Para movimentos sociais sul-americanos, é chegada a hora de construir novo modelo de manejo da água
2006-07-21
Movimentos sociais de Brasil, Argentina, Bolívia, Chile e Uruguai, que trabalharam duramente para recuperar serviços de água privatizados na década de 90, se reuniram na cidade argentina de Córdoba para uma troca de experiências e definir ações, agora que algumas empresas estão se retirando da região. “O grande desafio, talvez, maior até do que tivemos na luta para recuperar as empresas de água privatizada, é a construção de uma gestão alternativa deste recurso que seja pública e participativa”, disse à IPS o porta-voz da Coordenadora pela Defesa da Água e da Vida da Bolívia, Oscar Olivera.
Na Bolívia, o movimento contra a privatização de serviços de água potável e saneamento existe há anos e teve, inclusive, cinco vítimas fatais em mobilizações de rua em La Paz e El Alto, das quais participaram 500 mil pessoas. Em 2000, os moradores resistiram a aumentos nas tarifas de até 300%. A conta de água equivalia a 20% da renda familiar. Agora, a corporação francesa Suez-Lyonnaise des Eaux – com contrato de concessão por 40 anos, desde 1999 – está em processo de retirada do país e a Bolívia contam com um Ministério da Água, além de uma organização social disposta a participar da administração desse recurso. “O governo de Evo Morales teve de cumprir o mandato e criou o ministério”, explicou Olivera.
No contexto da 25ª Reunião de Cúpula do Mercosul, que aconteceu nesta terça e quarta-feira na capital da província de Córdoba – 800 quilômetros a noroeste de Buenos Aires – organizações da sociedade civil da região participam da Cúpula dos Povos pela Soberania e a Integração, que termina nesta quinta-feira com uma caminhada pelas ruas da cidade. Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai e Venezuela integram o Mercosul. Nesse ambiente, a Comissão Popular pela Recuperação da Água de Córdoba, formada por organizações sociais e sindicais e partidos políticos, convocou entidades sul-americanas que trabalharam pela recuperação da água em vários países para um debate sobre o fracasso da privatização do setor e os modelos de gestão pública. No último ano, a Suez se retirou, ou está em processo de retirada, da exploração de serviços de água na Argentina, Bolívia e no Uruguai, que haviam sido privatizados nos anos 90.
Para expor a experiência do manejo governamental falou Dieter Warshof, da Associação de Empresas Municipais de Água e Esgoto do Brasil, que representa cerca de 1.500 empresas gerenciadas por prefeituras brasileiras, muitas delas com participação de organizações sociais. A preocupação recorrente dos participantes é construir um “novo” modelo de manejo desse recurso hídrico. “Fomos eficientes contra as empresas privatizadas, mas não para propor um modelo alternativo”, afirmou o argentino Alberto Muñoz, da província de Santa Fé. E nisto muitos concordam.
Muñoz é membro da organização Usuários e Consumidores de Rosário, que faz parte da Assembléia Provincial pelo Direito da Água em Santa Fé. “Necessitamos mudar a idéia de empresa estatal pela de empresa pública porque o Estado nem sempre representa os interesses públicos”, alertou. “Temos que nos envolver”, ressaltou este ativista que em sua província liderou o processo contra a privatização da empresa estatal de água, controlada por Suez.
Anil Naidoo, coordenador da campanha internacional Blue Planet Project (Projeto Planeta Azul), com sede no Canadá, foi o único convidado de fora da América do Sul. “Neste processo é importante não substituir um império por outro, saber muito bem o que queremos fazer”, destacou. Em conversa com a IPS, Naidoo afirmou que a América do Sul é, neste momento, “o coração do movimento pelo direito humano à água” e assegurou que “é nesta região onde estão sendo criadas novas idéias sobre como manejar o recurso. O movimento é forte e por isso queremos apoiá-lo”, disse entusiasmado.
O sindicalista Luis Bazá, que coordena a comissão popular de Córdoba para a reestatização da água, ressaltou a oportunidade do encontro. “Queremos articular uma mesma política sobre o manejo da água da água no Mercosul, para que seja considerada um bem público e um direito essencial”,disse à IPS. “Vamos pedir aos presidentes que isto seja institucionalizado, porque em alguns países as empresas privadas estão se retirando pela persistência dos movimentos sociais, mas há casos ainda contraditórios, como o da Argentina” afirmou.
