisco Brito e Eric Macedo, O Eco, 22/07/2006)

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