Decreto que obriga a recuperar e manter 20% da propriedade com floresta revolta produtores
2006-07-20
A decisão do Governo do Estado de São Paulo de regulamentar a reserva legal em imóveis rurais, atendendo à determinação do Código Florestal brasileiro, está causando polêmica. O decreto foi assinado no dia 16 de junho, pelo governador Cláudio Lembo, e estabelece regras para manutenção, recomposição e condução da regeneração natural das matas em sítios, fazendas e outras propriedades rurais. A reserva deve ocupar 20% das terras de cada propriedade, não incluindo as Áreas de Preservação Permanente (APP), como beiras de rios, córregos e açudes. Quem já não tiver mais matas na propriedade deve plantar árvores e formar a reserva, o que pode ser feito por etapas, à razão de um décimo da área total a cada três anos.
O decreto determina a averbação da reserva no registro do imóvel, permitindo que sejam averbadas áreas em processo de recomposição, desde que com projeto aprovado pelo Departamento Estadual de Proteção dos Recursos Naturais (DEPRN). A União Democrática Ruralista (UDR), que congrega fazendeiros e produtores rurais, planeja ir à Justiça para a revogação da norma, considerada inconstitucional. Técnicos do Instituto de Economia Agrícola (IEA), órgão do próprio governo, estimam que 3,7 milhões de hectares produtivos de terras paulistas terão de ser revertidos para a reserva legal. A área cultivada cairia de 18,9 milhões para 15,2 milhões de hectares. A perda na renda bruta da agropecuária é calculada em R$ 5,7 bilhões, causando reflexos em cadeia no setor produtivo que podem levar à queda de receita da ordem de R$ 67 bilhões.
Os números do IEA apontam para uma redução de 136 mil empregos. De acordo com os pesquisadores José Sidnei Gonçalves e Eduardo Pires Castanho, a justificativa do governo para o decreto apresenta uma visão distorcida da realidade agropecuária paulista, quando reproduz o preconceito de que se trata de atividade de baixa produção. "A agropecuária paulista é bastante especializada e altamente produtiva, pois deixou de ser apenas extensiva."
Segundo os pesquisadores, a pecuária de São Paulo quadruplicou sua participação nas exportações de 1997 a 2005, passando de US$ 635 milhões para US$ 2,6 bilhões.
O mecanismo da compensação, segundo eles, prevendo que deve ocorrer na mesma bacia hidrográfica e no mesmo ecossistema, também é falho. Em regiões como Ribeirão Preto, a agricultura ocupou todo o espaço disponível e a instalação de reservas terá de ocorrer em terras de plantio. "A lógica do decreto vai na contramão do processo de desenvolvimento e essa região paulista de agricultura mais desenvolvida será a maior punida com a redução de áreas de lavouras de interesse econômico", diz Castanho.
A renda bruta da agropecuária paulista em 2005, medida pelo valor da produção, atingiu R$ 31,7 milhões, sendo que as lavouras contribuíram com R$ 21,3 bilhões. Para Gonçalves, o critério da reserva legal deveria ser mais bem discutido inclusive do ponto de vista ambiental.
Os pesquisadores consideram que a manutenção de áreas esparsas com matas pouco ajuda na preservação da fauna, que se adapta melhor a grandes áreas de preservação.
O presidente da UDR, Luiz Antonio Nabhan Garcia, que também é produtor rural, considera o decreto autoritário. Ele é dono da Fazenda Ipezal, em Sandovalina, extremo oeste do Estado, voltada para a pecuária de corte. Na propriedade, de 360 hectares, mantém matas nativas em porcentual superior à exigida pela legislação.
"Como líder de produtores, não posso concordar com uma proposta vinda de forma autoritária." Nabhan reconhece que, nos termos em que foi editado, o decreto dificulta as práticas agrícolas, pois torna sem efeito as áreas já preservadas em beiras de rio. "Foi uma medida inoportuna, pois já existe uma proposta de alteração do Código Florestal, para que se possa considerar, para efeitos da reserva legal, as APPs."
A proposta, cujo relator é o deputado Moacir Micheletto (PMDB-PR), deve ser votada em 2007. Nabhan pediu ao departamento jurídico da UDR a análise do decreto. "Se o parecer jurídico recomendar, vamos entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade."
