A cultura dominante na polícia brasileira de resolver problemas à bala
vitimou esta semana a biodiversidade brasileira. Duas onças que estavam
atacando cães na região metropolitana de Corumbá, no Mato Grosso do
Sul, foram alvejadas pela Polícia Ambiental estadual, um braço da PM
encarregado de lidar com questões florestais. Uma morreu. A outra,
ferida na pata direita dianteira, foi medicada e está se recuperando
numa base da aeronáutica em Campo Grande, capital do estado. Em dois
meses, deverá estar nos trinques. Mas não será devolvida à natureza.
Seu futuro mais provável é acabar em algum programa de pesquisa com
onças em cativeiro mantido pelo Centro Nacional de Predadores do Ibama,
localizado em Atibaia, São Paulo. “Se você levar em conta a situação
do Pantanal como um todo, onde a população se recuperou nos últimos 20
anos, o impacto da perda desses animais não é crítico”, diz Peter
Crawshaw, funcionário do Ibama e um dos maiores especialistas em
carnívoros do mundo. “Mas considerando que 60% de seu habitat nessa
região já foi desmatado, deixando populações isoladas em fragmentos de
mata, e que estão havendo extinções localizadas, uma coisa dessas pode
ser devastadora. Se tivesse acontecido em área de Mata Atlântica ou
de Caatinga, seria um desastre”.
Em favor dos policiais, é importante deixar claro que as onças, apesar
de não terem atacado nenhum ser humano, colocavam em risco a população
local. Pelo menos do ponto de vista estatístico. “Cães reagem ao perigo
procurando abrigo junto aos seus donos”, diz Crawshaw. “Isso podia
trazer as onças para muito perto das pessoas”. O que não quer dizer
que atirar fosse a única solução que restava à polícia. Ela poderia ter
isolado melhor a área, contribuindo para reduzir os riscos que alguém
acabasse ferido, e convocado com maior presteza a ajuda do pessoal do
Ibama que sabe como capturar uma onça. Mas a opção preferencial pelo
gatilho, aliada à falta de preparo dos policiais em lidar com este tipo
de situação, acabou falando mais alto.
Eram 3 horas da madrugada de domingo (16/7), quando a PM de Mato
Grosso do Sul recebeu um telefonema dando conta que uma onça havia
matado dois cachorros de moradores do bairro Universitário, uma área
de expansão recente de Corumbá, onde fica o campus da UFMS. Uma tropa
da polícia ambiental foi deslocada para o local, achou pegadas do
bicho e resolveu segui-las. Elas terminavam numa gruta encravada nas
escarpas de barro que margeiam o rio Paraguai. Apesar das óbvias
evidências de que era grande a possibilidade de haver um predador lá
dentro, os policiais decidiram que antes de chamar quem entende do
assunto – no caso, o Ibama – era preciso se certificar. Mas,
cautelosos, decidiram aguardar até o amanhecer.
Abate
Às 6 da manhã, dois homens foram escalados para a missão. Um tinha a
tarefa de “meter a cara” na caverna, segundo um sargento que participou
da operação, para ter certeza que o bicho estava na toca. O outro ia
lhe dar segurança. Quando os olhos do policial encarregado de
“investigar” o buraco se cruzaram com os da onça, uma fêmea, ela
esturrou e se colocou em posição de ataque. Foi o que bastou para o
segundo policial, o da segurança, disparar seu fuzil 765 e matar a
bicha. Com o corpo estendido no chão, o major Joílson Santana, chefe
da polícia ambiental do estado, não tinha mais como deixar de avisar
ao Ibama sobre o problema, que na verdade eram dois porque a essa
altura já estava claro que havia uma segunda onça rondando o local.
O órgão deslocou na segunda-feira mesmo uma equipe para Corumbá. Na
zona do bairro Universitário freqüentado pelas onças, deitaram
armadilhas com iscas vivas dentro. Na quarta-feira, suas duas maiores
estrelas em carnívoros – além de Crawshaw, Ronaldo Morato, chefe do
Cenap – chegaram à cidade para acompanhar os trabalhos. Morato
modificou a disposição das armadilhas e mudou as iscas. Até então,
vinham sendo usados leitões. “Mas elas estavam atrás de cachorros e
portanto colocamos cachorros nas jaulas, dentro de um compartimento que
os mantinha à salvo da onça”, diz ele.