O presidente Néstor Kirchner rescindiu este ano o contrato com a Suez sobre concessão do serviço de água e saneamento na cidade de Buenos Aires e arredores e criou uma nova empresa pública. Na província de Santa Fé ocorreu algo semelhante. Muñoz recordou que a companhia francesa, que desfrutaria do negócio por 30 anos, ficou apenas 10 no país. Contratos não-cumpridos, aumentos injustificados de tarifas e a má qualidade do serviço forçaram sua retirada, no começo deste ano, como ocorreu em outros países. Por pressão da assembléia formada em Santa Fé, o governo impôs a saída a saída da Suez. Agora, 50% da Águas de Santa Fé pertencem ao governo provincial, 40% aos municípios e 10% aos sindicatos.
“É uma transição, não é o que queremos. Mas,pelo menos conseguimos derrotar a empresa privatizada que não era totalmente eficiente. Para nós, isto é como a etapa final da era da privatização, porém queremos maior participação de universidades e organizações sociais no controle da empresa”, afirmou Muñoz. Por outro lado, em Córdoba o movimento de resistência conseguiu que a Suez anunciasse sua saída este ano, mas não consegue fazer com que o governo provincial aceite o controle do serviço. A administração ofereceu transferir as ações para outra companhia privada, de capital nacional, e a comissão popular impugnou esse ato nos tribunais.
“O contrato impede que o operador técnico transfira as ações para outra empresa”, afirmou Bazán, e nisso se baseou sua representação na justiça. Enquanto o conflito não se resolve, o movimento analisa qual caminho seguir. No momento, observa as experiências na região e sabe que é o que não quer. A participação de sindicatos na gestão da água e vetada por quase todas as organizações que resistiram à privatização. “Defendem interesses corporativos, quando não diretamente os das empresas privadas”, queixou-se o boliviano. Todos concordam que uma nova companhia pública deve partir da idéia de considerar a água como um bem social, não uma mercadoria, e seu acesso é um direito humano básico. Imaginam subsídios cruzados para que quem tem mais pague mais, e que seja proibido suspender o serviço por inadimplência.
“O presidente Kirchner reestatizou a empresa Águas Argentinas e criou a Água e Saneamento S.A., mas detectamos que a nova companhia estatal também corta o serviço por falta de pagamento, e não é isso que queremos. Outro participante, da província de Rio Negro, recordou que em seu distrito o serviço de água nunca foi privatizado, mas acabou parcialmente entregue ao manejo de companhias particulares. “A esvaziaram e não fizeram nada de bom”, contou.
No Uruguai, um plebiscito em 2004 habilitou a reforma da Constituição para declarar a água como bem público e proibir a privatização de serviços de distribuição e saneamento. Pouco depois caíram as concessões das empresas Águas da Costa, da espanhola Águas de Barcelona (filial da Suez) e Uraguá (subsidiária, por sua vez, da Águas de Bilbao) que controlam o serviço no departamento de Maldonado. Entretanto, Sebastián Valdomir, da Rede Amigos da Terra – membro da Comissão Nacional em Defesa da Água e da Vida no Uruguai – disse à IPS que as companhias recorreram ao Centro Internacional de Acerto de Diferença de Investimentos (CIADI), do Banco Mundial, para conseguir ressarcimentos. “Devemos iniciar uma campanha regional de denúncia desta estratégia das empresas. A água não pode estar sujeita ao que diz o CIADI”, afirmou.
Por fim, Olivera, da Bolívia, considerou que mesmo havendo vontade dos novos governos sul-americanos no sentido de avançar na reestatização, resta muito por fazer. Em seu país estão sendo elaboradas propostas para levar à Assembléia Constituinte para gerar espaços de participação. “É preciso, agora, desprivatizar a política, acabar com o monopólio da palavra dos dirigentes e começar a ouvir o que as pessoas querem”, recomendou.
(Por Marcela Valente, IPS, 20/07/2006)
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