Mata para arrendar é raridade
O advogado Luis Augusto Germani, especialista em questões agrárias e ambientais, considera o decreto inconstitucional por ter ido além do que estabelece o Código Florestal e outras leis federais. "Quando a legislação federal criou a figura de área destinada à recomposição de reserva legal?", questiona. "O decreto não suplementou a norma federal, mas a modificou, de forma contraditória."
"Além disso, a maioria do desmatamento no Estado deu-se por leis que exigiam dos agricultores o desmatamento de áreas para o extermínio de focos de barbeiros; de mosquitos causadores de malária e até para comprovar a produtividade."
Sem entrar no mérito ambiental e da produção agrícola, o diretor de Meio Ambiente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, Marcelo Melo, acha importante a criação de mecanismos para regularizar a reserva legal. O decreto permite a averbação de reserva em regeneração ou recomposição, o que considera uma inovação.
A criação do cadastro eletrônico de reservas legais e a servidão florestal também são novidades. "Permitem que o proprietário com excedente florestal arrende a área para outra propriedade sem reservas."
Os produtores rurais reagiram de forma negativa. "Quem vai pagar o custo da formação da reserva?", pergunta um produtor de Sarapuí, região de Sorocaba, que pediu a omissão do seu nome. Ele tem uma fazenda de mil hectares, com soja, milho e gado.
A propriedade, banhada por um rio, possui áreas de matas superiores à exigida pela lei. "Mas são matas que eu formei e venho preservando há 20 anos. Não vou averbar, pois equivale a entregar para o governo. Conversei com vários produtores e eles também só vão averbar se for na marra." Além disso, pergunta: "Sabe quanto custa fazer o georreferenciamento? R$ 30 mil." O georreferenciamento é previsto no decreto para estabelecer as dimensões da reserva.
O presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Araraquara, Nicolau de Souza Freitas, também vê falhas no decreto. "Refazer as áreas é inviável; na nossa região o custo da terra é alto." Ele acha importante a possibilidade de adquirir glebas em regime de servidão, mas o problema é que não há, na região, matas disponíveis. "Acho que o governo deveria se preocupar com as matas ciliares, pois os rios se interligam e, aí sim, haveria corredores ecológicos."
Custo de formação e manutenção é muito alto
Os irmãos Nicolau e Ricardo Ghirghi, da Fazenda Água Clara, em Taquarivaí (SP), apontaram a não-inclusão das matas ciliares na composição dos 20% da reserva como a maior falha do decreto estadual. Os Ghirghi são donos de 2 mil hectares de terras altamente produtivas e cultivam anualmente soja, trigo, milho e feijão.
Para garantir o suprimento dos pivôs de irrigação, mantêm os açudes e os rios bem protegidos. Para eles, o governo deveria assumir pelo menos parte dos custos de instalação da reserva. "As mudas e a assistência técnica deveriam sair de graça para o produtor", diz Ricardo. Os irmãos investiram recentemente no plantio de 20 mil mudas a título de compensação pela abertura de um açude e o custo foi alto. "Ficou muito bonito, a gente tem de defender isso, mas o governo precisa ajudar."
Freitas, de Araraquara, mantém com o filho, João Henrique, uma propriedade de 200 hectares, e uma reserva de mais de 50 hectares, averbada. Nas terras que arrendam para cultivo de cana, de 120 hectares, os Freitas fizeram questão de manter a reserva com 28 hectares - acima do mínimo exigido. "É bom para a formação de nascentes."
Freitas acrescenta que, além de formar a reserva, o dono da propriedade precisa investir na proteção da área. "Há o risco de a gente gastar para formar a mata e depois perder tudo em caso de incêndio." Ele conta que uma área de reserva em processo de recuperação na fazenda da família, no Distrito do Taquaral, em São Carlos, foi queimada. "Alguém passou pela estrada e botou fogo. A única coisa que pudemos fazer foi o Boletim de Ocorrência."
(Por José Maria Tomazela, O Estado de S. Paulo, 19/07/2006)
http://www.estado.com.br/suplementos/agri/2006/07/19/agri-1.93.1.20060719.12.1.xml