Os funcionários do Ibama colocaram girais – plataformas de observação
– na área onde os bichos tinham sido avistados e usaram uma
esturradeira, um instrumento que imita o urro de onças, para aumentar
as chances de atraí-los de volta ao local. As mudanças deram certo
logo no dia seguinte. Na manhã de quinta, o chefe do Cenap ouviu um
barulho de porta de armadilha se fechando. Pegou um rifle carregado
com um dardo anestésico e seguiu na direção do som, com um policial
armado logo atrás. Avistaram o bicho e se postaram a uns 15 metros
dele, distância que os especialistas consideram segura o suficiente
para evitar o seu bote. “A onça tinha ficado do lado de fora, mas ainda
estava tentando alcançar o cachorro”.
Morato estava colocando a onça na sua alça de mira quando o animal
percebeu a movimentação e fez um ataque falso – um movimento brusco
com o corpo cuja função é simplesmente a de tentar colocar um predador
em potencial para correr. “Não havia como ela pudesse realmente nos
atacar. Estávamos longe”, diz ele. Mas o policial não sabia disso.
Aliás, ele não sabia muito sobre onças. “Diante dela, você não pode
demonstrar medo”. E há meios comprovados de se evitar pacificamente o
seu bote, como gritar ou bater palmas para assustá-la, o que naquela
situação nem era o caso. O PM levou a sério o blefe e antes que Morato
pudesse colocá-la para dormir, disparou seu fuzil. Felizmente, ele
não acertou inteiramente o centro do alvo.
Pouca alternativa
A bala atingiu o animal, um macho, na pata direita e além de rasgar
sua carne, a quebrou. Ele entrou numa toca, onde Morato finalmente
conseguiu anestesiá-lo. Desacordado, foi levado para uma clínica
veterinária na cidade, onde recebeu os primeiros socorros, e depois
deslocado para o hospital veterinário da Uniderp, em Campo Grande,
melhor equipado para atender casos de fratura. De lá foi enviado para
a base aérea. Morato diz que esse tipo de confronto entre humanos e
predadores tende a crescer no futuro. “O desmatamento e o crescimento
de cidades sobre áreas que até recentemente ainda eram de floresta
torna isso inevitável”, explica.
No caso que aconteceu em Corumbá, as cheias do Pantanal só contribuíram
para empurrar as duas onças para mais perto ainda dos homens. Em
favor delas, diga-se que as pessoas é que não deviam estar onde
estavam. O local onde os dois animais foram alvejados, às margens do
rio Paraguai, é pela letra da lei uma área de preservação permanente.
Não poderia haver ninguém lá. No entanto, conta o major Joílson, da
Polícia Ambiental, ela já está densamente habitada por população de
baixa renda. “Há muito lixo espalhado no local, o que também ajuda a
atrair os animais”, diz Morato. O bairro Universitário, portanto, virou
uma região suscetível a conflitos entre a fauna animal e a fauna
humana. Mas a polícia não se preparou para administrá-lo.
“Na concepção dessas polícias de meio ambiente ou florestais dos
estados, a melhor maneira de resolver esse problema é matar o animal”,
diz Crawshaw. Talvez porque esta seja a única alternativa que lhes
resta. Não são treinados para encarar esse tipo de situação e tampouco
dispõe de equipamento adequado. Mas não podem ser considerados
culpados. Morato lembra que eles enfrentam com pouco ou nenhum treino
uma situação criada pelo desmatamento e pela falta de planejamento da
ocupação urbana no Brasil. “Nós deixamos a coisa ficar assim e também
não estamos preparados para manejar da melhor maneira possível
episódios como esse”.
Nem mesmo o Ibama tem uma estrutura adequada para responder a esse
tipo de emergência. Pessoal qualificado não lhe falta. O órgão tem dez
pessoas capazes de encarar uma onça com o menor risco possível para o
animal. Mas a maioria delas está concentrada na região Sudeste, o que
nem sempre lhes permite chegar até uma zona de conflito antes que
alguém decida apertar um gatinho. Diante disso, é muito provável que
as onças vão continuar pagando com a vida a ousadia de se aproximarem
de seres humanos.
(Por Manoel Francisco Brito e Eric Macedo,
O Eco, 22/07/2006)